O FORDISMO LULISTA
O desenho sistêmico do que se denominou recentemente de lulismo motivou André Singer a aventar a possibilidade dele ter
engendrado um “sonho rooseveltiano”[1].
Para o autor, o ambiente rooseveltiano se alimentou do ciclo de aceleração do
crescimento brasileiro iniciado em 2007. Singer é enfático ao assinalar que:
(...) o lulismo
introduziu o New Deal no imaginário nacional, funcionando como sintoma
ideológico. A título de exemplo, vamos lembrar três menções, oriundos de campos
suficientemente distantes para indicar a existência de fenômeno geral. Wendy
Hunter e Timoty Power compararam o Bolsa Família (BF), lançado em setembro de
2003, ao Social Security Act, com o qual, em 1935, Roosevelt instituiu o
sistema de previdência pública. (...) Uma segunda referência encontra-se no
fecho de balanço do governo Lula feito por dois economistas ligados ao
Ministério da Fazenda. Segundo Nelson Barbosa e José Antonio Pereira Souza, “a
superação de dogmas recentes encontra paralelos em momentos nos quais os
Estados das economias capitalistas centrais optaram pela ruptura de seusm
modelos de atuação [...]. Assim foi, por exemplo, com a G.I Bill (1944) e com a
Employment Act (1946) [...]. A G.I. Bill, assinada por Roosevelt em junho de
1944, dava direito aos militares veteranos dos EUA que retornavam da Segunda
Guerra Mundial a ingressar nas universidades. O Employment Act, promulgado pelo
presidente Harry Truman em fevereiro de 1946, ainda no contexto do New Deal,
atribuía ao governo federal norte-americano a incumbência de promover
oportunidades de emprego. (...) Por fim, em julho de 2010, citando Paul
Krugman, o jornalista Fernando de Barros e Silva escrevia na Folha de S.Paulo:
“os Estados Unidos do pós-guerra eram, sobretudo, uma sociedade de classe
média. O grande boom dos salários que começou com a Segunda Guerra levou
dezenas de milhões de americanos – entre os quais meus pais – de bairros
miseráveis nas regiões urbanas ou pobreza rural à casa própria e a uma vida de
conforto sem precedentes”. (...) Continua o jornalista: “tudo isso nos fala à
imaginação – tão longe, tão perto”[2].
A
longa citação se justifica pela clareza da proposição analítica. O autor
sustenta que a redução, entre 2003 e 2008, daqueles brasileiros que percebiam
um rendimento inferior ao valor de uma cesta básica de alimentos recomendada
pela FAO, de 36% para 23%, cria um paralelo imediato com a história
norte-americano e sugere um New Deal brasileiro. Uma redução de pobreza mais
acentuada que a redução da desigualdade, é certo.
Singer
não aprofunda a lógica fordista, se concentrando nas políticas rooseveltianas.
Assim, resvala na observação de uma nova agenda estatal-desenvolvimentista
adotada pelo país, com contornos tão profundos como o ciclo aberto pelo
getulismo[3].
O
desenho do fordismo lulista mantém identidade com a estrutura sistêmica
rooseveltiana, no que tange o papel do Estado como financiador e orientador do
capital e sustentação do mercado interno ampliado, fundado na elevação da renda
média do trabalhador e diminuição acentuada da pobreza via transferência de
renda. Mas acrescenta duas novidades em relação ao fordismo original, de âmbito
político. O lulismo introduz o financiamento de organizações populares e de
representação de massas, como organizações não-governamentais, articulações por
direitos civis e sociais e centrais sindicais[4].
Também consolida uma antiga pretensão de governantes anteriores: a coalizão
presidencialista, que cria uma forte intimidade governista e governamental
entre Executivo e Legislativo.
A
estrutura estatal-desenvolvimentista apresentada reduz os espaços de oposição e
cria um ambiente de estabilidade para investimentos empresariais e familiares.
As políticas anti-cíclicas se alimentam, então, deste ambiente de paz social ou
pacto desenvolvimentista. O que remete ao controle das mobilizações e
resistências sociais, assim como das articulações sociais para ampliar
direitos.
