Rudá Ricci
23/06/2013
Quem está saindo às ruas?
1. Vivemos um momento fundacional
da democracia brasileira no século XXI. Trata-se da maior mobilização de massas
deste século em nosso país;
2. Em seu início (e parece se
sustentar até o atual momento), a quase totalidade dos manifestantes (que
chegaram à marca de 1,2 milhão no dia 20 de junho) é composta por jovens (até
25 anos de idade), de classe média, sem qualquer experiência política anterior.
84% não têm preferência partidária e 71% nunca haviam participado de nenhuma
manifestação de rua;
A peculiaridade
organizativa
3. Os jovens foram convocados, em
especial, pelas redes sociais. Esta peculiaridade define uma nova realidade
política, nunca antes vista nesta magnitude no Brasil, que remete às
manifestações da Primavera Árabe. A peculiaridade mais acentuada é que não há
liderança organizativa clássica (como partidos, entidades de representação
profissional, ONGs ou sindicatos). A relação se dá pela afetividade entre os
que convidam e os que aceitam. Daí a fragmentação inicial de demandas e tribos
jovens. Em outras palavras, as estruturas de representação clássicas do século
XX foram deixadas de lado de maneira radical e, em muitos casos, revelou
desconfiança e rejeição dos jovens manifestantes;
4. O estopim inicial foi a
mobilização pelo Passe Livre, liderada pelo Movimento pelo Passe Livre (MPL),
cuja maioria dos militantes possui vínculos com partidos de esquerda. A
violência desmedida da PM paulista na manifestação realizada em São Paulo no
dia 13 de junho gerou grande indignação de pais e jovens, que já se percebia no
final de semana em várias redes sociais. A grande imprensa emprestou apoio aos
manifestantes, desde então, em virtude ao ataque que alguns jornalistas
sofreram pelo uso de balas de borracha pela PM paulista;
5. Todos governantes, de toda
plêiade de partidos nacionais, vacilou em assumir uma resposta à demanda
inicial. O mais contundente foi o prefeito petista Fernando Haddad que rechaçou
qualquer redução do preço da passagem de ônibus público (a demanda inicial era
de reduzir em vinte centavos, mas o objetivo era atingir o passe livre, sem
custo ao usuário). A dificuldade para se comunicar com as ruas alimentou a
indignação de jovens que saíram às ruas em massa a partir do dia 17. No dia 18,
já apareceram os primeiros sinais de descontrole e atos de vandalismo,
inicialmente no Rio de Janeiro, já indicavam que a liderança inicial (MPL) já
não aparecia como tal;
6. A partir do dia 18, mais de 20
governos municipais haviam recuado e diminuído o preço das passagens do
transporte público, o que obrigou o prefeito Fernando Haddad a rever sua
posição. O desgaste pessoal é incalculável. Outros prefeitos demonstraram
inabilidade, como o prefeito de Belo Horizonte, Marcio Lacerda (PSB, cogitado
para se transferir para o PSDB), que após longo silêncio, anunciou redução de
0,05 centavos, aumentando a ira dos jovens da capital mineira;
7. A partir do dia 20, já era
visível a disputa no interior das mobilizações pelo controle das manifestações
e construção de uma pauta unificada. A primeira proposta de pauta foi
apresentada pelo Anonymous Brasil, composta por cinco eixos claramente
centrados no tema da corrupção e adotando como alvo o governo federal e o
Congresso Nacional. Em seguida, várias organizações, em especial, os comitês de
atingidos pela Copa, apresentaram pautas mais extensas e voltadas para as três
esferas do Poder Executivo;
8. Ainda no dia 20, os maiores
partidos do país tentaram oportunisticamente disputar as mobilizações. Rui
Falcão, presidente nacional do PT, convocou uma “onda vermelha”, que se revelou
desastrosa para militantes do partido que foram expulsos da manifestação (os
jovens, até então, solicitavam que as cores utilizadas seriam branco, verde e
amarelo). O PPS, por seu turno, divulgou propaganda partidária gratuita na TV,
incentivando as manifestações e adotando um discurso virulento contra o governo
federal, justamente no momento em que 1,2 milhão de pessoas saíam às ruas,
envolvendo mais de 100 municípios, em especial, concentrados na região
centro-sul do país e litoral do nordeste (regiões com maiores índices de
instrução formal do Brasil). Atos de grande violência por parte de alguns
agrupamentos de jovens (setores vinculados ao tráfico, no caso do RJ) e PM,
estampavam as telas, revelando uma decisão infeliz do PPS, que incendiava ainda
mais os ânimos;
9. No dia seguinte, já se
percebia uma guinada das pautas e ações no interior das mobilizações. Os temas
da corrupção e crítica à PEC 37 dominavam grande parte das manifestações de
rua. O MPL decide, então, se retirar das mobilizações, acusando a mudança de
rumos e a adoção de uma pauta ultraconservadora no interior das passeatas;
10. A partir daí, a disputa entre
facções ideológicas, partidos e sindicatos e manifestantes passou a se
generalizar. O tema das eleições de 2014 foi emergindo paulatinamente, seja na
grande imprensa, seja nos discursos de lideranças partidárias, seja nas
conversas de bares entre cidadãos, obrigando a Presidente Dilma Rousseff a
fazer um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV na noite do dia 21,
sexta-feira, véspera do que prometia ser a maior mobilização desde o início da
semana;
11. As passeatas do dia 22,
contudo, não revelaram crescimento em número de pessoas, com exceção de Belo
Horizonte, capital onde ocorreram os únicos choques violentos no dia, além de
Salvador. As manifestações parecem ter se espraiado pelo interior do país, mas
em diversas capitais começaram a aparecer relatos de esgotamento.
