Daqui para onde?
Autor(es): Luiz Fernando de Paula
Valor Econômico - 17/09/2012
Sem dúvida estamos vivendo um daqueles momentos em que a incerteza radical é percebida de forma extremada, relacionada principalmente às expectativas empresariais de longo prazo no que se refere a um futuro incerto e nebuloso. Keynes assim explicou o que entendia por incerteza não probabilística: "Desejo explicar que por conhecimento "incerto" não pretendo apenas distinguir o que é conhecido como certo do que apenas é provável. Neste sentido, o jogo de roleta não está sujeito à incerteza; nem sequer a possibilidade de se ganhar na loteria. (...) Até as condições meteorológicas são apenas moderadamente incertas. O sentido que estou usando o termo é aquele segundo o qual a perspectiva de uma guerra europeia é incerta, o mesmo ocorrendo com o preço do cobre e da taxa de juros daqui a 20 anos, ou a obsolescência de uma nova invenção (...) Sobre estes problemas não existe qualquer base científica para um cálculo probabilístico. Simplesmente nada sabemos a respeito".
Quem consegue fazer um prognóstico sobre o futuro da economia mundial nos próximos, digamos, dois ou três anos? Costumo dizer aos meus alunos que para fazer prognóstico sobre o futuro da economia é melhor contratar um astrólogo do que um economista, e acrescento que não se trata de uma brincadeira. Isto porque acontecimentos econômicos são fortemente "path dependent", isto é, dependem do comportamento e da interação dos agentes ao longo do caminho, o que pode resultar em diferentes trajetórias. Contudo, como me pediram aqui para "arriscar previsões" a respeito do desenrolar da crise internacional, e os possíveis impactos sobre a economia brasileira, vou fazer algumas breves especulações. O cenário internacional está bastante nebuloso quanto à recuperação econômica mundial, e em particular em relação ao risco de um novo contágio causado pelo aprofundamento da crise do euro, com fortes impactos sobre as outras regiões. Não há região hoje que puxe o crescimento mundial, seja os países mais dinâmicos asiáticos, EUA e muito menos a zonado euro. Temos assim o forte risco de estarmos numa "double dip recession", uma dupla recessão, que pode ao fim e ao cabo vir a caracterizar uma Grande Recessão.
Cabe ressaltar que a Grande Depressão de 1929-1938, na realidade, foi a agregação de duas recessões em 1929-1933 e 1937-1938, entremeada por uma breve recuperação abortada pela tentativa, em 1937, de se fazer um ajuste fiscal prematuro nos Estados Unidos. Observa-se na Grande Recessão atual, um primeiro período da crise, que foi de meados de 2007 ao início de 2009, iniciando-se com a crise do subprime e culminando com a falência do Lehman Brothers, quando procurou-se evitar a depressão com uso intenso de uma politica econômica anticíclica, com o uso inclusive de instrumentos não tradicionais como a criação de instrumentos de liquidez para aquisição de ativos de diferentes maturidades na carteira das instituições financeiras pelo Federal Reserve (Fed, banco central americano) e um pacote de estímulos fiscais de quase US$ 800 bilhões nos EUA. Ao longo de 2009, contudo, com a recuperação dos preços dos ativos e dos lucros de muitas instituições
financeiras, observa-se um ressurgimento de ideias liberais-conservadoras, e a atenção se volta para os desequilíbrios fiscais e dívida pública, abandonando-se prematuramente políticas contracíclicas na Europa e posteriormente (em 2010) nos Estados Unidos (1).
Como se sabe, a vitória dos Republicanos, em novembro de 2010, tornou impossível a implantação de um novo programa de incentivos fiscais, ficando o governo de mãos amarradas. A tarefa de adoção de política contracíclica ficou, assim, a cargo do Fed, com suas medidas de afrouxamento monetário, que têm resultado na desvalorização da moeda americana e evitado uma deflação de preços e ativos. Os limites desta política são claros: não adianta só colocar dinheiro na mão do setor
bancário, se a demanda por empréstimos está baixa; dada a alta preferência pela liquidez dos agentes (bancos e famílias) há necessidade de uma política fiscal anticíclica mais ativa para restabelecer o nível geral dos gastos.O endividamento externo elevou os preços dos ativos, criando bolhas imobiliárias em vários países. Hyman Minsky, economista keynesiano americano, sustentava que era fundamental, perante a eclosão de uma crise financeira, o governo atuar de forma estabilizadora através do "big bank" (BC como emprestador de última instância, para estabilizar preços dos ativos
e evitar crise de liquidez) e do "big government" (gasto público contracíclico para sustentar demanda agregada e estabilizar emprego e renda). Está claro que o papel do "big government" está enfraquecido nos EUA, sendo que no caso da zona do euro a coisa é bem mais complicada, face à ausência de um papel mais definido de emprestador de última instância pelo BCE.
