domingo, 13 de novembro de 2011

Artigo de hoje do Gaudêncio


Retratos novos na velha moldura

13 de novembro de 2011 | 3h 05

Gaudêncio Torquato: jornalista, é professor titular da usp, consultor político de comunicação twitter: @gaudtorquato - O Estado de S.Paulo
"A política não é uma ciência exata, mas uma arte." A frase é de Bismarck, o chanceler de ferro que fincou as bases da unificação da Alemanha no século 19. Como arte, a política amolda-se à forma plasmada por seus cultores, escapando das equações racionais que alguns formuladores usam para explicar seus desdobramentos. Na política, a menor distância entre dois pontos pode não ser uma reta, como na geometria euclidiana, mas uma curva. Ou, buscando por aqui a explicação, não é necessário que uma pessoa tenha passado pelo teste das urnas para ser presidente da República.
Dilma Rousseff nunca havia recebido um voto até se eleger comandante da Nação com a maior votação de nossa História. A escalada natural da política - vereador, deputado estadual, deputado federal, senador, governador, presidente - não é mais usada em nosso meio. Quem conhece bem essa rota cheia de desvios, que permite a alguém ingressar na política por cima, é Lula. Afinal, ele conduziu com sucesso uma auxiliar ao posto máximo do País. Tem, portanto, cacife para tirar do colete mais um membro do "esquadrão sem voto" e jogá-lo na disputa pela Prefeitura da maior metrópole nacional. Fernando Haddad é empacotado como cópia do "modelo Dilma". Não significa, claro, que terá o mesmo desempenho. O ex-presidente sabe disso.
A decisão de Lula de impor o ministro da Educação como candidato a prefeito de São Paulo e demover outros correligionários, a começar pela senadora Marta Suplicy, não deve ser interpretado como um ato de voluntarismo, decisão ancorada em amizade ou simpatia. Mais razoável é apostar na hipótese de que Luiz Inácio, de maneira intuitiva, apreende a lição de Maquiavel, para quem "feliz é o príncipe que ajusta seu modo de proceder aos tempos", sem deixar tudo por conta da sorte.
Exímio intérprete das circunstâncias, o ícone petista respira política. Aduz que uma cara nova é tudo o que o eleitor quer ver na paisagem borrada pela decrépita maneira de fazer política. Quem o conhece bem garante que "o homem é uma esponja", absorve o que ouve e sente para, a seguir, devolver aos interlocutores, ao seu feitio, os inputs consumidos. Viajado, Luiz Inácio coleciona precisa radiografia dos altos e baixos da política contemporânea. Tem exata noção, tanto quanto doutos cientistas, de que o menu de comida bolorenta causa engulhos. E que inserir numa batalha eleitoral um perfil jovem, asséptico, capaz de simbolizar renovação é tarefa arriscada, mas viável. Haddad ou concorrente assemelhado, puxados pela engrenagem que impulsiona os pleitos (tempo de exposição, recursos, máquina partidária) caem bem no sistema cognitivo social, que já formou uma linha divisória entre bons e maus, modernos e ultrapassados, "esse eu já conheço" e "aquele eu quero conhecer".
Olhemos o mapa-múndi da política. Nele se distingue monumental espaço habitado pela descrença. Há um mal-estar generalizado com os mandatários. Aqui e alhures se multiplicam sinais de profunda necessidade de transformação de métodos. Os movimentos de rebeldia que explodem nos quadrantes do planeta, a partir da principal referência do capitalismo - Wall Street, em Nova York -, afetam democracias antigas e novas, governos de direita ou de esquerda, sistemas presidencialistas e parlamentaristas. A crise econômica, que se projeta sobre a zona do euro, gera instabilidade, desestrutura governos, exigindo novo ordenamento para reconstruir a teia social. O traço comum aos movimentos é a repulsa à velha política. Esta é, infelizmente, confundida com ineficiência da gestão pública. O sentimento mais comum do cidadão é o de que a política o traiu. Por isso não quer mais fazer parte do conto do vigário. Gostaria de ver em seu representante a encarnação da verdade, a certeza de que as coisas boas aparecerão. Ou, como lembra o cientista social chileno Norbert Lechner, "as pessoas esperam que a política lhes garanta não só a integridade física e certa segurança econômica, como também um referencial de certeza". A imagem de Chico Buarque parece adequada: a política é a Geni de nossos tempos.
O pano de fundo que acolhe o distanciamento entre sociedade e esfera representativa é a subordinação da política à economia. Os efeitos fazem-se sentir na interpenetração de interesses do Estado e do mercado, com visível influência de grupos e castas na formulação das tarefas públicas. O poder financeiro age como elemento de cooptação de partidos e eleitores, propiciando acirrada concorrência entre eles e indisfarçável amálgama entre o público e o privado. Negócio rentável, a política tornou-se muito cara. Ainda mais ante a fosforescência do Estado-espetáculo, com seu arco-íris de cores e cenários sofisticados, onde os personagens se esforçam para gerar impacto. Mapas ideológicos fragmentados e dispersos aprofundam a crise dos entes partidários, dos quais os eleitores tomam distância, ensejando o predomínio da estética sobre a semântica e reforçando máxima de McLuhan: o meio é a mensagem. Partidos-ônibus continuam a acolher passageiros em algumas estações, podendo, mais adiante, fazer acordos para percorrerem o mesmo caminho.
Tal figurino dá realce aos indivíduos. Quanto mais charmosos, assépticos, joviais, sem cacoetes, brandindo a bandeira da esperança (chama que entorpece a alma e abre vontades), maior chance terão de conquistar o eleitorado. Ora, ninguém conhece mais que Lula os palcos da política brasileira, dos mais periféricos aos mais centrais. O da capital paulista é o mais simbólico por representar a clássica polarização entre PT e PSDB perante o maior conglomerado eleitoral brasileiro. O ícone do PT tem um ás na manga: carisma. E extraordinária autoconfiança, como se pode ler na mensagem gravada recentemente para agradecer a solidariedade: "Eu vim para a Terra para lutar e melhorar a vida de todo o mundo".
Tom messiânico que pode chegar às alturas.

