CHEGA DE CONVERSA FIADA
Governo Dilma inviabiliza o controle social das políticas
públicas
Gilda Cabral[1]
Por que o governo adota a transparência das ditaduras?
O que faz o governo dizer uma coisa e fazer outra
totalmente diferente?
Não temos essas respostas, mas
devemos pensar muito nessas perguntas. Recentemente, o governo sancionou a Lei
de Acesso à Informação (LAI), criou sites,
portais e telefones para contato direto com a população, estimulando denúncias
de mal uso das verbas públicas. Ao mesmo tempo,
embola e confunde as pessoas com a falta de transparência sobre os
recursos e gastos governamentais. No
campo das finanças públicas, retoma a prática da ditadura militar, na qual o
Congresso Nacional e a sociedade não têm voz sobre os recursos públicos e nem
acesso a informações que permitam monitorar e avaliar os gastos governamentais
e as políticas públicas. Discursos e dispositivos legais conflitantes, nada têm
com dialética, é prática autoritária mesmo. Além disso, tornam inviável o
controle social do gasto público e dificultam o controle externo feito pelo
Tribunal de Contas e Ministério Público. Entre os tempos de ditadura e o atual
momento, a diferença básica é que agora tudo foi devidamente autorizado pelo
Congresso Nacional. Mas o que, exatamente, tornou o controle dos gastos
governamentais inviável? Esse será o tema discutido neste artigo.
A partir de 2013,
parlamentares e sociedade ficarão totalmente dependentes do governo federal
para saber as informações orçamentárias e aquelas relativas a execução
financeira das ações que implementam as políticas públicas. Não há mais
correspondência entre as leis que definem o Planejamento e o Orçamento da União
devido ao grau de agregação adotado no PPA e na LOA. Apesar das muitas normas
legais sobre participação social, transparência e acesso a informações e ainda
tantos discursos e intenções democráticas, o governo não está promovendo de
fato a transparência. Ao conseguir sua autonomia do Congresso para decidir
sobre os recursos da União e não adotando medidas de acesso às informações, o
governo criou uma situação de dependência total da sociedade e dos
parlamentares sobre as informações relativas às finanças públicas,
especialmente a implementação dos programas e ações públicas. Se não forem
derrubados os vetos à LDO 2013, o governo tem autorização do Congresso para informar o que, quando,
como e onde quiser. Aparentemente, os
parlamentares federais abdicaram de decidir e monitorar os recursos públicos,
pois aumentaram de 31 (em 2002) para 96, as hípoteses de alteração da LOA por
decreto[2], e
ainda autorizaram ampla flexibilidade ao Executivo para abertura de crédito
(20%) e alteração das verbas do PAC (30%) criando situações de total
independência para o governo. Por exemplo: “qualquer
dotação para obra, com valor aprovado de R$100 milhões, pode, teoricamente, ser
reduzida a zero ou aumentada, por meio de decreto, para dotação com valor de
até R$15,7 bilhões (30% sobre o montante de R$52,2bilhões)”.[3]
Nem ao menos
AUTORIZATIVO é o orçamento da União, pois com tanta flexibilidade e delegação
de competências para o Executivo, a permissividade é total. Há anos, os
parlamentares vêm aceitando passivamente os vetos às suas sugestões nas peças
orçamentárias e não têm mais voz ativa nas decisões sobre o uso dos recursos
públicos. O atual momento é muito semelhante aos tempos dos governos militares
quando ao Congresso só cabia homologar os gastos do governo. O que se observa é
uma inversão de papeis: onde o Legislativo propõe e o Executivo veta, como
observamos no caso recente da LDO2013 e, por outro lado, tudo que é proposto
pelo governo, o Parlamento aprova.
Toda essa
flexibilidade dada ao Executivo, traz sobreposição de regras, detalhamentos
excessivos e situações específicas que prejudicam a compreensão do conjunto
dessas autorizações. Tem-se assim um conjunto de autorizações caóticas e
fragmentadas , além de percentuais
aplicáveis para abertura de crédito cada vez maiores. Estes problemas somados à generalidade aplicada no detalhamento
das ações orçamentárias e da dissociação do planejamento (PPA) e orçamento
(LOA), geram o seguinte questionamento: até que ponto a Lei Orçamentária é pra
valer ou apenas uma peça formal de aceite homologada pelo Parlamento? Nesse quadro, o controle social exercido pela
sociedade e os movimentos sociais, que há décadas vêm investindo nessa área,
são os maiores prejudicados.