A semiestagnação da economia norte-americana, combinada com a crise da zona do euro e a desaceleração econômica recente dos países emergentes abrem uma segunda rodada de recessão mundial. A taxa de desemprego nos EUA encontra-se ainda acima de 8% da população economicamente ativa; já a na zona do euro a mesma taxa aumentou de 10% no início de 2011 para mais de 11% em 2012. Nesta última região, a recessão, embora atinja mais os países do sul da Europa, se aproxima de economias maiores, como França e Alemanha.
Evidentemente, o centro da crise atual é a zona do euro, às voltas com sérios problemas estruturais e, mais importante, com a falta de uma estrutura de governança global razoavelmente eficaz para lidar com seus problemas. A questão estrutural está relacionada, entre outras, à existência de uma forte heterogeneidade econômica dos países da zona do euro devido a níveis de competitividade e de inflação distintos, em um contexto de uma moeda única.
Este problema foi agravado pela política alemã em 2003-05 de contenção do salário que, associado a sua alta produtividade, ampliou os problemas de assimetria. Assim, após a introdução do euro, Alemanha, Holanda, Finlândia e Bélgica ampliaram seus superávits comerciais em detrimento dos demais países da região, que foram se tornando cada vez mais deficitários.
Sem poder recorrer as ajustes cambiais para restabelecer a competividade internacional da economia nacional e/ou emitir moeda para pagar suas dívidas, tais países tinham que escolher entre forçar a redução dos níveis de salários domésticos ou fazer uso de políticas fiscais para manter o crescimento do produto e emprego. Os países da periferia europeia tiveram a facilidade de emitir dívida soberana e se endividar com juros alemães no mercado internacional. O endividamento externo alimentou espirais ascendentes dos preços dos ativos, permitindo bolhas imobiliárias em vários países. Como
os governos não podem criar euros, eles devem gerar superávits fiscais suficientemente elevados para cobrir os juros e amortização da dívida, ou emitir dívida adicional para captar recursos junto ao setor privado, já que não podem se financiar junto ao BCE dada a restrição de atuar como emprestador de última instância do sistema financeiro.
Ficam claras as dificuldades dos governos nacionais rolarem suas dívidas a partir da crise de confiança gerada por conta da crise grega, e premência de enfrentarem seus desequilíbrios fiscais, ainda que as custas de um aprofundamento da recessão, já que superávits fiscais teriam que ser compensados por déficit do setor privado e superávit externo, o que não ocorre. Nessas condições, o ajuste fiscal acaba por se revelar em boa medida inócuo, uma vez que acarreta um aprofundamento do processo recessivo dos países da periferia europeia, que por sua vez deteriora as receitas fiscais, ensejando um círculo vicioso (2).
O futuro da economia mundial oscila entre o pessimismo moderado e o acirrado A recessão europeia transmite seus efeitos negativos para outras regiões, em particular países que dependem mais fortemente das exportações para seu dinamismo econômico, como a China, que sofre com o baixo dinamismo das economias avançadas e com a dificuldade do governo dar uma resposta a crise como fez em 2008-09, quando respondeu a crise com um forte programa de investimentos públicos em infraestrutura. Começa a aparecer problemas no sistema financeiro, relacionados ao aumento da inadimplência, agora agravados pela desaceleração econômica.
A economia chinesa transita assim de um crescimento de mais de 10% ao ano para um crescimento de cerca de 7% ao ano, o que acaba contagiando negativamente outros países com quem tem intensa relação comercial, como Japão e países exportadores de commodities, como o Brasil.
