sexta-feira, 19 de abril de 2013

Intelectuais Cativos

Estudei na PUC-SP, no auge do engajamento promovido por Dom Paulo Evaristo Arns. Era o centro do mundo, um espaço livre, ocupado por todas as tribos. Havia um estudante que todo final de tarde montava sua mesinha, quase à beira da rampa por onde subíamos para as salas de aula (no prédio novo), acendia algumas velas e, todo de preto, começava a ler Edgar Allan Poe. Não se ouvia bem o que ele lia porque logo atrás, num dos centros acadêmicos, começava aula de capoeira ou yoga. Todas as paredes da universidade (principalmente as próximas do refeitório e dos centros acadêmicos) eram cobertas por uma segunda pele, milhares de cartazes e avisos. Shows, debates, reuniões, pesquisas, lançamentos de livros, tudo ao mesmo tempo, num ritmo alucinante. Já comentei que a biblioteca fervilhava com grupos de estudos. Todos se engajavam e até anarquistas que liam Gabeira chegaram a formar uma chapa para concorrer à direção do DCE, a Chapa Maria. Eu mesmo organizei um debate sobre a versão Leon Hirszman de "Eles não usam Black Tie", do nada, com total apoio da reitoria que liberou o Tuca e confeccionou cartazes. O Tuca lotou para assistir o filme e ouvir Beth Mendes, Guarnieri, Medeiros (representando o Joaquinzão) e Djalma Bom (representando Lula).
Minha formação básica foi gramsciana, mas havia muito rigor, o que nos obrigava a ler e ler e ler para muito além do marxismo. Ali nasceu o governo de Erundina, reunido nas salas de aula para montar o governo de transição.
Pois bem, se Gramsci propôs o conceito de intelectual orgânico, um amigo me envia um texto de Tony Judt que sugere a ideia de intelectual cativo. Mais um contraponto que revela fortes diferenças entre épocas não muito distantes, com sinais trocados. No livro "O Chalé da Memória", o historiador inglês (que faleceu em 2010, em Nova Iorque) publica um capítulo cravando o título de "Mentes Cativas", baseado em obra do poeta Czeslaw Milosz (lituano, de família e criação polonesa). Judt retoma Milosz para reforçar a noção que  "intelectuais necessitam da sensação de pertencer". Interessante esta noção. Nos anos 1980, o engajamento de sociólogos foi quase uma regra (e eu, junto à onda, com a honra de estar ao lado de Weffort, José Álvaro Moisés, Eder Sader, Maria Conceição D´Incao, para citar alguns). Até tentamos fazer do sindicato algo que parecia um sindicato. Mas estávamos demasiadamente engajados para pensar na categoria ou questões corporativas (que soava, para muitos, como peleguismo). Éramos (ou desejávamos ser) intelectuais orgânicos. Na obra de Milosz, é citada a pílula Murti-Bing, que teria o dom de diluir o medo e a ansiedade, o que ajudava alguns a aceitar novos governantes, recebendo-os de braços abertos e felizes. O historiador se pergunta, ironicamente, o que faria um pensador escolher livremente a subordinação às ideias alheias, numa tradução da "servidão voluntária" de Etienne de La Boétie. Judt não faz jogo de cena. Começa citando os simpatizantes do comunismo, passa pelo idealista desiludido e termina no oportunista cínico.
A frase de efeito é significativa:
Quando comecei, meu desafio era explicar por que as pessoas se desiludiram com o marxismo; hoje, a dura tarefa que o professor tem pela frente é explicar a própria ilusão. (...) Repressão, sofrimento, ironia, até a crença religiosa: isso eles compreendem. Mas, e a ilusão ideológica?
É mais que frase de efeito, já me corrigindo. Perceba que o autor sustenta que os jovens universitários não sabem o que é ilusão, tampouco o que seria ideologia. Portanto, sofrem pelo presente, mas nem esboçam o futuro. Talvez sofram, mas por algo que não tem relação direta com a humanidade, mas com um conforto que, cada vez, se distancia da espécie original, o que reafirma aquela sugestão de Marx que somos contraditórios como espécie, já que nascemos para transformar nossa origem (a natureza) em escrava de nossos desejos.
A ironia continua. Judt retoma outro autor que dizia que "estávamos certos em estarmos errados" (uma tradução da frase alienada que parecia engajada que dizia: "melhor estar errado com Sartre do que certo com Aron").
O capítulo termina espinafrando a crença no mercado, o novo cativeiro intelectual. Mais uma crença inquestionável, um sofisma montado numa abstração.
O texto é tão atual que amarra tudo com a "imortal" frase de Margaret Thatcher: "não há alternativa". Ironia que fecha com chave de ouro ao citar, mais uma vez, Milosz:
(...) o habitante do Oriente não leva os americanos a sério porque eles nunca enfrentaram as experiências que ensinam aos homens o quanto são relativos seus julgamentos e hábitos intelectuais.
Em tempos de tomates ilustrando manchetes de jornais e revistas, penso que o cativeiro intelectual já invadiu praças e jardins (para além das hortas). Os editores se espelham em advogados de porta de cadeia e no rancor, algo não muito distinto do que ocorre na vida acadêmica brasileira. O problema é que lá na PUC dos anos 1980, intelectuais eram forjados para serem faróis, embebidos na crença desveladora da ciência e rigor metodológico, além do engajamento social e político anunciado em alto e bom som. Agora, nossos intelectuais andam com pequenas lanternas e ainda não perceberam que as baterias acabaram.

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