As
arenas e espaços que na Constituição Federal ganharam o status de participação
direta de representações da sociedade civil na tomada de decisões relativas às
políticas públicas, em especial, as sociais, são limitados ao papel de
pacificação social. O novo papel se apóia numa gradual domesticação das
organizações sociais e populares que, nos anos 1980 e 1990, se notabilizaram pela
defesa dos mecanismos de democracia direta, pelas estruturas organizativas
horizontalizadas e pela crítica à prevalência de interesses de mercado na ação
do Estado.
O
fordismo lulista, contudo, é um arranjo, uma composição de interesses. Os
fóruns e arenas de participação social tiveram, portanto, que se enquadrar à
lógica da gestão pactuada.
Este
rearranjo institucional da participação social se revelou mais simples e viável
do que se apresentava teoricamente.
No
início da primeira gestão Lula, o participacionismo teve lugar certo. O
programa Fome Zero foi entregue a lideranças católicas, expoentes da Teologia
da Libertação nos anos 1980. A estrutura de gerenciamento do programa adotou a
lógica da cogestão e foi compreendida como escola de formação de cidadãos para
o controle de políticas públicas. O conceito de empoderamento foi fartamente
utilizado neste período, numa tradução livre de empowerment. Nesta versão, significava ação coletiva ou
participação coletiva em espaços privilegiados de decisões, ampliando o
conceito de direito político. Assim, se orientaria pela superação de qualquer dependência
social e dominação política. Era, obviamente, um discurso que confrontava o
Estado patrimonialista.
Outra
iniciativa foi a instalação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social
(CDES), um amplo conselho consultivo, composto por empresários e representação
da sociedade civil para análise e proposição da agenda nacional.
Finalmente,
esboçou-se um frágil mecanismo de participação no controle do orçamento federal
e políticas sociais com a criação de Comitês Estaduais de elaboração do Plano
Plurianual (PPA) federal e apoio para realização de conferências nacionais
envolvendo uma ampla agenda temática.
Todos
estes instrumentos foram reduzindo paulatinamente sua autonomia e campo de
atuação. Os primeiros a compreender a estratégia governamental fundado no pacto
desenvolvimentista foram os gestores do Fome Zero. Frei Betto e sua equipe
inicial pediram demissão das funções criticando a política econômica adotada
pelo Ministério da Fazenda e à transferência do controle político do programa
das estruturas participativas para Prefeituras.
O
CDES, por seu turno, manteve uma agenda de reuniões e formulações conjuntas de
propostas, mas não logrou se constituir num mecanismo de aproximação do
empresariado e sociedade civil aos mecanismos de tomada de decisão
governamental.
Finalmente,
a profusão de conferências nacionais de direitos civis e sociais, que chegaram
a ultrapassar em duas gestões Lula a marca de 70, raramente redundaram em leis
ou mudanças orçamentárias.
Ao
contrário, o fordismo lulista reforçou os escaninhos tradicionais de tomada de
decisão governamental. A coalizão presidencialista tomou o lugar de todos
mecanismos de ampliação da participação da sociedade civil no interior do
Estado. Os partidos coligados, os ministérios e agências estatais partilhadas
com estas forças, Congresso Nacional e governadores constituíram os
interlocutores privilegiados do lulismo. Quanto ao empresariado, Ministério da
Fazenda, BNDES e uma rede informal de consultores econômicos passaram a se
revelar mais eficientes como lócus de negociações e estabelecimento de agendas
desenvolvimentistas que câmaras setoriais e conselhos consultivos amplos.
O
fordismo lulista é fundado no Estado orientador, altamente verticalizado e
unificado. A unidade é o elemento central de toda lógica
estatal-desenvolvimentista.
[1][1]
Este é o título do terceiro capítulo de seu último livro. Ver SINGER, André. Os
sentidos do lulismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
[2]
SINGER, André. Os Sentidos do Lulismo, op. Cit., páginas 126 a 128.
