segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

O fordismo lulista

Segunda parte do ensaio que estou esboçando:

O FORDISMO LULISTA

O desenho sistêmico do que se denominou recentemente de lulismo motivou André Singer a aventar a possibilidade dele ter engendrado um “sonho rooseveltiano”[1]. Para o autor, o ambiente rooseveltiano se alimentou do ciclo de aceleração do crescimento brasileiro iniciado em 2007. Singer é enfático ao assinalar que:
 (...) o lulismo introduziu o New Deal no imaginário nacional, funcionando como sintoma ideológico. A título de exemplo, vamos lembrar três menções, oriundos de campos suficientemente distantes para indicar a existência de fenômeno geral. Wendy Hunter e Timoty Power compararam o Bolsa Família (BF), lançado em setembro de 2003, ao Social Security Act, com o qual, em 1935, Roosevelt instituiu o sistema de previdência pública. (...) Uma segunda referência encontra-se no fecho de balanço do governo Lula feito por dois economistas ligados ao Ministério da Fazenda. Segundo Nelson Barbosa e José Antonio Pereira Souza, “a superação de dogmas recentes encontra paralelos em momentos nos quais os Estados das economias capitalistas centrais optaram pela ruptura de seusm modelos de atuação [...]. Assim foi, por exemplo, com a G.I Bill (1944) e com a Employment Act (1946) [...]. A G.I. Bill, assinada por Roosevelt em junho de 1944, dava direito aos militares veteranos dos EUA que retornavam da Segunda Guerra Mundial a ingressar nas universidades. O Employment Act, promulgado pelo presidente Harry Truman em fevereiro de 1946, ainda no contexto do New Deal, atribuía ao governo federal norte-americano a incumbência de promover oportunidades de emprego. (...) Por fim, em julho de 2010, citando Paul Krugman, o jornalista Fernando de Barros e Silva escrevia na Folha de S.Paulo: “os Estados Unidos do pós-guerra eram, sobretudo, uma sociedade de classe média. O grande boom dos salários que começou com a Segunda Guerra levou dezenas de milhões de americanos – entre os quais meus pais – de bairros miseráveis nas regiões urbanas ou pobreza rural à casa própria e a uma vida de conforto sem precedentes”. (...) Continua o jornalista: “tudo isso nos fala à imaginação – tão longe, tão perto”[2].

