sábado, 27 de outubro de 2012

Se me permitem sonhar, texto de Chico Whitaker sobre as eleições deste ano

Chico é um incansável lutador pela radicalização da democracia em nosso país. Arquiteto, católico militante da Comissão Justiça e Paz, foi líder do governo de Luiza Erundina na Câmara Municipal de São Paulo. Em 2006, no auge da crise do mensalão, foi um dos que se frustrou com os rumos pragmáticos do partido. Mas, a partir daí, aumentou sua militância social, seja na condução do Fórum Social Mundial, seja na discussão da construção de maior controle social na política brasileira. O texto que reproduzo foi escrito no final desta semana. Chegou agora, via email, para mim. É continuação de um texto famoso que ele escreveu quando da eleição de Dilma. Agora, escreve sobre as eleições municipais, sobre o autoengano promovido pelos marketeiros e sobre a necessária participação popular na gestão.


SE ME PERMITEM SONHAR II
Chico Whitaker

O grande argumento dos que são favoráveis ao voto obrigatório é o fato das campanhas eleitorais criarem uma ocasião para a formação política de todos nós, cidadãos e cidadãs, sobre nossos problemas e as alternativas para resolvê-los - contando até com horários especiais na TV e nas rádios. Mas no Brasil quem manda no conteúdo e na forma das campanhas não são os candidatos, nem os dirigentes políticos, mas os marqueteiros. Os candidatos a vereador podem conduzir suas campanhas como queiram, quando não têm dinheiro para pedir o auxilio de publicitários. Mas quem postula o cargo de Prefeito está condenado – até pelo seu partido, que paga as despesas - a seguir à risca as instruções destes profissionais.[1]
E eis que chegamos ao final de mais uma campanha, agora para Prefeitos e Câmaras Municipais com o sentimento de frustração de sempre.
As campanhas dos marqueteiros
O mundo dos profissionais da publicidade é o da concorrência, da impiedosa competição entre empresas. Para vender sabonetes necessariamente têm que dizer que o que propagandeiam lava mais branco. Se baixarem as vendas, perdem o emprego, e as empresas - e os que nelas investiram - vão para o brejo. A luta é de vida ou morte. Os marqueteiros também competem pelas maiores remunerações. Seu sucesso não tem muito a ver com objetivos propriamente “políticos”. Ganha o mais “milagroso” – ainda que use propaganda enganosa – que eleja o candidato mais “difícil”.
Os “bonecos manipulados” – e suas gravatas ou lenços bem combinados, a roupa impecável, os óculos e os cabelos que convém à imagem a transmitir – não podem parecer desagradáveis, nem dizer coisas de que uns e outros não gostem ou que os amedrontem, ou “dividir” a população. Para acertar a pontaria pode-se usar as pesquisas de opinião, que modificam até enredos de novelas em pleno curso. As campanhas eleitorais se transformam assim em campeonatos de promessas e juras de fidelidade. Especialmente aos setores sociais em que se aninhe o maior número de votos.
As promessas são necessárias, é óbvio. E tem que ser realizáveis, aparentemente pelo menos, para ganharem credibilidade. Mas é incogitável levantar dúvidas sobre o que se vai fazer. Nunca se pode admitir que o candidato (ou seu partido) tenha cometido algum erro. A memória, por sua vez, tem que parecer prodigiosa, sem falhas em números, sem demonstração de insuficiências de conhecimento.  Assim como é inimaginável um candidato modesto... A simpática expressão “afinal, ninguém é perfeito” até pode ser usada, mas em tom de brincadeira, para que o “boneco” pareça humano. O “sabonete” de vez em quando não lava assim tão branco? Dizer isso seria um autêntico suicídio comercial - e eleitoral. Imagine-se então um candidato humilde... E de fato se há algo que exigiria muita humildade é aceitar mandatos para resolver os problemas de um país, de um Estado, de uma grande cidade... O que é para ser realçado nas campanhas é o enorme poder daquele que está pretendendo “comandar” uma maquina administrativa às vezes imensa.
