Uma rápida observação que fiz no interior de uma postagem, sobre minha rejeição ao sistema de cotas, rendeu um bom número de emails e comentários, quase todos estranhando uma crítica pela esquerda a esta política. Vou resumir os principais pontos de minha divergência não com a pretensão de convencer, mas de elucidar os fundamentos de minha crítica:
1) Pós-modernismo: o conceito de multiculturalismo, tal como vem sendo empregado no Brasil pela pena de Stuart Hall, me incomoda em virtude da fragmentação social que pleiteia, se aproximando do relativismo. O pós-modernismo, como tão bem sugeriu Fredric Jameson, não possui ética, mas apenas estética. No caso das cotas, o pós-modernismo se apoia na focalização da política social e não no universalismo. Ora, a cultura se subordina à humanidade, à vida humana. Nada pode justificar a mutilação ou espancamento de uma pessoa em nome da tradição cultural de uma região ou aldeia. Então, qual seria a resposta à discriminação que pobres e negros sofrem na carreira educacional? O ataque frontal ao racismo (com prisão imediata de qualquer ato desta natureza que depõe contra a humanidade) e a mudança de foco dos recursos para investimento (a começar pelas políticas do BNDES, alimentadas por aportes do Tesouro). Tenho minhas dúvidas se esta onda não é mais uma cópia da história norte-americana, fazendo coro ao nosso colonialismo cultural;
2) Tutela Governamental: a emancipação política, foco de toda política social de esquerda, é substituída, no sistema de cotas, pela tutela governamental. É pior que tutela estatal. Porque o Estado pode ser apropriado, ainda que marginalmente, pelas leis e órgãos de representação social. Mas a tutela governamental é irmã da chantagem: se não se vota naquele governo e seus aliados, perde-se a redenção. Denomino esta ação de neoclientelismo. Não seria o caso de instalarmos sistemas de avaliação das práticas e resultados educacionais a partir das organizações de representação da cidadania, incluindo entidades anti-racistas e/ou de defesa da educação pública? Por qual motivo o "atalho" tutelado é tão defendido por quem parece tão radicalmente contrário á discriminação? Esquecemos todo ideário de controle social?
3) Pragmatismo e Etapismo: toda esta defesa das cotas se apoia numa falácia: ela abrirá condições para os despossuídos e marginalizados ascenderem socialmente. Ora, este não é um argumento, mas uma esperança. E atropela uma série de outros problemas que são deixados pelo caminho. Um deles é a crença que o ensino universitário brasileiro é superior aos outros níveis. De onde vem esta crença? Não seria proveniente, justamente, da base do ideário elitista brasileiro? Por qual motivo o topo do mundo é a universidade? Na Alemanha, 70% dos jovens do sul da Alemanha preferem o sistema dual que a universidade. E o conteúdo ensinado nas universidades? Eles são anti-racistas? São tão mais libertários? Se não se tem certeza da resposta a esta pergunta, estaremos contribuindo para elitizar os que ingressam pelas cotas. Esquecerão, em poucos anos, seu passado. Pesquisas recentes revelam o quanto a ampla maioria dos universitários não deseja trabalho algum voluntário ou solidário. Nossas universidades estão consumidas pelo sucesso individual e pelas consultorias empresariais. O nível das teses e pesquisas acadêmicas está diretamente relacionado à velocidade que os órgãos superiores impõem para se montar um bom "currículo Lattes". Produtividade, não formação, é a tônica. O etapismo anda de mãos dadas do pragmatismo: vamos tentando, ocupando alguns espaços, ganhando algumas migalhas. Se não der certo, ao menos criamos o debate com o conservadorismo brasileiro. Assim como pensavam os hippies dos anos 1960, que utilizavam os jeans das roupas de operários como demonstração de desapego e questionamento social.
Um comentário:
Só para continuar aqui o que começamos lá e agradeço o debate.
Primeiro como estratégia.
Já há uma lei que pune o racismo e, a aplicação dela tem evoluído certo?
A estratégia é evidentemente etapista e, sim, se baseia numa esperança, e sim pode não dar certo mas, por que não tentar já que ela já se mostrou mundialmente relevante ao colocar na vitrine o que antes era formatado para esquecer-se ou ocultar-se. Isto não é só estético. Talvez na linha do: meio é a mensagem, mas pode ter sua eficácia.E, mesmo as pesquisas estarem apontando por caminhos conservadores pode até ser que sejam conservadores em relação a estes "privilégios" mesmo.
Enfim, não é tão etapista quanto a tradição da elite brasileira de mandar para universidade por que vai ficar mais "bem" de vida ?
Uma esperança também.
Uma etapa também.
Se o mundo está mudando em relação ao estudo universitário as cotas vão sofrer as consequências também.
Coloca-la em oposição a universalismo é que me parece um exagero. Seria elevá-la a categoria filosófica quando é só uma estratégia, vamos usar uma vara ou uma rede para pegar o peixe ?
Quando está frio, e não se é tão gordo, o casaco tem que ser mais pesado, proteger mais...
Não sei por que tanta implicância com um ato que parece mais um gesto de solidariedade.
Se existe, de fato, esse enorme lapso de oportunidades por efeito de cor que outros instrumentos teríamos além de prender proto futuro nazistas racistas, para libertar estas pessoas do peso desse passado?
Incentivo financeiro a escola pública em periferias com "cotas de pobreza" comprovada no IBGE?
A TUTELA GOVERNAMENTAL é realmente o veneno desse sistema. Não há como não concordar.Tem solução ? Não Sei, talvez normaliza-la como política de estado com tempo definido..30 40 anos (?)Esse ponto é realmente nefasto. Não sei dizer se era melhor não fazer nada, por causa disto.
Também é exagerado comparar com sociedades como a Alemã onde as diferenças sociais são bem menores com o significado que tem uma universidade aqui e que tem um ensino técnico que só agora está sendo valorizado.
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