A longa citação se justifica pela clareza da proposição analítica. O autor sustenta que a redução, entre 2003 e 2008, daqueles brasileiros que percebiam um rendimento inferior ao valor de uma cesta básica de alimentos recomendada pela FAO, de 36% para 23%, cria um paralelo imediato com a história norte-americano e sugere um New Deal brasileiro. Uma redução de pobreza mais acentuada que a redução da desigualdade, é certo.
Singer não aprofunda a lógica fordista, se concentrando nas políticas rooseveltianas. Assim, resvala na observação de uma nova agenda estatal-desenvolvimentista adotada pelo país, com contornos tão profundos como o ciclo aberto pelo getulismo[3].
O desenho do fordismo lulista mantém identidade com a estrutura sistêmica rooseveltiana, no que tange o papel do Estado como financiador e orientador do capital e sustentação do mercado interno ampliado, fundado na elevação da renda média do trabalhador e diminuição acentuada da pobreza via transferência de renda. Mas acrescenta duas novidades em relação ao fordismo original, de âmbito político. O lulismo introduz o financiamento de organizações populares e de representação de massas, como organizações não-governamentais, articulações por direitos civis e sociais e centrais sindicais[4]. Também consolida uma antiga pretensão de governantes anteriores: a coalizão presidencialista, que cria uma forte intimidade governista e governamental entre Executivo e Legislativo.
A estrutura estatal-desenvolvimentista apresentada reduz os espaços de oposição e cria um ambiente de estabilidade para investimentos empresariais e familiares. As políticas anti-cíclicas se alimentam, então, deste ambiente de paz social ou pacto desenvolvimentista. O que remete ao controle das mobilizações e resistências sociais, assim como das articulações sociais para ampliar direitos.
As arenas e espaços que na Constituição Federal ganharam o status de participação direta de representações da sociedade civil na tomada de decisões relativas às políticas públicas, em especial, as sociais, são limitados ao papel de pacificação social. O novo papel se apóia numa gradual domesticação das organizações sociais e populares que, nos anos 1980 e 1990, se notabilizaram pela defesa dos mecanismos de democracia direta, pelas estruturas organizativas horizontalizadas e pela crítica à prevalência de interesses de mercado na ação do Estado.
O fordismo lulista, contudo, é um arranjo, uma composição de interesses. Os fóruns e arenas de participação social tiveram, portanto, que se enquadrar à lógica da gestão pactuada.
Este rearranjo institucional da participação social se revelou mais simples e viável do que se apresentava teoricamente.
No início da primeira gestão Lula, o participacionismo teve lugar certo. O programa Fome Zero foi entregue a lideranças católicas, expoentes da Teologia da Libertação nos anos 1980. A estrutura de gerenciamento do programa adotou a lógica da cogestão e foi compreendida como escola de formação de cidadãos para o controle de políticas públicas. O conceito de empoderamento foi fartamente utilizado neste período, numa tradução livre de empowerment. Nesta versão, significava ação coletiva ou participação coletiva em espaços privilegiados de decisões, ampliando o conceito de direito político. Assim, se orientaria pela superação de qualquer dependência social e dominação política. Era, obviamente, um discurso que confrontava o Estado patrimonialista.
Outra iniciativa foi a instalação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), um amplo conselho consultivo, composto por empresários e representação da sociedade civil para análise e proposição da agenda nacional.
Finalmente, esboçou-se um frágil mecanismo de participação no controle do orçamento federal e políticas sociais com a criação de Comitês Estaduais de elaboração do Plano Plurianual (PPA) federal e apoio para realização de conferências nacionais envolvendo uma ampla agenda temática.
Todos estes instrumentos foram reduzindo paulatinamente sua autonomia e campo de atuação. Os primeiros a compreender a estratégia governamental fundado no pacto desenvolvimentista foram os gestores do Fome Zero. Frei Betto e sua equipe inicial pediram demissão das funções criticando a política econômica adotada pelo Ministério da Fazenda e à transferência do controle político do programa das estruturas participativas para Prefeituras.
O CDES, por seu turno, manteve uma agenda de reuniões e formulações conjuntas de propostas, mas não logrou se constituir num mecanismo de aproximação do empresariado e sociedade civil aos mecanismos de tomada de decisão governamental.
Finalmente, a profusão de conferências nacionais de direitos civis e sociais, que chegaram a ultrapassar em duas gestões Lula a marca de 70, raramente redundaram em leis ou mudanças orçamentárias.
Ao contrário, o fordismo lulista reforçou os escaninhos tradicionais de tomada de decisão governamental. A coalizão presidencialista tomou o lugar de todos mecanismos de ampliação da participação da sociedade civil no interior do Estado. Os partidos coligados, os ministérios e agências estatais partilhadas com estas forças, Congresso Nacional e governadores constituíram os interlocutores privilegiados do lulismo. Quanto ao empresariado, Ministério da Fazenda, BNDES e uma rede informal de consultores econômicos passaram a se revelar mais eficientes como lócus de negociações e estabelecimento de agendas desenvolvimentistas que câmaras setoriais e conselhos consultivos amplos.
O fordismo lulista é fundado no Estado orientador, altamente verticalizado e unificado. A unidade é o elemento central de toda lógica estatal-desenvolvimentista.