Nesse quadro, qual candidato teria a coragem de dizer que as coisas são um pouco mais complicadas do que parecem ser? Somente aqueles que entrem no páreo só para aproveitar a tribuna... Em plena 2ª. Guerra mundial Churchill disse um dia aos ingleses, cujo governo chefiava, que só podia prometer “sangue, suor e lágrimas”. Mas naquele momento aviões e bombas zuniam sobre as cabeças em seu país. Em nossas terras – nem tão pacíficas assim - não é preciso ir tão longe, por mais dramáticos que sejam os problemas. Mas basta prometer por exemplo uma inversão de prioridades – ainda que seja em nome da justiça social, algo que ninguém se atreve a contestar - para já criar resistências eleitorais. É preciso ser corajoso mas também maneirar...
Deseducação e passividade 
Não há portanto espaço em nossas campanhas para ingênuas pretensões de formação política dos cidadãos e cidadãs. Nem mesmo para esclarecimentos sobre as funções e responsabilidades dos poderes políticos, para que se possa exigir que cada um cumpra efetivamente sua função. Com isso, em vez de educativas, como deve ser toda atividade política, as campanhas eleitorais se tornam deseducativas. E são extremamente prejudiciais à democracia porque levam à passividade dos cidadãos.
Em texto escrito ao final da campanha presidencial de 2010[2], lembrei uma imagem usada entre os que sonham com o “outro mundo possível”, frente ao desafio da superação do sistema capitalista: nenhum David terá uma funda tão certeira para desequilibrar o gigante de um só golpe. O que precisamos é da infinita multiplicação de enxames de abelhas atacando continuamente o monstro, por todos os lados. Se alimentarmos a passividade nunca teremos abelhas em quantidade suficiente – ainda que seja somente para resolver os problemas por exemplo de São Paulo, outro monstro que nos esmaga.
Na campanha que agora termina a frase mais ouvida foi: vou fazer isto, vou fazer aquilo. Vou fazer muito mais que os outros e coisas muito mais importantes que as dos outros. Garanto, com base no que já “fiz”! Na verdade a postura básica de quem postula cargos de “comando“, como se diz, é fundamentalmente paternalista, no estilo do “deixa prá mim que eu resolvo”. Ela mantém a dependência dos cidadãos e cidadãs. Eleja-me que você terá casa, emprego, transporte, médico, comida. As coisas acontecerão porque quem comandará serei eu. E ninguém mais. Há até os que dizem: serei “durão” – por exemplo com malfeitores, bandidos violentos, corruptos, aproveitadores da desgraça ou da fraqueza alheia.
Quem tem filhos ou filhas sabe que não podem mantê-los sempre na sua dependência ou proteção. A solidariedade familiar é necessária, mas eles têm que transmitir critérios que os ajudem a crescer e se tornarem autônomos, em vez de ficarem sempre agarrados, infantilmente, à barra da saia da mãe. 
Ora, nossos políticos parecem preferir que fiquemos permanentemente agarrados à sua onipotência, como cidadãos passivos – que participam da política como espectadores e esperam pelas autorizações e concessões que virão de cima. Sua postura é a de quem quer manter a sociedade infantilizada. Pagarão um preço por isso: o agravamento dos problemas que têm que resolver e o surgimento de cada vez mais problemas. E o sentimento de impotência dos cidadãos levará cada vez mais gente a sonhar com mudar-se daqui, no caso de nossa cidade de São Paulo. Ao mesmo tempo em que, kafkianamente, desesperançados (e iludidos) de outros lugares sonham em vir para cá.
Mas o que está por detrás da obediência dos candidatos aos marqueteiros, para que procurem nos enganar sobre sua onipotência? Talvez seja também o seu medo de que nos emancipemos, se descobrirmos que o candidato não pode tudo e nós temos força política como sociedade. Essa força pode se tornar maior do que a dos outros com quem ele compete pelo poder. Com estes - inclusive seus adversários - ele pode se “acertar” depois de eleito, para juntos tentarem evitar, tristemente, algo que lhes parece um mal maior: uma sociedade capaz de exigir que cada um cumpra seu papel - até como oposição. Cidadãos ativos, com capacidade de criticar, reagir, resistir, são de fato uma ameaça ao poder conquistado ou a conquistar, na medida em que assumam corresponsavelmente seus deveres e, criativamente, funções que não estão sendo assumidas, ao mesmo tempo em que  exijam o respeito a seus direitos.