O vácuo de liderança
12. O que parece cada vez mais
evidente é que vivemos um período de corte dos canais de comunicação das ruas
com organizações que fundem agendas a serem negociadas com autoridades
públicas;
13. Sintomaticamente, desde a redemocratização
do país tivemos ondas de mobilizações populares de grande expressão a cada dez
anos: em 1982, a Campanha pelas Diretas Já; em 1992, a pressão popular pelo
impeachment de Fernando Collor. Nas manifestações de 1982, os partidos e
lideranças partidárias – de oposição ao regime militar – apareciam como
personagens centrais em todos os atos. Já em 1992, os protagonistas foram as
organizações estudantis, em especial, UNE e Ubes. Ocorre que em 2002, Lula
chega ao poder. E, a partir daí, e durante dez anos seguidos, as organizações
populares, fóruns, redes, ONGs, estruturas sindicais e pastorais sociais foram
capturadas, não necessariamente cooptadas, pelo Estado. Em alguns casos, suas
lideranças assumiram cargos públicos. Em outros, ingressaram em arenas e fóruns
criados pelo governo federal para negociarem pautas ou agendas de políticas públicas.
Em um terceiro caso, entidades assumiram a terceirização, via convênios, de
serviços públicos da área social ou até mesmo auditorias ou pesquisas de ações
governamentais. No caso das centrais sindicais, impôs-se o que na literatura
especializada se denomina de “neocorporativismo”, ou o envolvimento das
organizações sindicais em negociações de políticas e estruturas estatais. A
emergência do poder econômico dos fundos de pensão constituiu o início desta
escalada que envolveu composição do Ministério do Trabalho, aumento dos
repasses federais às centrais sindicais, participação de dirigentes nos
conselhos de gestão de estatais, definição na composição de agências
reguladoras;
14. As atuais manifestações de
rua revelam que o locus da maioria
dos partidos de esquerda e organizações populares (de assessoria ou
representação) deixou de ser as ruas e passou a ser os gabinetes;
15. A nova geração de gestores
públicos, mesmo os de esquerda, não é mais originária de movimentos sociais ou
estruturas de representação de classe. É formada por gestores da máquina
estatal ou técnicos, revelando um discurso e estilo político altamente
burocratizado. Tal perfil envolve toda nova geração de expoentes políticos que
nivela a grande maioria dos partidos políticos: de Fernando Haddad à Aécio
Neves, de Antônio Anastasia à Dilma Rousseff ou ACM Neto, chegando à Eduardo
Paes e tantos outros;
16. Os governos Lula, ao
abdicarem da disputa ideológica ou seu papel pedagógico, aprofundou este abismo
entre gestores, dirigentes políticos e as ruas. A lacuna só fez aumentar nos
últimos anos;
17. Na outra ponta, os
beneficiários das políticas de transferência de renda, crédito popular e aumento
real do salário mínimo se revelaram desmobilizados ou conservadores. Pesquisas
recentes revelam que parte dos segmentos de classe que aumentou significativamente
sua renda familiar nos últimos dez anos refuta qualquer ação de embate com a
Ordem, assim como sindicatos e partidos. A onda conservadora já havia se
revelado no final do primeiro turno das eleições de 2010 e reapareceram nas
eleições municipais do ano passado, em especial, novamente no primeiro turno. O
poder de mobilização dos principais partidos do país conseguiu desmontar as
lideranças conservadoras que surgiam no cenário nacional (caso de Russomanno em
São Paulo), mas a possibilidade da “terceira via” já se revelava consistente;
18. Enfim, há um profundo erro de
condução dos partidos e organizações populares. Mesmo os partidos mais à
esquerda (como PSOL e PSTU), que iniciaram os protestos de rua dos últimos dias,
perceberam seu não enraizamento no cotidiano da maioria dos brasileiros ao