[1][1] Este é o título do terceiro capítulo de seu último livro. Ver SINGER, André. Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[2] SINGER, André. Os Sentidos do Lulismo, op. Cit., páginas 126 a 128.
[3] Alguns analistas sugerem se tratar de agenda do novo-desenvolvimentismo. Tal agenda criticaria o laissez-faire da pauta liberal e o autoritarismo da pauta socialista. O neo-desenvolvimentismo (ou neo-estruturalismo) sugere o desenvolvimento endógeno, sem romper com o livre comércio para alcançar a competitividade internacional. Bresser Pereira lista cinco elementos desta agenda: a) abertura comercial; b) planejamento estratégico estatal; c) estabilidade econômica incluindo preços, pleno emprego e equilíbrio da balança de pagamentos; d) inversão da equação juros elevados e câmbio apreciado; e) financiamento do desenvolvimento com recursos próprios (evitando atração da poupança externa para financiar o crescimento). Em suma: mercado livre pressupõe, nesta perspectiva, Estado forte. Ver SICSÚ, João; PAULA, Luiz Fernando & MICHEL, Renaut (orgs.), Novo-Desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2005.
[4] Em 2012, as centrais sindicais receberam repasses federais da ordem de 160 milhões de reais referentes ao imposto sindical, o dobro das transferências ocorridas em 2008, quando iniciaram os repasses. A maior parte dos recursos fica com as duas maiores centrais do País, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical. Neste ano, a CUT recebeu R$ 44,5 milhões até outubro, e a Força ficou com R$ 40 milhões. Os recursos representam entre 60% e 80% do orçamento total das centrais. Destaca-se, ainda, a regulamentação recente da participação de dirigentes sindicais nos conselhos de empresas estatais federais. O jeton pago a cada conselheiro chega a 8 mil reais, caso da Petrobrás. Há registros de jetons que variam de 3 mil reais (suplente do conselho da Breasilprev) a 15 mil reais (conselho da Funpresp).  

3 comentários:

AF Sturt Silva disse...

Olha, não estou com o tempo de buscar outras leituras para melhor entender seu ponto de vista.

Mas quando faz a relação do Brasil com o EUA, se tem uma crise em 29 lá, e agora que se quer comparar Lulismo com a política dos EUA do final da primeira metade do século XX, vemos que se tinha uma política anti crise lá, e aqui qual seria a crise? Crise que se esgotou o regime militar, ou crise do fim de FHC. Essa crise não é menos escala como aquelas que causa ou completa-se o modelo fordista por lá?

Rudá Ricci disse...

Sturt,
Não estou sugerindo a crise como ponto em comum, mas a engenharia estatal-desenvolvimentista. O Japão e a Europa também adotaram este modelito fordista-keynesiano e não passaram pela mesma crise. Da crise nascem soluções técnicas e científicas. Faz parte do giro da roda econômica do mundo. Quanto ao fordismo europeu, ele entrou em parafuso no final dos anos 1960. O norte-americano está em frangalhos (veja as tentativas de Obama para recuperá-lo).

Marco disse...

Rudá, como já disse em outro post, gosto desta sua análise. Gostaria de aproveitar para apontar um incômodo e fazer 2 perguntas:

- De fato o arranjo permitiu a saída de muitos brasileiros (assim como os americanos após a crise) de uma situação de extrema miséria. Porém, me incomoda que pouco se destaque que para a outra ponta, a dos extremamente ricos, este foi um arranjo extremamente lucrativo, como há 2 décadas não se via. Aqui estou plenamente de acordo com as críticas do Marcio Pochmann que destaca que a desigualdade não caiu no Brasil na última década; os estudos que apontam nesta direção se baseiam no PNAD, o que traz diversos problemas. Por isso, acho essencial apontar que a estabilidade do arranjo lulista baseia-se num extremo apoio dos mais pobres, mas também em condições muito favoráveis para os extremamente ricos.

- Os 2 últimos anos de pífio crescimento (agora já estou avançando para os anos Dilma) mostrariam um esgotamento deste modelo?

- A que fatores você atribui o fracasso do Fome Zero e consequentemente o desaparecimento deste espaço de participacionismo no Governo Lula? Era um problema programático? De gestão? Falta de sustentação política?

Um abraço e ótimo ano!