sábado, 20 de fevereiro de 2010

Sobre o Lulismo (entrevista ao Brasil de Fato)


O jornal Brasil de Fato me enviou algumas perguntas sobre o futuro do PT. Reproduzo, abaixo, a entrevista:

P: Na sua opinião, em 1980, o petismo acreditava que o partido tornaria-se o mais importante do país em 30 anos. Se sim, imaginava que seria dessa forma?
R: O PT não é o mais importante partido do país. Este posto pertence ao PMDB (em número de parlamentares, prefeitos, total de votos). Mas o lulismo é maior que o PT. O lulismo é uma concepção de gestão política e do Estado que inverteu absolutamente o ideário petista. O PT, por seu turno, se "americanizou", ou seja, forjou-se como uma grande máquina eleitoral, ao estilo dos partidos Democrata e Republicano. Obviamente que há resistências internas. Mas as correntes internas contam muito pouco
para a prática do PT.

P: Nas primeiras eleições do PT, a sigla tinha boa representatividade em setores médios, mas pouca simpatia nas classes mais pobres. À época, os dirigentes petistas falavam da necessidade de ampliar a base eleitoral nos mais pobres, por meio de um trabalho de base que aflorescesse a consciência de classe. Hoje o PT tem seu êxito eleitoral nas classes mais baixas e é rejeitado pelos setores médios. O processo ocorreu da maneira que o petismo esperava?
R: Novamente esta mudança da base eleitoral do PT é um mero reflexo do lulismo. Não é mérito do partido. A sua questão é das mais instigantes. Trata-se de um dilema antigo da esquerda brasileira: a de se tornar popular sem perder o ideário de esquerda. Este é um dilema enfrentado desde a fundação do PCB, na década de 20. A esquerda brasileira têm profundas dificuldades para se tornar popular em virtude do lastro teórico de origem européia. Tivemos autores que tentaram criar um pensamento
genuinamente brasileiro, como Caio Prado Jr, para citar apenas um. Mas pensar o Brasil não é tarefa fácil, porque multifacetado e corroído por uma cultura moralista e conservadora. O lulismo dialoga diretamente com esta cultura popular, complexa e conservadora. Fala para a classe média emergente, que desconfia da política mas é extremamente pragmática. Mas não dialoga pedagogicamente, procurando enfrentar o conservadorismo. Seu diálogo é rebaixado, procurando a identidade permanente. Daí, perdeu toda inspiração de um projeto de esquerda. O lulismo é social-liberal. Por este motivo, o PT se tornou figura menor. O petismo não se tornou popular. Em contraste com o lulismo, sua imagem pública se tornou carrancuda e, para a grande imprensa, oportunista. Trata-se de um dilema antigo da esquerda brasileira: como ser popular e de esquerda.

P: De que formas essa composição do PT, como um partido de tendências, contribuiu para ditar os rumos do partido? Essa lógica das tendências ainda persiste?
R: As tendências poderiam ter dado origem a um partido de quadros, mas isto não ocorreu. E este é o principal sintoma que as tendências não ditaram efetivamente os rumos da expressão pública do partido. As tendências foram absolutamente superadas e alijadas pela opção eleitoral da direção do partidos. O PT tem dois momentos muito distintos em sua história. Nos anos 80 foi um partido de massas porque abraçou a lógica e ideário dos movimentos sociais daquele período, marcado pela democracia
direta, o anti-institucionalismo, o anti-capitalismo, o participacionismo e o comunitarismo cristão. Mas em meados dos anos 90, foi capturado por um grupo político muito menos público que as tendências e correntes petistas. Ex-militantes de esquerda organizada oriundas do PCB e dirigentes sindicais metalúrgicos e bancários, o setor mais controlador e autoritário do sindicalismo brasileiro. Esta cúpula adotou práticas estranhas à origem do partido, deixaram de lado a utopia que gerava energia à militância e agiram de maneira rebaixada, pragmática, focada na vitória a qualquer custo. Veja que nos anos 80 era preciso ser líder de massas para ter expressão pública no PT. A partir de 94 não houve mais esta necessidade e
identidade. Muitos dirigentes passaram a ter sua legitimidade centrada na burocracia partidária e não em movimentos e representação de massas. Hoje, muitos dirigentes nem reflexo da burocracia partidária o são. Vários são apenas parlamentares de expressão regional.

P: Qual é a perspectiva da atuação do PT no pós-Lula? O eventual governo de Dilma Roussef reuniria condições, na sua opinião, de postar-se mais à esquerda, como sugere a mídia corporativa?
R: O PT viverá uma profunda encruzilhada. Se continuar adotando a atual via do estatal-desenvolvimentismo, tutelando a sociedade civil, ou seja, completando a modernização conservadora iniciada por Vargas, estará fadado a continuar falando para a classe média emergente, a maior porção do eleitorado brasileiro. E esta nova classe média é profundamente conservadora e pragmática. Se Dilma resolver romper com esta lógica, poderá bloquear o diálogo fácil com esta nova classe emergente. A ruptura com a imagem de Lula será visível. E provocará uma profunda crise de
representação partidária que será testada em 2010, em plenas eleições municipais. O dilema da esquerda permanecerá. A questão posta pelo lulismo é como romper com sua poderosa e pragmática lógica e retornar à utopia da esquerda democrática, sem se tornar elitista. O PT estará nesta encruzilhada posta por estas duas referências: o lulismo ou o elitismo. Não vejo em Dilma capacidade intelectual e de liderança para romper com estes extremos e recriar um ideário de esquerda e de massas que o PT dos
anos 80 projetava.

P: O senhor acredita na tese de que o Brasil pode viver nos próximos anos um "lulismo sem Lula"?
R: A maior possibilidade será a de um lulismo com Lula nas sombras. Talvez nem tanto na sombra como se imagina. Lula deitou raízes na sociedade e no sistema partidário. Está enviando a Consolidação das Leis Sociais ao congresso. Getúlio Vargas não estava no governo e foi carregado por muitas forças partidárias (incluindo o PCB, perseguido ferozmente por sua ditadura), de volta ao trono. O lulismo tem cheiro de queremismo.

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