Um comentário:

Hugo Albuquerque disse...

Lula escolheu Haddad porque ele é jovem, competente e tem relações boas com a cúpula petista - é da CNB, embora tenha assinado o manifesto da Mensagem ao Partido. Enfim, é orgânico, está com quem manda - e é fiel a eles - sem deixar de ter trânsito junto à esquerda do partido. Lula não está, como nunca esteve, preocupado com o fato de Haddad ser um (pós?)marxista uspiano ou Palocci, seu ex-queridinho, ser um homem da terceira via, mas sim que dentro da formação de cada um, eles funcionem politicamente. E a estrutura do PT nacional, hoje conectada com a estrutura hegemônica do PT-SP, não serve mais a Lula, seja pelos destinos de Palocci, pela forma de ascensão de Rui Falcão ou pela não aceitação de Marta da própria inviabilidade eleitoral - o que custou muito caro ao partido em nível nacional.

Entretanto, é bom pontuar que, ao contrário do que postula o artigo, a capital paulista não é palco da polarização PT x PSDB: São Paulo é a terra de uma direita orgânica e organizada - só que sem referencial há anos - e de uma esquerda minoritária, embora ativa e poderosa. O PSDB é o mal menor que a direita paulistana escolhe em nível nacional, coisa que ela só escolheu para a Prefeitura de São Paulo quando, na verdade, votava para e por um projeto nacional: falo de José Serra em 2004. Fora isso, os tucanos jamais passaram para o 2º turno.

Neste sentido, a direita, perdida, hoje, talvez busque aportar na resistência silenciosa e interior ao Lulismo - como aconteceu no Rio - com o nome de Gabriel Chalita e a manobra de Temer em ressuscitar o PMDB paulista. Há quem não aceite isso, como já demonstrou a Veja. Essa divisão da direita, fruto do fracasso serrista e, com um pouco mais de distância, o desaparecimento político do malufismo como força política relevante é um flanco que o PT precisa explorar. Que Marta não conseguiria, mas que Haddad consegue.