O autoengano
Nossas campanhas eleitorais têm outro efeito igualmente danoso: a armadilha do autoengano.  Campanhas conduzidas por marqueteiros levam os candidatos, à força de fazê-los repetir mil vezes “sou o maior e o melhor” - como dizem todos os sabonetes - a passarem a acreditar que podem mesmo tudo, que tudo sabem, que sabem tudo o que querem, e que suas ordens serão sempre e inteiramente obedecidas. Todos conhecemos a vaidade como uma das fraquezas humanas.
Assim, não serão somente os marqueteiros os culpados dessa autêntica distorção de nossas campanhas eleitorais, reduzidas a campanhas de vendas de ultra-produtos. Os próprios candidatos acabam se considerando ultra-produtos. Não fosse assim não falariam com tanta segurança diante de câmeras e de eleitores. Nem se entregariam, imediatamente depois de eleitos, ao afã de destruir tudo que seus antecessores fizeram - ainda que tenha sido benéfico para o povo.
Se não conseguirmos que os candidatos abandonem essa postura de onipotência, as eleições serão sempre uma pura repetição de promessas salvadoras. Até que ninguém mais vote em ninguém, por falta absoluta de credibilidade dos candidatos. Que nos alerte o alto número de abstenções, votos brancos e nulos, que em São Paulo e outros lugares não foi desprezível nestas eleições de 2012. As pessoas não são assim tão ingênuas para achar que para “fazer coisas” basta a vontade do Prefeito.
É preciso que seja dito, numa campanha, que o poder de um Chefe de Executivo eleito não será ilimitado. Ele terá que enfrentar muitas “vontades” diferentes da sua. Por exemplo, no caso municipal, a da Câmara de Vereadores, que deve, além de fiscalizar o Prefeito, dar-lhe as indispensáveis autorizações para agir, por meio das leis que aprove. Como atuarão os vereadores? Quais interesses os terão ajudado a serem eleitos? Serão os mesmos que o Prefeito se propôs a defender ou que o ajudaram a se eleger?  Como a mídia (e os interesses por trás dela) reagirá frente à “vontade” do Prefeito? E os partidos que perderam a eleição e utilizarão todos os meios que puderem para ganhar de novo o poder, até impedindo uma boa gestão ou pelo menos desgastando o Prefeito eleito? E os outros políticos que competem com o Prefeito - até dentro de seu próprio partido - em seus eventuais sonhos de voos mais altos? E os emperramentos da máquina administrativa, mal acostumada, recheada de filiados a partidos opositores? Que alianças terá que fazer para que ele mesmo ou pelo menos seu partido se mantenha no poder conquistado? Ou pelo menos para obter maioria na Câmara e esta não atravanque o exercício de sua ”vontade”? Nem falemos de probleminhas tipo corrupção... Que cercarão o Prefeito de todos os lados...  Nem da desilusão que pode criar, tanto maior quanto mais altas as expectativas criadas - o que não nos falta são exemplos disso. E isto é ainda mais perigoso na difícil construção da democracia.
 A pergunta a esta altura de nossa reflexão poderia ser: não dá então para explodir esse esquema, já que ele parece tão negativo? Ou seja, fazer com que os publicitários – respeitando-os como profissionais, desde que não se disponham a prestar outros serviços, como estamos vendo em tempos de julgamento do dito “mensalão” - desenvolvam campanhas eleitorais que justifiquem o  voto obrigatório?
Isso é evidentemente assunto para daqui a dois ou quatro anos, já que esta campanha terminou. Mas talvez possamos, no embalo da preocupação com nossa cidade de São Paulo, refletir um pouco sobre alguns dos conteúdos que poderiam ter sido abordados na campanha eleitoral de uma cidade imensa como São Paulo.
Para isso peço licença para retomar alguma coisa do artigo que escrevi no final da campanha presidencial de 2010, a que já me referi.