Para os movimentos de
mulheres e feministas, atuar no campo das finanças púbicas e no monitoramento
dos recursos destinados às políticas para as mulheres permitiu uma
significativa educação política . Foi na militância e na luta por mais recursos
para políticas específicas voltadas para as mulheres, que nos qualificamos e
incidimos na política econômica do país. Neste processo, começamos a discutir e
ter opinião sobre superávit primário, dívida pública, política fiscal e outras
tantas que influenciam nossas vidas e nosso dia-a-dia. Foi monitorando o gasto
público que mostramos quão desigual podem ser algumas políticas governamentais
que reforçam o papel tradicional e reprodutivo das mulheres.
Nossa atuação nessa
área trouxe mais que recursos financeiros para as políticas da igualdade. A
bancada feminina no Congresso passou a receber subsídios do Orçamento Mulher e
a atuar sistematicamente no processo e discussão das peças orçamentárias; os
movimentos de mulheres se apoderaram de informações importantes para sua
incidência no campo das políticas públicas, passando a propor ações
governamentais concretas. Atuar nos orçamentos públicos nos permitiu sair do
campo das reivindicações e dos pedidos e construir uma relação mais igualitária
com os governos, na qual elaboramos
propostas concretas de políticas públicas e exercemos o controle social em
cooperação com os gestores governamentais. Foi essa atuação que contribuiu para
o entendimento de que as políticas públicas são um direito da cidadania e não
apenas uma ação governamental para solucionar um problema da sociedade.
É todo um processo de
educação política e democrática que é desmontado a partir dessa decisão de melhoramento
“técnico” na metodologia de planejamento e orçamentação adotada pelo governo
federal. Com a adoção dessa medida
perdemos algo mais preciso do que o importante acesso às informações, perdemos
também direitos e processos de construção de cidadania.
O que perde o governo ao inviabilizar o controle social
dos gastos públicos?
Credibilidade. A parceria com a sociedade permite aos
governantes otimizar seus recursos e melhor definir suas ações, políticas e
assim cumprir seu papel com eficiência, eficácia e efetividade, que são princípios da administração pública a
serem respeitados. . Muitos problemas
sociais não podem ser resolvidos apenas pelo governo e dependem de sua parceria
com a sociedade, movimentos sociais, empresários e outros segmentos sociais.
Criar relações igualitárias e não de dependência (de informações ou recursos) é
essencial para tais parcerias. Assim,
uma primeira grande perda do governo é a situação de respeito, igualdade e de
real parceria nas suas relações com a sociedade organizada. Sem autonomia não
há parceria, mas sim manipulação, cooptação e defesa de interesses particulares
de determinados segmentos da sociedade.
Um bom exemplo da
parceria governo e movimentos de mulheres é a Lei Maria da Penha. Gestada
inicialmente por feministas e ativistas dos movimentos, a parceria com o
governo e o parlamento permitiu a edição de legislação adequada para o
enfrentamento à violência contra a mulher. O controle dos recursos tem
agilizado a implementação das políticas públicas e reforçado os entendimentos
entre as diferentes esferas governamentais e as mulheres. Em todo esse
processo, ganhou a democracia.
Outra perda é o aumento da corrupção. O controle social
é o mais eficaz meio de combater a corrupção dos agentes públicos e seus corruptores.
Além disso, é através do controle social do gasto público que se pode corrigir
rumos e melhor utilizar os recursos financeiros de determinada política ou
programa. Muitas vezes os cidadãos e cidadãs que atuam nos espaços de controle
social , como os conselhos temáticos, representam mão de obra qualificada e
gratuita para os governantes. Ao
inviabilizar a atuação do controle social no controle financeiro da
implementação das políticas públicas, o governo perde um dos maiores e mais
baratos controles no combate à corrupção
e defesa da lisura nas ações governamentais.