serem objeto de ofensas e até expulsão em várias manifestações ao longo do
país. O grito de “sem partido” que se espalhou em várias capitais sugere a soma
de orfandade com despolitização dos jovens indignados, não necessariamente um
pendência para uma orientação fascista ou anarquista;
19. Há, ainda, um elemento a ser
refletido. Além da ausência das ruas, não seria o caso de entendermos que a
estrutura das organizações modernas (partidos e sindicatos, em especial)
estaria revelando anacronismo? As estruturas não seriam excessivamente verticais
e burocratizadas a ponto de se afastarem efetivamente da vida cotidiana dos
seus representados? Não seria o caso de refletirmos sobre a adequação das
estruturas em rede (“structural holes”)? Tais estruturas inovadoras são mais
flexíveis e ágeis e se legitimam pela porosidade, onde qualquer um ingressa e
permanece pelo tempo que lhe convém ou que ainda se sente motivado, obrigando
os pontos de referência (páginas do face, operador de um blog ou rede de
amizades virtuais) a uma ginástica quase diária para renovar sua liderança e
confiança entre seus pares. Postar diariamente, com novidades e polêmicas,
passou a ser um imperativo. Não seduzir e não querer liderar como princípio
passou a ser uma ética nestas redes virtuais.
Os finalmentes
Vivemos, portanto, um dos
momentos mais significativos de nossa história política contemporânea.
Após a luta pelo fim da ditadura
desaguar na eleição de Lula, estaremos virando a página deste primeiro capítulo
de nossa recente história democrática.
Demonizar nossos jovens
despolitizados será um erro grosseiro e, possivelmente, fatal para as
lideranças tradicionais que se aventurarem por esta trilha. O correto é ouvir e
ser humilde. As ruas não revelam o que a ampla maioria dos brasileiros (pobres
e operários) está pensando. Mas é evidente que as mobilizações se tornaram o tema
de conversas diárias de todos brasileiros. As opiniões estão se formando. E não
será rechaçando o novo que as organizações populares conseguirão reafirmar sua
legimidade.
A disputa não está mais nos
gabinetes e reuniões fechadas. A disputa está nas ruas. Teremos que retomar
nossa identidade, aquela esquecida nos anos 1980.
A festa política das ruas é
sempre bonita. No caso brasileiro, ainda mais, porque sempre carrega traços de
carnavalização da política. Uma festa multicolorida que dá licença aos exageros.
Não compreender isto é se desconectar do Brasil.
4 comentários:
Muito interessante seu ponto de vista!
É interessante ver alguém todo vestido de verde e amarelo nas ruas lendo uma faixa e perguntando do que se trata a PEC 33, por exemplo. Tem muita gente fazendo da rua a sala de aula e discussão política que nunca tiveram em casa ou nos cursos universitários extremamente capitalistas que frequentaram.
"As ruas não revelam o que a ampla maioria dos brasileiros (pobres e operários) está pensando".
Mas as manifestações estão recebendo apoio destes. As revidicações são bem parecidas, a diferença que os primeiros não vão as rua os segundos sim.
Sturt,
Pobres e operários não estão se manifestando. Acho que você está confundindo desejo com dado concreto. A ampla maioria dos brasileiros está silenciosa. As pesquisas do DATAFOLHA estão se limitando à capital paulista. O conservadorismo, não tenha dúvida, continua imperando. Os dados anteriores às manifestações informavam que os consumidores emergentes odeiam mobilização social de todo tipo.
Pois é, mas o André Singer agora tá dizendo que a classe media( tradicional) até pode está na direção das manifestações, mas o novo proletariado (os trabalhadores com direitos? e que é "sua" classe C né?) é que vem massificando as ruas.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521358-andre-singer-qa-energia-social-nao-voltara-atrasq
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