A relação Executivo-Legislativo
O titulo do artigo de 2010 - “Se me permitem sonhar” - indicava minha distância do que nos tinha sido impingido pelos marqueteiros. Falei das questões que gostaria que Dilma enfrentasse, se fosse eleita como eu esperava. Mas me parece que elas continuam válidas para o nível municipal de governo. Atrevo-me então a escrever “Se me permitem sonhar II”, com mais alguns “sonhos”, esperando agora que Fernando Haddad seja eleito.
A primeira questão foi a necessidade de “uma completa reviravolta” nas relações entre Executivo e Legislativo, para enfrentar distorções “que fazem parte da nossa cultura política há muitíssimos anos”. Surpreendentemente este tema ganhou espaço, na consciência nacional, durante o ultimo mês das campanhas municipais. Por uma coincidência forçada ou não, ele irrompeu em nossas televisões e jornais, com o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, de crimes relacionados com essas distorções.
Ficaram de lado outras distorções de nossas práticas, já elencadas pelas propostas de reforma política que circulam[3]. E não sabemos se o STF julgará também outros “mensalões” e trocas de favores, consolidando sua jurisprudência. Sem duvida, no entanto, algo se avançou, embora tenha sido pena que o custo do avanço tenha sido pago por um partido criado para combater também tais práticas. Mas ele foi a “bola da vez”: caiu na armadilha em que estavam presos os demais partidos, para gáudio dos que o temiam.
Esse julgamento repercutirá nas relações Executivo-Legislativo ao nível federal. O usual “é dando que se recebe”, da ironia do finado Deputado Cardoso Alves, terá que ser mais cuidadoso... Mas ele repercutirá necessariamente também nas relações dos Prefeitos com as Câmaras Municipais, onde tais distorções também existem e muito, embora em escala menor.
A nível nacional, os interesses em jogo, nas decisões que o Executivo deve que tomar e o Legislativo autorizar, estão de fato em patamar mais alto. Como são por exemplo os das grandes empreiteiras de obras públicas, dos bancos, do agronegócio, dos “ruralistas” e desmatadores,  e até de esquemas internacionais.
Mas numa cidade imensa como São Paulo as grandes empreiteiras também se fazem presentes, já que as obras viárias são também de grande porte. Surgem até esquemas internacionais, como o da FIFA orientando nosso planejamento urbano, como já disse um professor da USP. E em São Paulo emergem com igual força os interesses imobiliários, que estão entre os que mais lucram nas grandes cidades. Seis vereadores da CPI da Câmara Municipal sobre os frequentes incêndios nas favelas, nos quais se suspeita da ação do setor imobiliário, tiveram suas campanhas eleitorais financiadas por esse setor...[4] Que poder terá o Prefeito para enfrenta-lo, quando se tratar de coibir a especulação e controlar a verticalização que ele impôs à cidade, através de leis a serem votadas pela Câmara?
Assim, nesta campanha eleitoral municipal bem que poderia ter sido enfocada a questão da relação entre Executivo e Legislativo – onde se situa, como eu disse em 2010, o ninho da serpente da corrupção, com o usual sistema de cooptação (para não dizer compra) de maiorias. Em vez disso, ela ficou como sempre centralizada na eleição do Prefeito, com os candidatos a vereador – e suas respectivas “éticas” - se agitando em torno dela como enfeites desnecessários.
A superação do capitalismo
Mas a segunda questão do meu texto de 2010 era bem mais atrevida. Já que se tratava de sonhar, porque não enfrentar a necessidade de superar o sistema capitalista em que o Brasil está inserido, dada a possibilidade, necessidade e urgência do “outro mundo possível”? “Nada mais nada menos”, escrevi então, pedindo perdão pela ousadia e tentando explicar longamente o porquê dessa ousadia.
Ora, a superação do sistema é algo que caberia muito bem discutir também em São Paulo, pelo menos pelos candidatos que também acreditam que esse “outro mundo” é necessário: outro professor da USP, dos meus velhos tempos, já disse que a cidade não era senão uma “lucrópolis”. Haveria questões cuja discussão na campanha elevaria o nível de consciência geral sobre as causas de muitos de nossos problemas. Como essa tendência a privatizar serviços públicos rentáveis, ou mesmo discutir se as parcerias publico-privado são melhores para o publico ou para o privado...