Aliados e Parcerias Dignas. No afã de conseguir
sua autonomia no campo dos recursos públicos administrados pelo governo federal
e de dificultar o monitoramento pela sociedade e o controle externo, além de
criar governo, cria facilidades para corrupção e o mal uso dos recursos,
trazendo como consequência direta a insatisfação social e o fortalecimento do
segmento de oposição e de crítica a sua atuação.
O governo perde muito ao inviabilizar o Orçamento Mulher
O Brasil era o único
país que tinha o acompanhamento diário, com amplo acesso às informações sobre a
aplicação dos recursos públicos voltados para as políticas para as mulheres.
Para nossa tristeza, será justamente no governo da primeira mulher presidenta
que o país, não mais poderá ostentar tal façanha. Os orçamentos sensíveis a
gênero (PSG) representam um esforço de décadas da ONU MULHERES que, no Brasil,
teve sua implementação pelo CFEMEA em parceria com a SPM da Presidência da República,
os movimentos de mulheres e feministas e o Senado Federal, através do SIGA.
A nova metodologia,
agrupando programas, adotada pelo governo da presidenta Dilma para elaboração
do PPA 2012-2015 já dificultou muito o monitoramento das políticas públicas e
agora, agregando as ações do Orçamento para 2013, torna inviável qualquer
monitoramento, pois será impossível fazer a correspondência do conteúdo do PPA
com os recursos definidos na LOA. Nos tempos da ditadura era assim: o que se
planejava não era associado ao que se gastava.
Mudamos isso com a
Constituição Cidadã[4]: O que se planeja
(Programas do PPA) tem sua correspondência direta com os recursos previstos na LOA[5]. Aparentemente,
o PPA também não é mais o núcleo do planejamento do governo pois não traz os
programas, planos e metas anunciados e divulgados pelo governo, tais como o Brasil
Sem Miséria, Brasil Carinhoso, Brasil Sorridente, Rede Cegonha, Saúde não tem Preço,
Bolsa Verde entre tantos outros que, por sua vez, também não têm sua
correspondência direta nas ações orçamentárias (LOA), tornando inviável monitorar
e avaliar seus recursos, pois com esses “nomes fantasias” nada existe nas peças
orçamentárias: PPA, LDO e LOA.
No PPA 2012-2015 o
governo já transformou seus Programas em Objetivos[6] e agora
aplica a mesma agregação e transforma as ações orçamentárias em POs (Plano
Orçamentário). Na LOA 2013, as ações orçamentárias foram generalizadas e
esvaziadas de seu significado como categoria de programação de despesa. A
correspondência entre PPA e LOA só foi possível em 2012 porque, através do
código dessas ações, se conseguiu fazer a ligação entre o PPA e a LOA.
Esse campo PO, mesmo
que inserido no SIAFI, por não constar da LOA, não permite identificar os
recursos autorizados e tampouco acompanhar sua execução orçamentária, pois nem
de codificação padronizada o PO dispõe. Além de infralegal, trata-se de campo
de preenchimento optativo por parte dos gestores públicos.
Reduzindo e
generalizando as Ações Orçamentárias e sem o respectivo vínculo (direto e recuperável)
com as Metas e Objetivos do PPA, o Poder Executivo fica com total autonomia
para gastar o que, onde, como e quando quiser. Seu limite será o Programa
Temático que é genérico e não traduz políticas ou prioridades governamentais,
mas apenas áreas de atuação do governo como Saúde, Trabalho, Assistência,
Previdência Social, etc.
Novamente se reforça
o conceito que, também em relação às políticas sociais, nem mais AUTORIZATIVO o
Orçamento é, pois não define e nem autoriza mais nada. Ou melhor, autoriza
tudo. Como proposto, o orçamento permite que o Executivo faça o que bem
entender. Essas mudanças prejudicam o controle social e inviabilizam vários
instrumentos que desenvolvemos ao longo desses anos, como é o caso do Orçamento
Mulher.
