segunda-feira, 20 de agosto de 2012

As greves dos federais, por César Felício

Dentro de casa, um palco para a lutaImprimir
Valor Econômico   
Qui, 16 de Agosto de 2012 10:30
Por César Felício
Há 66 anos, o então ditador da Bolívia Gualberto Villarroel foi retirado de dentro de seu esconderijo em um armário por manifestantes contra seu governo e atirado pela janela do Palácio Quemado, sede presidencial. Morto a tiros e pauladas, Villarroel teve seu cadáver içado pelo canhão de um tanque e foi pendurado em um poste no centro de La Paz.
O episódio único na história da América Latina é o exemplo mais extremo do grau de conflitividade social no continente e do poder desestabilizador que manifestações populares podem vir a ter.
Presidentes não costumam ser linchados nem na Bolívia e nem em qualquer parte do mundo, mas a institucionalidade no Brasil e nos países vizinhos nunca foi suficiente para que demandas estudantis, trabalhistas ou ambientalistas, entre outras, não levem a uma confrontação.
Natureza política da greve no Brasil vai se tornando evidente
No mapa dos conflitos sociais da América Latina, desenhado por uma pesquisa do PNUD, a Bolívia é a campeã em manifestações de caráter social, em um contexto de dezessete países. Com cerca de dez milhões de habitantes, teve 1,5 mil manifestações apenas no ano passado. É seguida de perto por Peru. No pelotão seguinte, estão, pela ordem, Argentina, Equador, Brasil e Uruguai.
A pesquisa do PNUD tenta vencer as inconsistências e a falta de padrão das estatísticas dos países na região para produzir um banco de dados permanente sobre o tema. O trabalho é comandado pela Fundação UNIR, uma ONG de La Paz.
Nos países andinos, os movimentos têm caráter territorial e a motivação está ligada a questões básicas da sobrevivência. Aumentos repentinos de preços de alimentos ou combustíveis, por exemplo, provocam explosões de descontentamento.
Ainda são minoritários, embora ganhem espaço, os protestos em torno do que o estudo chama de demandas ampliadas, ou reivindicações que visam ganhos de renda em uma sociedade onde a riqueza cresceu.
Na Argentina, o protesto clássico é o bloqueio de rodovias e ruas. Isso aconteceu 516 vezes apenas no primeiro semestre deste ano, de acordo com o levantamento do Centro de Estudos Nueva Mayoría. As ruas não são monopólio dos menos favorecidos. Fazendeiros interromperam a circulação nas estradas doze vezes este ano e a classe média portenha promoveu 25 panelaços para demonstrar seus sentimentos em relação à presidente Cristina Kirchner.
Brasil e, em certa medida, o Uruguai, possuem outro perfil. Greves respondem por mais de 60% dos protestos. Tratam-se de dois países onde a luta social se trava pelas tais demandas ampliadas. E neste contexto, as paralisações no setor público predominam. No caso brasileiro, de acordo com o levantamento feito pelo DIEESE, em 2010 houve 446 paralisações, sendo 60% do funcionalismo. O setor público respondeu por 85% das horas paradas no período.
Fora do restrito círculo institucional, em que se disputa poder nas eleições municipais e no Congresso, a greve dos servidores que já se arrasta há dois meses é a arena preferencial do confronto político. Tanto dentro do meio sindical como em relação ao poder público. Trata-se de um embate que não ultrapassa determinados limites.
No Brasil, a violência social está concentrada nas questões de posse da terra, onde a conflitividade é maior do que em outros países do continente. O conflito sindical de agora pode levar a uma mudança da equação política com que Dilma Rousseff se sustenta, caso o PT não esteja mais servindo como amortecedor político, mas é evidente que não coloca em cheque a governabilidade comentou o coordenador da pesquisa do PNUD, o boliviano Fernando Calderón.
A dimensão central da greve atual é política. O PT como instância mediadora parece ter sido decisivo para a relativa paz que se viveu entre o Estado e seus funcionários na década passada. O presidente do Sindifisco, Pedro Delarue, um dos negociadores da greve, não esconde a saudade em relação ao governo Lula. A administração passada dava mais perspectiva de negociação, porque existiam interlocutores que não eram oficiais, mas que tinham influência real. A mudança de comportamento deles levou à nossa mudança, comentou.
A perda de influência da elite política oriunda do meio sindical no centro do poder veio acompanhada do enfraquecimento do PT e da CUT em suas bases. Carregando as centrais sindicais nas costas, o sindicalismo do poder público parece ter se cansado da falta de mando político. A oposição dentro dos sindicatos dos servidores cresce a cada dia e esta divisão aumenta a radicalização, comenta o sociólogo Rudá Ricci, do Instituto Cultiva de Belo Horizonte. Pressionadas por baixo e pouco ouvidas acima, as centrais aumentam o tom.
A crise torna-se mais aguda dado o cenário econômico que instala um debate sobre qual o tamanho que o gasto público pode ter. Diminui o espaço para concessões, como lembrou o Fernando Henrique Cardoso, em um gesto solidário curiosamente acompanhado por Lula no dia seguinte.
Logo em seu primeiro ano do governo, FHC enfrentou simultaneamente um confronto com os petroleiros e uma greve do setor de telecomunicações. Pediam reajuste mensal de salários. A greve foi declarada abusiva pelo TST um mês depois de iniciada, mas antes disso o Exército ocupou quatro refinarias. As multas aplicadas contra as entidades dos petroleiros debilitaram o movimento por algum tempo.
Se Dilma e Fernando Henrique se aproximam pelo discurso e pelas dificuldades econômicas que atravessaram no início de suas administrações, se distanciam no lastro popular. A presidente conta com 62% de aprovação na última pesquisa Datafolha, resultado seis pontos superior ao total de votos que recebeu no segundo turno da eleição de 2010. A ironia, como observou Ricci, é que essa aceitação explica a tensão política atual. Com a oposição esmaecida, o governo enfrenta dentro do seu território a disputa pelo poder mais acirrada.
César Felício é correspondente em Buenos Aires. Escreve mensalmente às quintas-feiras
E-mail: cesar.felicio@valor.com.br

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