quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A escola pública possível

Mais uma matéria fantástica assinada por uma das mais premiadas jornalistas mineiras, Daniela Arbex.

DÉCADAS DE DILEMA NA ESCOLA PÚBLICAS

Apesar da universalização do ensino público, a rede não conseguiu manter a qualidade dos anos anteriores e hoje enfrenta problemas, como a desvalorização do professor e falta de infraestrutura

Por Daniela Arbex
Na sala de visitas, todos falavam ao mesmo tempo. Parecia reunião de turma da escola. E era. A diferença estava na idade dos participantes. Formandos de 1977, os ex-alunos do ginásio da Escola Estadual Marechal Mascarenhas de Moraes, o Polivalente de Teixeiras, não têm mais 15 anos. Estão na casa dos 50, tornaram-se pais, alguns até avós. O que os une, no entanto, é a profunda ligação com o colégio que os transformou. Por isso, há quase quatro décadas, eles têm encontro marcado para enganar a saudade. Não só os antigos estudantes participam, mas professores da época, diretora, merendeira e outros funcionários. Hoje o grupo de antigos estudantes é composto por procurador federal, oficial da Marinha, empresários, enfermeiros, professores universitários. Juntos, eles são o retrato de uma escola pública que deu certo, cujo projeto pedagógico conseguiu contagiar meninos e meninas por uma vida inteira. A experiência da turma de 77 é provocadora. Trinta e seis anos depois, o Polivalente mudou de cara. É hoje uma das escolas estaduais com o maior número de ocorrências policiais da cidade. É mais que isso. É a imagem do que se transformou a escola pública brasileira. O que os especialistas tentam explicar é em que momento o ensino público perdeu a sua importância na sociedade. O que a sociedade quer saber é como resgatar um modelo escolar recente de sucesso.
Construído em 1974, o Polivalente mudou o cenário do Teixeiras, na Zona Sul. Era a primeira vez que um bairro pobre receberia uma escola grandiosa no tamanho e na proposta pedagógica, a ponto de fazer muitos alunos do Centro, que já estudavam em colégios particulares, migrarem para lá. Rapidamente, o Marechal Mascarenhas de Moraes conquistou espaço na vida da comunidade e fincou raiz no coração dos alunos da sexta, sétima e oitava séries do antigo primeiro grau, hoje ensino fundamental. Inovador, ofereceu bem mais do que o quadro e o giz. Além das matérias tradicionais, o Polivalente tinha coral, teatro, dança e esporte, dispondo, ainda, de quatro práticas no currículo: industrial, comercial, agrícola e educação para o lar. "Nas práticas comerciais, por exemplo, cada um tinha a sua mesa. Havia balcão, mimeógrafo, nós aprendíamos todo o processo de venda, questões de almoxarifado, estoque, emissão de nota fiscal. Na prática agrícola, contávamos com trator. Criávamos coelho, e a horta produzia tanto que os alunos carentes levavam parte da produção para casa. Na educação para o lar, aprendemos como sentar a mesa, a comer de garfo e faca, a fazer pratos básicos, a dar bainha em uma calça e tivemos até aulas de puericultura e educação sexual. Nas artes industriais, havia uma gráfica. Fomos nós que fizemos o convite de formatura", lembra Geraldo Aquino, 50 anos. Ex-presidente do Centro Cívico, o empresário mantém o espírito de liderança da juventude, sendo o grande responsável por manter a união da turma. "Devo muito ao Polivalente. Os valores que carrego até hoje, aprendi nessa escola", explica Geraldo, que hoje reside em Goiás.
Evandro Mendonça Fortuna, 51 anos, do Centro Regional de Inovação e Transferência Tecnológica (Critt) da UFJF, divide com o amigo da escola a gratidão pelo que recebeu. "Não aprendemos só matemática e português. Aprendemos a ser gente. Quando saí de lá, fui morar sozinho no Rio. Sabia costurar e cozinhar", lembra. A bióloga Vera Lúcia Teixeira, 52, residente em Barra Mansa (RJ), conta que teve o interesse pela biologia despertado nas aulas de ciências. "O professor Jarbas levava a gente a campo. Também plantávamos e aprendíamos a valorizar o meio ambiente de forma prática. Todo mundo adorava ir para a escola. Não ficávamos numa sala só, estagnados. Ao invés de o professor trocar de sala, os alunos é que trocavam a cada disciplina. Era como se a gente fosse em busca do conhecimento", revela a vice-presidente do Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul. A diretora da época, Cesarina de Lima, 65, destaca que uma das funções da escola era justamente o despertar de talentos. "A educação é a base de tudo, haja vista os profissionais competentes que nossos alunos se tornaram. A amizade construída entre estudantes, professores e direção perdura até hoje. A gente era uma família polivalente."
Aluna da turma de 1977, a enfermeira Regina Muniz, 50, não consegue esquecer as revolucionárias aulas no laboratório de ciências, com o professor Jarbas. "Um dos dias mais marcantes para nós se deve à sensibilidade do Jarbas, que permitiu que observássemos os espermatozoides pela lente de um microscópio. Só vim ter uma aula como essa de novo na faculdade", comenta, antes de dar uma gargalhada. "A gente está procurando até hoje o doador desse material. De vez em quando, um assume a autoria", diverte-se Gilson Farani, 50, que atualmente trabalha em um escritório de advocacia.


