terça-feira, 27 de agosto de 2013

CARTA DE CASCAIS analisa a crise de representação nas democracias

CARTA DE CASCAIS

A XIII Conferência do Observatório Internacional da Democracia Participativa realizou‐se em Cascais, entre os dias 3 e 5 de Julho de 2013, sob o tema “Cidadania para a Sustentabilidade”. As problemáticas abordadas nos diferentes momentos desta Conferência colocaram em destaque os desafios da democracia no século XXI e situação paradoxal em que essa se encontra.
A universalização dos princípios e procedimentos da democracia caminha a par da crise de representatividade política vivida em inúmeros países que adoptaram essa forma de regime. É uma situação complexa e inquietante, que nos obriga a concentrar as atenções na qualidade das formas de governo em Estados com democracias mais consolidadas.
A concentração de poder em esferas supranacionais, como é o caso do FMI, OMC, Nações Unidas, é uma das principais fragilidades da soberania dos Estados e da própria democracia. Acresce a esta situação o poder absoluto exercício pelos grandes bancos internacionais e pelas agências de rating, que determina o sentido das políticas públicas e os modelos de governação em muitos países. As designadas “políticas de
austeridade”mais não são do que a consequência directa deste contexto.
Esta concentração de poderes fora do domínio ou do controlo dos governos eleitos e dos cidadãos, torna pelo menos estranha a ideia de defender que as exigências da democracia estão satisfeitas apenas porque um governo é popularmente eleito e, em princípio,responsável.
Esta situação tem gerado ondas de “descontentamento democrático” um pouco por todo o mundo. Trata‐se de um mal‐estar difuso, que afecta quadrantes muitos diversos do tecido social e que se reflecte de várias formas, como por exemplo, as grandes manifestações públicas, as elevadas taxas de abstenção eleitoral e a falta de confiança nas instituições.
O mundo tem sido surpreendido, nos últimos anos, com manifestações sociais muito expressivas, reunindo grupos, escalões etários e sectores profissionais diversos, exigindo mais democracia,mais participação e mais transparência.
Os actos eleitorais defrontam‐se, em inúmeros países, com elevadíssimas taxas de abstenção. É um sinal evidente de que a democracia representativa tem perdido vigor e tem deixado de ser mobilizadora para muitas pessoas. O voto é um direito histórico, que esteve na origem de amplas lutas sociais e políticas, mas que actualmente enfrenta um processo de desvalorização muito rápida em diversos países. Para muitos
cidadãos comuns, o voto é entendido como um falso poder, que não justifica ser exercido, pois esses acreditam que os verdadeiros centros de influência e decisão estão fora das instâncias de eleição.
A crescente desconfiança em relação à classe política e às instituições está intimamente relacionada com as questões anteriores. Esta é, muito provavelmente, uma das principais fracturas dos regimes democráticos e que deve preocupar a todos.
A confiança é o motor da democracia – através da delegação do poder pelo voto – sendo, por isso, essencial desenvolver todos os esforços para inverter a actual situação.
A democracia representativa tradicional parece, assim, ser incapaz de enfrentar os novos desafios societais, e demobilizar as energias e a confiança das populações. Desde Cascais, reunidos nesta XIII Conferência do OIDP, manifestamos o nosso empenho em contrariar estas tendências e desafiamos todos os governos locais e actores sociais a fazerem o mesmo. Priorizamos, para tal, três frentes de actuação:

I. Democratizar o Planeamento
Este não pode continuar a ser um exercício feito à porta fechada por um reduzido grupos de eleitos e de técnicos que os  auxiliam. O desenho das políticas públicas para um território deve contar com o empenho activo dos cidadãos que ai residem ou trabalham.
O planeamento deve igualmente ser responsável e assentar numa correcta e sustentável utilização dos recursos naturais. “Cidadania e Sustentabilidade” são por isso duas faces de uma mesma moeda. Reconhecemos, deste modo, a importância da adopção de instrumentos de planeamento como as Agendas 21 Locais e dos grupos de cidadãos e governos locais apostados nas iniciativas de transição.

II. Democratizar a Democracia
Defendemos, desde Cascais, uma nova vaga democratizadora,mas desta vez da própria democracia. Comprometemo‐nos em tudo fazer para a emergência de uma nova democracia, fundada no primado da participação, da representação e da cidadania. Falamos de um democracia de um espírito novo, capaz de
reconstruir a confiança entre governos e governados, e entre os governados entre si; de uma democracia humanista, que coloca os cidadãos no centro de toda a actividade política; de uma nova democracia que transponha para a política os princípios da ecologia humana. Por fim, uma verdadeira democracia
que seja feita pelos cidadãos, para os cidadãos, com os cidadãos.
É, por isso, que desde Cascais nos comprometemos a implementar dispositivos de co‐decisão sobre os recursos públicos, como é o caso do Orçamento Participativo. Falamos de Orçamentos Participativos com poder vinculativo, transformadores da relação entre governos e governados, e promotores da justiça e da coesão social. Defendemos igualmente todas as medidas que favoreçam a ideia de “governo aberto” e transparente, produtor de informação útil para uma participação activa dos cidadãos.

III. Democratizar a Economia
Os mercados não podem continuar a esmagar os valores humanistas e a cidadania. Não podemos ser complacentes com o assalto da economia e da finança ao primado da política na vida social. Não podemos aceitar que os resultados da economia se sobreponham aos produtos da democracia.
A construção e a distribuição da riqueza não se fazem com base nos sistemas financeiros e especulativos. Esses já mostraram dos que são capazes. É, por isso, que desde Cascais manifestamos o nosso compromisso em criar novos sistemas económicos e financeiros que reforcem a produção de riqueza local, valorizem os produtos e as competências de cada território, e garantam uma maior redistribuição dos benefícios do desenvolvimento.
É neste âmbito que nos comprometemos a desenvolver todos os esforços para a criação de moedas locais, cujo objectivo é favorecer as economias de proximidade e valorizar as actividades produtivas, em detrimento das especulativas. Queremos uma economia mais democrática, que favoreça formas muito diversas de produzir e de adquirir bens e serviços; queremos uma economia baseada no primado da confiança e da cidadania.

Desde Cascais, reunidos nesta Conferência, desafiamos todos os presentes, bem como todos os governos locais do mundo e grupos sociais a fazerem este caminho connosco. Espera‐nos uma fascinante viagem pelos caminhos da inovação, da criatividade, da igualdade e da fraternidade.

Cascais, 5 de Julho de 2013

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