O Orçamento Mulher
tem mais de 10 anos de existência e presta inegáveis serviços às entidades,
especialistas e pessoas que acompanham e avaliam as políticas do governo
federal. É o instrumento principal para monitorar o gasto e a execução
orçamentária e financeira das ações governamentais e políticas para efetivar os
direitos das mulheres. Até 2011,
a seleção para integrar o Orçamento Mulher era por
Programa e os mesmos eram agrupados em áreas temáticas. Com a generalização dos
programas, a partir de 2012, mudamos a metodologia de seleção e passamos a
selecionar as ações orçamentárias, que foram agrupadas em categorias de
análises que retratam como essas ações impactavam a vida e autonomia das
mulheres.
Atualmente, com a
generalização e agrupamento das ações da LOA,
será impossível identificar o montante de recursos destinados às
políticas para as mulheres. Já havia distorções no montante (superestimado) dos
recursos alocados no Orçamento Mulher, mas eram aspectos identificáveis e
ponderados nas análises feitas. Como o planejamento governamental não é
elaborado a partir da perspectiva de gênero, sempre haverá dificuldades para
conhecer o montante real de recursos para implementar políticas para a
igualdade. Contudo,até 2012 era possível ponderar e alertar para possíveis distorção
dos valores alocados, o que passa a ser inviável a partir de 2013
Com as novas
metodologias do governo federal, só nos restará acompanhar ações pontuais e
específicas, sem nenhuma possibilidade de agrupamento ou formação de conjunto
de políticas públicas para as mulheres, no âmbito do orçamento do governo
federal. Também as séries históricas sobre as políticas para as mulheres serão
perdidas. A falta de continuidade
histórica das análises é uma perda inestimável. Na área das políticas
sobre violência contra a mulher, por exemplo, o Cfemea conta com informações do
gasto federal desde 1995 até 2012.
E o que mais revolta
é que todas essas mudanças metodológicas são passadas como “melhorias técnicas”
e para melhorar e facilitar a participação social: PPA 2012-2015 Plano Mais
Brasil, Mais participação. E no site do ministério do planejamento onde se acha
o link para Orçamento Federal ao Alcance de Todos ainda temos pérolas como: “O objetivo deste orçamento simplificado,
podendo ser também chamado de “orçamento-cidadão”, é contribuir para a formação
de uma sociedade melhor informada e mais participativa na gestão dos recursos
públicos”. É de doer...
[1]
Gilda Cabral é feminista e especialista em políticas públicas.
[2] Congresso Nacional Outubro/2012. Consultorias de
Orçamento da Câmara e Senado. Nota Técnica Conjunta Nº 8, de 2012 – Subsídios à
apresentação do Projeto de Lei Orçamentária para 2013 – PL Nº 24/2012-CN
(Mensagem nº 91/2012-CN-387/2012, na origem), pagina 88: : Em 2002, por
exemplo, a Lei Orçamentária estabeleceu 31 dispositivos sobre a abertura de
créditos suplementares (lei nº. 10.307, de 2002, arts 4º e 9º). Onze anos após,
o PLOA 2013 propõe regulamentar o tema em 96 dispositivos, arts. 4º e 7º, ou
seja, bem mais que o triplo de disposições, sem que tenha havido qualquer
modificação substancial nas normas básicas (CF, Lei nº 4320, de 1964, e LRF),
no período, que justifiquem essa profusão de disposições regulamentares”
3 Congresso Nacional Outubro/2012, Nota Técnica Conjunta
Nº 8, de 2012, página 90
[4] CF - Art 165, TÍTULO
VI- Da Tributação e do Orçamento, CAPÍTULO II - DAS FINANÇAS PÚBLICAS, Seção
II - DOS ORÇAMENTOS
[5] PPA –
Plano Plurianual, LOA – Lei do Orçamento Anual, LDO – Lei das Diretrizes
Orçamentárias; FUNCIONAL PROGRAMÁTICA – código com vários campos que faz a
ligação entre PPA e LOA, entre outras funções e SIAFI - Sistema Integrado de Administração
Financeira do Governo Federal
[6]
Até 2011, existiam
programas e ações específicas para, por exemplo: vigilância sanitária, atenção
básica, saude suplementar, etc. A partir do PPA 2012-2015 todas ações da área
de saúde estão em um único Programa Temático que é o fortalecimento do SUS.
Um comentário:
Excelente artigo. Nesse caso já que Dilma aceita esse arrocho na democracia acontecer, melhor fechar o Congresso e instaurar desde agora a Ditadura Civil.
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