As manifestações de rua das últimas três semanas ensejaram um debate político da maior relevância que parece estranho à grande parte dos brasileiros. Trata-se da pertinência de atos violentos como instrumento político. Este tema já foi objeto de grande debate na Europa, inclusive em tempos recentes.
Há toda uma linhagem de concepções políticas que sugerem a violência como método político legítimo.
Comecemos pela teoria liberal, pela pena de seu formulador, John Locke. Para o autor, a rebelião e resistência se fundamentam quando governos, mesmo legitimamente constituídos, se confrontam com situações de degeneração das bases de confiança em virtude da usurpação, tirania, dissolução do governo ou conquista (Segundo Tratado do Governo Civil). Toda sociedade política não pode surgir, afirma Locke, sem o consentimento popular. A simples conquista não representa, portanto, a origem de um governo, mesmo após uma guerra. Se o governo não respeitar princípios do direito individual, os cidadãos teriam direito a oferecer resistência. Nem sempre os jovens yuppies que se dizem liberais conhecem essas passagens, digamos, apimentadas da teoria de Locke. Talvez, nem mesmo conheçam Locke ou saibam que a reforma agrária se inspira em suas reflexões.
Muitos teóricos anarquistas defenderam o uso da força para derrubada da classe dominante e imposição da coletivização da propriedade. Na segunda metade do século XIX, as disputas envolvendo o russo Mikhail Bakunin e Karl Marx se tornaram o divisor de águas entre as forças de esquerda da Europa. Bakunin acusava Marx de ser centralista e afirmava que suas teorias apenas levaria à uma substituição da classe dominante por uma liderança vanguardista, não uma mudança efetiva de classe no poder. As teses de Bakunin se articularam no programa do Congresso de St. Imier (aldeia do noroeste suíço, que daria lugar à Federação Jurassiana, movimento revolucionário anarquista organizado por relojoeiros da região do Jura). Várias organizações anarquistas brasileiras (veja uma delas AQUI ) citam até hoje este programa como inspiração para sua ação.
Não cito aqui as várias vertentes marxistas por um motivo específico. Marx definia o legítimo uso da violência para derrubada das estruturas de poder dominantes em situações específicas onde a crise cíclica do capital (expressa na tendência decrescente da taxa de lucro) convergiria com um nível superior de consciência e organização da classe operária (superando a mera situação de classe em si). Esta leitura nem sempre foi assim interpretada pelos teóricos do foquismo ou mesmo da guerra popular prolongada que sugeriam que a vanguarda armada, numa situação de crise latente, poderia estimular a revolta popular. Mas é historicamente comprovável que marxistas sustentaram o uso da força em situações especiais de crise econômica ou política.
Entre os estudos acadêmicos, citaria a instigante análise de Eric Hobsbawn em seu livro "Rebeldes Primitivos". Nele, o autor sugere que o banditismo social teria sido uma forma primitiva, pré-política, de protesto social organizado. Muitos autores latino-americanos traçaram paralelos com resistências de mexicanos ao avanço dos EUA sobre seus territórios, de onde emergiram Joaquín Murieta ("Robin Hood do Eldorado", na Califórnia, na ilustração), Sóstenes L´Archevêque e Tiburcio Vázquez, reportando à situações que envolveram a Califórnia, Novo México e Texas, no século XIX. Aqui no Brasil, vários estudos sobre o cangaço e a figura de Lampião acolheram esta proposição de Hobsbawn. Percebam que se trata de um fenômeno classificado como pré-político.
Enfim, todo esta brevíssima exposição para fomentar um debate com algumas notas e observações de líderes das manifestações deste mês de junho sobre o uso da violência (no final de várias passeatas) como um ato de protesto. Em Belo Horizonte, várias argumentações apresentadas nos últimos dois dias por lideranças das manifestações procuraram salientar que, embora não concordem com estes atos, consideram que não se trata de vandalismo, mas formas de expressão da revolta social. Faltou explicar que esta revolta é pré-política. Um ato emocionalmente desequilibrado. Porque não há indício algum que tais ações tenham aumentado o grau de politização e revolta de amplos segmentos populares. Nem mesmo abalaram o capitalismo, digamos, expresso no comércio de revenda de carros da capital mineira. Não sendo expressão de um grau superior de consciência política, nem conseguido abalar as bases do status quo, qual a justificativa ideológica para este arroubo muscular?
Enfim, nas tradições liberal, anarquista ou marxista, não haveria qualquer embasamento político ou teórico que fundamentasse o quebra-quebra no final das passeatas como ato político consequente.
Entendo a intenção dos organizadores das manifestações em atirar pontes para outras forças minoritárias ou até mesmo se solidarizar com elas, receosos de criminalizarem estes pequenos agrupamentos. O problema é que os organizadores também se arriscam ao isolamento porque descolam seu discurso da grande maioria dos manifestantes. Assumem uma postura vanguardista que, até aqui, rechaçaram.
Faço esta digressão porque tenho a impressão que há equívocos conceituais importantes entre algumas jovens lideranças das manifestações que parecem confusas, embora bem intencionados. Revelam aproximações tortuosas sobre o longo e penoso debate entre clássicos da esquerda mundial. Com adrenalina nas veias, tais confusões ou insuficiências limitam ainda mais a capacidade de localizar incoerências e contradições discursivas.
Entendo que é exigir muito que jovens amadureçam politicamente em questão de semanas. Mas, agora, estão com o Brasil em suas mãos. Depende da sua capacidade de estar à altura do que plantaram.
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