sábado, 22 de agosto de 2009

Meu artigo, publicado no Estadão de hoje (P. A10)


A ética da liberdade e a ética da democracia
Uma das máximas do bom jornalismo é nunca brigar com um fato. É possível investigar suas várias facetas, as várias verdades que explicam um fenômeno social, mas nunca se lançar contra o fato. Mas o que pensar quando a justiça impede este exercício básico? Temos, neste momento, um conflito entre duas lógicas que teoricamente são pilares da democracia. A decisão do desembargador Dácio Vieira, proibindo a publicação de diálogos telefônicos envolvendo o filho de José Sarney cria, assim, um importante “case” sobre ética democrática e limites das instituições. O que Sartre, um dia, denominou de conflito entre liberdade e ética da liberdade. Por este motivo, é importante decompor os elementos que envolvem este caso.
O primeiro aspecto a observar é a diferença entre intimidade e vida privada no caso de temas de alto interesse público. Este é o mote da decisão do desembargador. A esfera íntima se relaciona com os sentimentos de identidade próprios, auto-estima e sexualidade. Trata-se de uma esfera efetivamente confidencial. Mas a esfera privada é mais ampla. Está relacionada às relações do indivíduo com o meio social, mesmo que não haja interesse na sua divulgação. Na sociologia, diríamos – cito Émile Durkheim, neste caso – que uma instituição é guardiã da moral coletiva, ou seja, dos valores e crenças que foram construídos historicamente e que cimentam as relações sociais da sociedade. Assim, uma conversa privada que implique na quebra dos valores morais, que sustentam as instituições democráticas de um país, deve ser questionada publicamente, porque coloca em risco a unidade dos cidadãos e a legitimidade – a crença dos cidadãos – nas regras públicas. Este seria o caso limite da troca de correspondência entre dois maníacos que tramam um genocídio. O que caberia à imprensa se soubesse deste fato? Teria que apurar com rigor, procurar estabelecer vários ângulos de interpretação, dar publicidade às versões em tela. Mas não publicar seria, ao mesmo tempo, um suicídio profissional e um desserviço à democracia.
Um segundo aspecto a considerar é o direito do cidadão em ter acesso às informações que se relacionam ao uso do dinheiro público e sua movimentação por seus representantes políticos. Não podemos esquecer que o cidadão possui a titularidade do poder dos eleitos. Em última instância, os funcionários públicos (incluindo os eleitos) são seus funcionários. Esta é a tese que está nos clássicos da modernidade, de Locke à Rousseau. Apenas para citar os clássicos. A conversa telefônica em questão não tratava de temas da intimidade do filho de um senador. Tratava de acesso privilegiado à órgãos e recursos públicos. Portanto, tratava de interesse do cidadão. Se a democracia tem como protagonista o cidadão, então este “case” define o futuro de nossas instituições e sustentabilidade de nossa democracia.
Um último aspecto (dentre vários que poderiam ser listados) é a superação da estrutura elitista de nossos poderes públicos. Tema que se relaciona com o anterior. Simon Schwartzman detalhou o que seria este traço neopatrimonialista tupiniquim: a existência de uma racionalidade de tipo técnica onde o papel do contrato social e da legalidade jurídica seja mínimo ou inexistente. O Senado, enfim, como presenciamos diariamente, não se funda num contrato com a sociedade. Caso contrário, para que atos secretos? Por que no Senado existe tal subversão? Porque é a câmara legislativa mais elitista e apartada da sociedade brasileira. Por aí, a censura ao jornal Estado de São Paulo reforça a lógica neopatrimonialista que, por definição, atua privadamente, nos bastidores da política, a partir das relações de fidelidade. O neopatrimonialismo despreza o que é público. E procura encobrir, assim, o fato.
De tal maneira que por aí, o jornalismo teria que brigar com os fatos. Pior: teria que ficar de costas para os fatos. E morreria como profissão e instituição democrática. E, com sua morte, morreria um pouco mais a nossa peculiar e frágil democracia.

Um comentário:

Professor disse...

É tempo de superarmos o modelo de Estado partrimonialista e entrarmos na era da democracia moderna, este é o desafio.
Claramente,nesta situação do Senador Sarney, o que aconteceu foi o tratamento do Estado como coisa particular, da família...
Infelizmente, para grande parte da população, especialmente os mais pobres, que são favorecidos pelas migalhas distribuídas por alguns políticos isto não tem problema.
Não existe o entendimento do que seja público ou privado, a distruição do patrimônio público - escolas, praças, reparticões, vias etc - mostra bem isso!
O caminho possível é a educação, educação com qualidade, para que se possa entender o que é Estado, o que é público, o que é privado.
Voltei a sala de aula! Trabalhando com os pequenos... bem pequenos...