Mas a mudança do sistema econômico é um todo, que só é cogitável se atingir todo o país, ainda que seja por etapas. A dificuldade já é grande a nível nacional, quando se vê nossas “ekipeconomicas”[5] raciocinando somente “dentro” do sistema: suas “políticas anticíclicas” frente à crise mundial do capitalismo, por exemplo, empurram parcelas cada vez maiores do povo a mergulhar em outro sonho, o do consumo, cuja expansão é um dos principais meios usados para a retomada do crescimento econômico. Nem falemos que o próprio “crescimento econômico” é um dogma que parece inquestionável, em todo o mundo - para satisfação dos que concentram a riqueza produzida.
Como um pobre Prefeito poderia, num mundo totalmente dominado pelo capitalismo, interferir em políticas industriais e agrícolas, de importação e exportação, em questões cambiais, de inflação, de comercio, de energia, de financiamento, de acordos internacionais, para que a produção de bens e serviços no Brasil fosse desviada da busca insaciável do lucro e se voltasse para o atendimento das necessidades humanas?
Há noticia de prefeituras que fazem experiências no coração do sistema, por exemplo com “moedas sociais” que podem quebrar o domínio do dinheiro. Tais experiências no entanto só interfeririam na marcha do conjunto se pudessem se multiplicar milhares de vezes. O que parece meio longínquo.
Mas há questões da “grande cidade” em que poderia ser mais claramente mostrada a necessidade de superar o sistema. Tomemos um exemplo. Estamos todos absolutamente de acordo que a mobilidade urbana é um dos nossos grandes problemas. A dimensão da cidade, a verticalização e concentração provocada pelo setor imobiliário, assim como a total insuficiência do transporte coletivo tornam esta cidade um inferno cotidiano para a grande maioria de seus moradores – ricos e pobres. Estes gastam um quarto de seus dias indo de suas residências ao trabalho e vice-versa, apertados em ônibus e metrôs superlotados exatamente nas horas em que têm que se deslocar. E só a possibilidade de multas impede os ricos – entre os que não compram ou alugam helicópteros... – de buzinarem irritadíssimos, como se isto resolvesse as coisas, ao se verem praticamente bloqueados em enormes congestionamentos. Nos quais, alem do mais, têm que manter fechados os vidros de seus carros, blindados ou não, por medo de assaltos e violência. Um risco que também correm os usuários dos demorados trajetos dos ônibus, quando são obrigados a completá-los indo a pé até suas casas, pela periferia afora ...
 Será que a tarefa de um Prefeito é somente buscar dinheiro para aumentar o metro ou outros meios de transporte coletivo, ou para grandes obras viárias a serem rapidamente engolidas pelo “excesso de veículos”, como dizem a cada cinco minutos as informações das rádios sobre a situação do trânsito? Deve o Prefeito aceitar passivamente (ele também) que sejam despejados todos os dias mais e mais carros novos na cidade? Porque não reagir (e denunciar) a sede de lucro da indústria automobilística internacional - que se prepara para multiplicar o número de montadoras em nosso país - e as opções de política econômica que dão a essa indústria um papel central no crescimento econômico? Em vez de viajar para Brasília com o pires na mão para criar novas dividas para o Município, cobrando promessas de recursos sempre insuficientes, não poderia o Prefeito levar essas questões para um debate nacional, liderando um grito que venha de todos os moradores de sua cidade? Mas aí entra a questão: sabemos que esses moradores não lhe darão nenhum apoio. Para muitos o sonho de consumo é exatamente um carrinho, ainda que de segunda mão, sem nem perceber que ele submergirá nos congestionamentos...
Nessa perspectiva é que entra também a possibilidade de uma ação pedagógica do Prefeito, como deveria ser a de todo político, abrindo os olhos de seus concidadãos para o fato de estarmos todos aprisionados na roda de uma lógica implacável, que gira em torno da busca insaciável de algo impessoal como o dinheiro; e que devemos e podemos colocar um freio nessa roda, para recolocar nos trilhos a atividade econômica formatada pelo capitalismo. Ou seja, para um Prefeito Municipal não se trata somente de “fazer coisas”. Ele recebeu um mandato para resolver problemas. Mas ele pode conscientizar seus concidadãos, conversando com eles sobre as causas desses problemas, “para que se juntem com outras abelhas”.