[3]
Alguns analistas sugerem se tratar de agenda do novo-desenvolvimentismo. Tal
agenda criticaria o laissez-faire da pauta liberal e o autoritarismo da pauta
socialista. O neo-desenvolvimentismo (ou neo-estruturalismo) sugere o
desenvolvimento endógeno, sem romper com o livre comércio para alcançar a
competitividade internacional. Bresser Pereira lista cinco elementos desta
agenda: a) abertura comercial; b) planejamento estratégico estatal; c)
estabilidade econômica incluindo preços, pleno emprego e equilíbrio da balança
de pagamentos; d) inversão da equação juros elevados e câmbio apreciado; e)
financiamento do desenvolvimento com recursos próprios (evitando atração da
poupança externa para financiar o crescimento). Em suma: mercado livre
pressupõe, nesta perspectiva, Estado forte. Ver SICSÚ, João; PAULA, Luiz
Fernando & MICHEL, Renaut (orgs.), Novo-Desenvolvimentismo.
Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2005.
[4]
Em 2012, as centrais sindicais receberam repasses federais da ordem de 160
milhões de reais referentes ao imposto sindical, o dobro das transferências
ocorridas em 2008, quando iniciaram os repasses. A maior parte dos recursos
fica com as duas maiores centrais do País, a Central Única dos Trabalhadores
(CUT) e a Força Sindical. Neste ano, a CUT recebeu R$ 44,5 milhões até outubro,
e a Força ficou com R$ 40 milhões. Os recursos representam entre 60% e 80% do
orçamento total das centrais. Destaca-se, ainda, a regulamentação recente da
participação de dirigentes sindicais nos conselhos de empresas estatais
federais. O jeton pago a cada conselheiro chega a 8 mil reais, caso da
Petrobrás. Há registros de jetons que variam de 3 mil reais (suplente do
conselho da Breasilprev) a 15 mil reais (conselho da Funpresp).
3 comentários:
Olha, não estou com o tempo de buscar outras leituras para melhor entender seu ponto de vista.
Mas quando faz a relação do Brasil com o EUA, se tem uma crise em 29 lá, e agora que se quer comparar Lulismo com a política dos EUA do final da primeira metade do século XX, vemos que se tinha uma política anti crise lá, e aqui qual seria a crise? Crise que se esgotou o regime militar, ou crise do fim de FHC. Essa crise não é menos escala como aquelas que causa ou completa-se o modelo fordista por lá?
Sturt,
Não estou sugerindo a crise como ponto em comum, mas a engenharia estatal-desenvolvimentista. O Japão e a Europa também adotaram este modelito fordista-keynesiano e não passaram pela mesma crise. Da crise nascem soluções técnicas e científicas. Faz parte do giro da roda econômica do mundo. Quanto ao fordismo europeu, ele entrou em parafuso no final dos anos 1960. O norte-americano está em frangalhos (veja as tentativas de Obama para recuperá-lo).
Rudá, como já disse em outro post, gosto desta sua análise. Gostaria de aproveitar para apontar um incômodo e fazer 2 perguntas:
- De fato o arranjo permitiu a saída de muitos brasileiros (assim como os americanos após a crise) de uma situação de extrema miséria. Porém, me incomoda que pouco se destaque que para a outra ponta, a dos extremamente ricos, este foi um arranjo extremamente lucrativo, como há 2 décadas não se via. Aqui estou plenamente de acordo com as críticas do Marcio Pochmann que destaca que a desigualdade não caiu no Brasil na última década; os estudos que apontam nesta direção se baseiam no PNAD, o que traz diversos problemas. Por isso, acho essencial apontar que a estabilidade do arranjo lulista baseia-se num extremo apoio dos mais pobres, mas também em condições muito favoráveis para os extremamente ricos.
- Os 2 últimos anos de pífio crescimento (agora já estou avançando para os anos Dilma) mostrariam um esgotamento deste modelo?
- A que fatores você atribui o fracasso do Fome Zero e consequentemente o desaparecimento deste espaço de participacionismo no Governo Lula? Era um problema programático? De gestão? Falta de sustentação política?
Um abraço e ótimo ano!
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