'Os professores acreditavam naquela proposta'

Olhar para trás pode ajudar a dar uma nova direção ao presente da educação. Embora não existam fórmulas prontas para ganhar o interesse do aluno, a experiência do Polivalente de Teixeiras mostra que é possível fazer a diferença e criar um ambiente propício ao aprendizado. Depende de muitas coisas, mas também do comprometimento da equipe pedagógica com a comunidade escolar. "Um dos diferenciais era o interesse dos professores por nós. Sentíamos essa proximidade, e isso foi importante na nossa formação como indivíduos. Por isso, além da nossa, outras turmas tiveram uma história de sucesso", comenta o engenheiro Wesley Braga, 50.
Toninho Dutra, superintendente da Funalfa, é mais um exemplo. Um ano mais novo do que a turma de 1977, ele teve o interesse pela cultura despertado na escola. "Iniciei teatro lá. Havia humanidade presente em todas as disciplinas, e o projeto pedagógico passava pela questão dos valores. A escola era um lugar de prazer, no qual os professores se aproximavam dos alunos."
A enfermeira Regina concorda: "Os professores acreditaram naquela proposta e deram muito de si. Isso acabou nos contagiando. Havia uma magia que permaneceu nas nossas vidas." Para a procuradora da Fazenda Nacional Maria Aparecida da Silva, 50, havia acolhimento. "O papel transformador dessa escola na minha vida foi fundamental. Além da proposta da formação intelectual, havia calor humano. O Polivalente reunia gente de vários níveis, e eu estava no da indigência social. Mesmo nessa condição, a escola me mostrou que era possível mudar."
O depoimento da procuradora é carregado de emoção. Filha de mãe lavadeira e pai servente de pedreiro, ambos analfabetos, ela lembra que não tinha sapato para estudar e que precisava encontrar com a irmã no caminho da escola, a fim de trocar com ela o seu chinelo por um kichute. Como na sua casa haviam dez bocas para comer, muitas vezes, Aparecida chegava com fome no Polivalente e era socorrida pela cantineira Thereza Maria Carnot, hoje com 80 anos. "Ela era um dos corações da escola naquela cantina. Dona Thereza tinha a consciência que primeiro era necessário forrar o estômago para a criança aprender. Ninguém nunca percebeu, mas ela me dava almoço antes do início das aulas. A pedagogia do amor funciona muito. O Polivalente me educou, mas também mostrou que estaria ao meu lado. Tive mobilidade social por conta dessa orientação pedagógica."
A ex-cantineira do colégio sustenta que tinha consciência da sua missão, mas que não imaginava o alcance das suas ações na vida desses ex-alunos. "Nunca me passou pela cabeça que eu fui tão importante para aquelas crianças. Hoje agradeço a Deus por não ter passado pela vida em vão. Na minha comida, o ingrediente a mais era o carinho."


Perda de recursos e falta de projetos

Apesar de ser um ideal democrático, a educação para todos impôs dilemas desconhecidos pelas escolas até a década de 1990, como a massificação do ensino, provocada pela urbanização acelerada. Antes disso, a escola pública ensinava para minorias. Quase metade da população até o início da década de 1980 não frequentava os bancos escolares. Segundo o doutor em sociologia Rudá Ricci, ao universalizar o ensino fundamental, colocando nas escolas quase 100% das crianças de 7 a 14 anos, o Poder Público deu um passo importante em favor da infância e adolescência brasileira, porém não se preparou para isso. O fato é que, nesse período, alunos das classes média e alta trocaram a rede pública pela privada, migração provocada pelo fim do financiamento externo da educação no país. A perda de recursos levou a um quadro de desorganização dos projetos educacionais, culminando na perda de qualidade do ensino e no desmonte de escolas, como as polivalentes. Os salários dos educadores, que na década de 1970 chegavam a 12 mínimos, também foram achatados.
Fragilizada na sua importância, as escolas públicas tornaram-se endereço dos filhos das classes trabalhadoras, cujos pais e avós, muitas vezes, jamais sentaram num banco escolar. O fato é que muitos filhos da rua conquistaram um passaporte para o mundo letrado, mas o choque de cultura foi inevitável. Para piorar, os professores, que estavam acostumados a dar aula para estudantes ideais, até hoje não conseguiram se adaptar à realidade do novo público. "O professor se acostumou a culpar o aluno pelo não aprendizado. Mas ele precisa entender que, para muitos estudantes, a escola é o único espaço de aprendizagem. Por isso, não pode desistir desse jovem, porque, muitas vezes, a família já desistiu. É preciso apostar que o aluno é capaz", analisa a atual diretora do Polivalente de Teixeiras, Lilian Maria Custódio Toledo, cujo colégio conta com 853 alunos.