A participação popular como uma necessidade
É nesta altura de minha reflexão que será útil abordar a questão da participação popular. Não a concedida de cima para baixo, como a de quem entrega os anéis para não perder os dedos – como na famosa “participação nos lucros”. Ou a de quem manipula a sociedade, para fazê-la crer que terá algum poder com as pequenas portas que lhe serão abertas no processo decisório da estrutura burocrática do governo, neste ou naquele “conselho”. Nem a de que é vista como um direito – que é de fato - mas só é usado numa perspectiva reivindicatória frente ao todo poderoso Prefeito, permanecendo portanto numa postura de dependência.
O que precisamos é da participação provocada, estimulada, alimentada - por políticos não paternalistas nem medrosos - que a vejam não como uma ameaça ao poder que pensam que tem, mas como um processo que pode lhes dar mais poder, porque será então um poder conjunto de toda a sociedade. Um poder social do qual eles é que participarão, e não o inverso, juntamente com cidadãos e cidadãs cada vez mais conscientes das causas dos problemas que enfrentamos e das reais possibilidades de superá-los. Um poder que poderá este sim, crescer o suficiente para enfrentar todos os interesses que estão contra os moradores da cidade, e que continuarão atuando tanto dentro da Prefeitura como na Câmara Municipal.
Esse tipo de Prefeito pedirá aos cidadãos que “controlem” sua administração e convidará a cidade a conversar com ele, a refletir com ele sobre as prioridades das ações da Prefeitura, descentralizando-a ao máximo para que todos tenham condições de se exprimir frente aos problemas que vivem concretamente e que eles conhecem muito mais do que ninguém; ele dará ouvidos de forma sistemática e continua a quem se organizar em associações e em movimentos de luta por direitos, ajudando toda a cidade a assumir a superação das desigualdades em suas condições de vida; consultará a população com os plebiscitos e referendos previstos na Lei Orgânica do Município, sempre que decisões com grande impacto na vida da cidade tenham que ser tomadas; fará dessas consultas vastos processos de discussão dos problemas e das soluções propostas, como se fossem campanhas eleitorais centradas em conteúdos e não pessoas; discutirá com toda a sociedade a Lei de Diretrizes Orçamentárias, para decidir sobre as opções do orçamento a ser elaborado para o ano seguinte, antes de levá-la à Câmara para votação, em vez de chamar a população – e os próprios vereadores – para uma discussão limitada de orçamentos já engessados; apresentará para a discussão de todos, nas associações de bairro, nas escolas, o Plano Diretor que deve orientar a ocupação do espaço urbano e a implantação dos equipamentos coletivos de que temos necessidade. Essas e muitas outras iniciativas serão possíveis, pela criatividade de uma cidadania ativa que sabe que detém um poder político.
Sei que é praticamente impossível - humanamente impossível... - que aconteça o que eu estou imaginando: que o Prefeito, depois de terminada a campanha eleitoral em que se mostrou firme e forte, passe a conversar com seus concidadãos. Modestamente. Humildemente. Mas o titulo deste texto não é “se me permitem sonhar”?


25/10/2012


[1] Nem por isso - ou talvez também por isso - escapam de outras duas práticas negativas: a partidarização exacerbada, que impede análises objetivas das propostas, e o tiroteio que visa destruir a vida política e pessoal dos oponentes.

[2] Procurei reunir nesse texto meus argumentos sobre a necessidade de sair do sono hipnótico em que o sistema capitalista nos mantém. Para quem tiver paciência de o ler – é meio longo - ele está transcrito no blog senospermitemsonhar.wordpress.com.
[3] Sobre uma dessas distorções, a do financiamento das campanhas, ler o artigo “Propaganda eleitoral, máquina cara e nebulosa”, do Padre Virgilio Leite Uchoa, publicado no número 237 (setembro de 2012) do Boletim “Rede” do Centro Alceu Amoroso Lima.
[4] Dados da Justiça Eleitoral, publicados em Brasil de Fato de 11-17/10/1012.
[5] Termo usado por Elio Gasperi, em tempos de FHC.

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