Uma opção radical... pelo centro ideológico
Maria Inês Nassif
Basta um pouco de bom senso para rejeitar a ideia que se tenta impor, como senso comum, de que o governo Lula deu um passo à esquerda e que a ministra Dilma Rousseff dará a guinada final em direção a alguma coisa parecida com o ex-socialismo soviético, um capítulo arquivado da história que poucos líderes e partidos no mundo tentam ressuscitar. A chance de radicalização à esquerda numa coalizão como a que dá sustentação ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva - e dará apoio a um governo Dilma, se o PMDB oficialmente apoiar a sua candidatura e se ela vencer a eleição - é quase próxima a zero. O debate sobre o tamanho e o poder de intervenção do Estado, que se tornou central depois da crise financeira mundial do ano passado, está sendo feito no interior do capitalismo e não é determinante para se apontar o grau de esquerdização de um candidato, de um governo ou de um partido. O PT não está radicalmente ao centro como quando assumiu o governo, em 2003, mas as alianças feitas para ganhar eleição e governar não autorizam previsões de que o partido caminha inexoravelmente para a extrema-esquerda. Nenhuma tendência de esquerda do PT alimenta essa fantasia porque ela simplesmente não é razoável.
No primeiro governo de Lula, de 2003 a 2005, a gestão foi o produto de um "pacto de governabilidade" que impediu qualquer passo à esquerda, exceto uma política de transferência de renda que inicialmente soou apenas como política compensatória. Aliás, o Bolsa Família só ganhou corpo e se expandiu sem enfrentar uma forte oposição conservadora porque não esteve no centro das atenções até ter se consolidado como instrumento efetivo de distribuição de renda.
Daí foi impossível acabar com o programa.
No pós-eleições de 2002, o grupo de centro era amplamente hegemônico no PT e estava totalmente comprometido com a tarefa de mostrar ao mercado que seu governo era confiável, numa conjuntura de grave crise econômica e fuga de capitais. Não existia espaço para debates à esquerda. Esse partido que se fincava no centro era aliado, no governo, a outras pequenas agremiações à esquerda e à direita - era inevitável que o ponto de equilíbrio fosse o centro, com concessões eventuais à direita e à esquerda.
No segundo mandato, se a reeleição deu alguma sustentação ao presidente Lula para fazer uma inflexão à esquerda - quer como resposta à radicalização da oposição à direita, quer pelo fato de ter sido consagrado por uma população de baixa renda que é altamente penalizada em conjunturas de políticas econômicas conservadoras -, a aliança com o PMDB, que aderiu ao governo depois das eleições de 2006, colocou limites muito precisos a isso. O segundo governo Lula foi à esquerda do primeiro, mas nem tanto. O PMDB é um partido que, na sua trajetória pós-redemocratização, perdeu qualquer referência de esquerda e abriga bolsões ultraconservadores - a maior parte da bancada ruralista, a mais ativa oposição a qualquer política fundiária de qualquer governo, está abrigada naquele partido; lá se acomodam as principais lideranças regionais estaduais mais apegadas a antigas práticas de clientelismo. Os setores mais conservadores do PMDB tiveram protagonismo nas questões fundiárias - o ministro pemedebista Reinholds Stephanes (PMDB-PR) tem maior poder de influência do que Guilherme Cassel, ministro do Desenvolvimento Agrário e integrante da esquerda do PT; Stephanes tem ganhado também as quedas de braço com o Meio Ambiente. O PMDB também foi a referência conservadora na disputa entre o Ministério da Defesa e a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), na questão da criação de uma Comissão da Verdade destinada a apurar excessos cometidos pelo aparelho de repressão do Estado.
O PMDB é o parceiro eleitoral que o PT quer e o governo e o partido têm feito todos os esforços para ter um pemedebista como vice na chapa encabeçada por Dilma Rousseff. Não existe razão alguma para imaginar que, se o PT vencer em outubro, um governo de Dilma terá enormes diferenças em relação ao seu antecessor. O PMDB se beneficia eleitoralmente de medidas populares de esquerda do governo Lula, mas os setores mais conservadores do partido estabelecem limites muito claros, que são os seus interesses. Existe uma certa organicidade nessa agremiação de centro partida em pedaços, que é a consciência de que a defesa dos interesses de grupos cimentam a unidade que dá a ela poder de barganha junto a qualquer governo. Como é uma grande agremiação, com grande peso no Congresso, isso tem muita importância na definição ideológica de um governo ao qual está aliado.
Internamente, o PT também tem maiorias consolidadas que por si só mantêm o partido longe dos discursos de ruptura do passado. A queda do Muro de Berlim, há 20 anos, foi um baque para todos os partidos de esquerda no mundo. Muito antes disso, a denúncia dos crimes de Joseph Stálin, em 1956, pelo governo soviético de Nikita Kruschev, já havia colocado a questão democrática no centro dos debates da esquerda mundial. O fracasso da esquerda armada no Brasil e na América Latina, e a vitória de brutais regimes militares de direita que praticamente dizimaram esses grupos revolucionários, são dados que se somaram e solidificaram um processo contínuo de aproximação das esquerdas brasileiras da ideia de socialismo democrático. Quando a democracia passou a ser o instrumento fundamental de formação de hegemonias para esses grupos, logicamente o limite de radicalização à esquerda fica muito claro, independentemente das alianças na política institucional que um partido que se diga socialista faça. Como toda essa água rolou desde que a UDN e os militares udenistas tomaram o poder pela força em 1964, com a justificativa de evitar que a esquerda fizesse uma revolução pela força, o discurso eleitoral que atribui a qualquer partido de esquerda hoje situado na política institucional brasileira intenções de ruptura é, no mínimo, fora de moda; no máximo, terrorismo político-eleitoral.
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
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