Perfil dos docentes
O pró-reitor de Graduação da UFJF, Eduardo Magrone, analisou, em sua tese de doutorado, o perfil dos docentes em momentos distintos da história e diz que hoje falta identidade simbólica entre mestre e aluno. "Hoje o professor se veste e fala como aluno e, muitas vezes, tem que vender coisas no intervalo para a mãe do aluno ou assumir outras ocupações nos finais de semana. Já nos anos 1950, tinha formação muito superior à oferecida hoje pelos cursos de pedagogia. Se tornar professora era um bem disputadíssimo para as filhas das camadas média e alta. Com uma formação diferenciada, elas entravam na sala de aula como alguém que simbolicamente não estava na mesma posição do aluno e tinha a sua autoridade reconhecida por sua competência. Hoje, no entanto, o professor, muitas vezes, tem que apelar para recursos constrangedores, e o aluno perde o pouco respeito que tem."
Além disso, Magrone cita a falta de identificação do professorado com as escolas da rede pública e com o próprio alunado. "O mesmo professor, muitas vezes, tem posturas profissionais diferentes na escola pública e privada, cuja divisão espúria está cristalizada. No fundo, há uma divisão classista. É como se voltássemos ao tempo da escravatura, da casa grande e da senzala. Essa divisão é uma máquina de produzir desigualdades. Na escola de massa, o aluno é um número. Ele não tem identificação com a escola e o professor também não. O professor da rede privada, quando perguntado, diz o nome da escola em que trabalha. Agora se perguntar para o professor da escola pública, ele vai dizer que é na rede municipal ou estadual. Ele não diz o local. Hoje não há mais o sentimento de missão e nem uma forte identidade com a escola e com os alunos."
Para a diretora do Sindicato dos Trabalhadores em Educação (Sind-UTE), Victória Mello, a perda da importância do papel da escola na vida das comunidades afetou a valorização e a identidade dos educadores. Segundo ela, a educação passou a ser tratada como mercadoria, produto que está a venda. "A desvalorização da escola acompanha o papel secundário reservado aos trabalhadores brasileiros no mercado de trabalho mundial. Os trabalhos mais complexos são para uma minoria do setor privado e a melhor formação escolar também. Na escola pública, a formação é aligeirada, não sendo necessário tempo de permanência na escola, nem um currículo que compreenda as complexidades do mundo do trabalho atual e nem professores com boa formação. No decorrer desse processo, o professor foi perdendo o encantamento. Tornou-se mero transmissor de conhecimento empacotado de um currículo escolar que vem sendo construído em função de avaliações externas. Com isso, seu papel foi sendo reduzido, resultando na perda da identidade como educador. Isso gera desânimo e adoecimento", destaca Victória.


Educação só é prioridade no discurso

"O futuro da escola pública é o passado", afirma o doutor em sociologia, Rudá Ricci. Para o especialista, o compromisso com o indivíduo, presente nas escolas de ontem, precisa ser resgatado. "Isso não é só uma questão de melhoria do salário do professor, mas de um projeto de educação das escolas. Que tipo de pessoas queremos formar? Aquelas preparadas para o vestibular ou as que se constroem, que fazem para si e o país?"
O pró-reitor de Graduação da UFJF, Eduardo Magrone, faz coro: "A elite brasileira não sabe o que quer e não tem um projeto estratégico de país. Desta forma, a educação fica como sendo a eterna prioridade só no discurso."
Para se ter compromisso com o indivíduo, não só com a prestação do serviço, Rudá defende a contratação de professores em tempo integral, para que ele tenha condição de manter seu foco nos estudantes e na formação a longo prazo. "Recursos nós temos, o que não temos é um projeto dos governos para a educação."
Magrone defende que o projeto para a educação passe pela reformulação dos currículos e pela própria formação oferecida pelos cursos de graduação. "O primeiro choque do aluno de pedagogia e licenciatura é o estágio. As universidades preparam muito mal o professor, porque não preparam para essa escola que está aí. Nas diretrizes curriculares dos cursos de pedagogia, a palavra ensino aparece poucas vezes." O pró-reitor confirma que, apesar da inadequação do currículo, há muita resistência em modificá-lo.
A solução seria a retomada do modelo do passado ou a construção de um novo modelo baseado nos valores do passado? "Aquela sociedade já não existe mais. Temos que aprofundar o atual modelo no que ele tem de positivo, pois foi esse modelo que colocou para dentro da escola quase 100% das crianças de 7 a 14 anos, que universalizou o ensino fundamental. Então ele tem as suas virtudes. Os principais problemas são de gestão e principalmente o professor. É preciso pensar em como formar o professor para que ele veja esses alunos com um novo olhar e não como alguém que está selado ao fracasso." 
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Foto:
Turma da Escola Estadual Polivalente de Teixeiras em 1977

Um comentário:

Unknown disse...

Estudei, na mesma época, em um Polivalente em Belo Horizonte. Grande projeto, boas lembranças...