As perspectivas de recuperação econômica, portanto, não são animadoras. A zona do euro carece de um instrumento que permita os governos cumprirem suas obrigações financeiras sem adotar uma política fiscal que gere recessão, uma vez que o BCE não pode atuar como emprestador de última instância. Os EUA, por seu turno, às voltas com eleições presidenciais neste ano, poderão se defrontar com um problema de precipício fiscal ("fiscal cliff") em 2013, quando sofrerá o efeito do
fim dos cortes de impostos estabelecidos no governo Bush (cerca de US$ 700 bilhões) e a necessidade de um corte obrigatório nos gastos públicos no valor de US$ 1,5 trilhão a partir de janeiro de 2013, se outros cortes não tiverem sido efetuados antes. Um ajuste fiscal desta magnitude resultaria em uma nova recessão americana. Por fim, a economia chinesa, sofrendo com o baixo dinamismo das demais economias, e sem capacidade de dar uma resposta mais robusta em termos de políticas anticíclicas, como um 2009, quando o governo adotou medidas de incentivo da magnitude de US$ 630 bilhões, também deverá manter um crescimento mais baixo, cerca de 7% ao ano, que é a meta do plano quinquenal até 2015.
Os impactos da crise mundial sobre a economia brasileira já se fazem sentir por vários canais: redução da demanda e preços das commodities, com efeitos sobre as exportações; diminuição nos fluxos de capitais externos face a maior aversão ao risco dos investidores; e, mais importante, uma deterioração nas expectativas empresariais face a percepção de incerteza quanto ao futuro da economia mundial e da incapacidade de dar respostas adequadas para a crise atual.
Claro que num eventual contágio os efeitos serão ainda maiores. O país está preparado para enfrentar uma deterioração no quadro internacional? Em boa medida sim: tem bom volume de reservas cambiais, a situação fiscal está boa, têm bancos públicos fortes com capacidade de uma ação contracíclica no mercado de crédito, um banco central hoje mais pragmático e menos dogmático, e algumas variáveis macroeconômicas básicas estão melhores posicionadas, como a taxa de juros e a taxa de câmbio. A capacidade de ter um crescimento mais robusto e sustentável a longo prazo é outra
história, pois depende crucialmente da habilidade do governo de articular efetivamente um conjunto de investimentos públicos e privados nos próximos anos. O futuro da economia mundial oscila entre um quadro de pessimismo moderado e de pessimismo acirrado (a partir de uma crise do euro em grandes proporções). Minha aposta é um cenário de "pessimismo moderado": a economia americana continua patinando em um crescimento baixo e elevado desemprego, sem uma recuperação mais robusta; a zona do euro vai ficar empurrando com a barriga a crise do euro, implementando soluções ad hoc conforme os problemas forem aparecendo.
Um cenário possível, neste contexto, é que a Grécia não aguente o ajuste recessivo e saia da zona do euro, o que vai implicar o contágio de outros países, como Espanha, Portugal e Itália. Neste caso os países do euro teriam que ampliar o fundo de socorro para compras de dívidas soberanas ou permitir que o BCE o faça. O resultado seria provavelmente não a implosão da zona do euro, mas a sua manutenção sem a Grécia. Os impactos seriam fortes sobre a economia mundial, mas não necessariamente devastadores como foi a quebra de Lehman Brothers, até porque de certa forma não seria um evento inesperado.
Karl Polanyi mostrou em seu livro "A grande transformação" que, na evolução histórica do capitalismo, o liberalismo econômico se tornou um credo, com a universalização dos mercados autorregulados, através da defesa permanente do laissez-faire e do livre comércio. Começou como uma tentativa de eliminar algumas leis e regulamentações da produção até atingir a economia inteira. Houve uma forte participação do Estado para atingir um nível de regulação que tornasse o "laissez-faire" um principio ativo da economia.
O paradoxo, para ele, é que "enquanto que a economia laissez-faire foi o produto da ação deliberada do Estado, as restrições subsequentes ao laissez-faire se iniciaram de forma espontânea. O laissez-faire foi planejado; o planejamento não". A sociedade, seguindo o princípio da autoproteção social, teria uma reação defensiva que se articula historicamente "não em torno de interesses de classes particulares, mas em torno da defesa das substâncias sociais ameaçadas pelos mercados".
A crise econômica atual é uma crise de um mundo excessivamente liberalizado, em particular no que se refere às finanças globais. A sociedade está ameaçada pelas forças avassaladoras do livre mercado e pela inação e miopia dos governantes e elites políticas. A reconstrução de uma nova era de prosperidade só será possível repensando-se profundamente a relação Estado e economia, a geopolítica mundial, o grau de autonomia das politicas públicas frente a globalização, o formato da regulação do sistema financeiro, e o sistema de proteção social. O mercado é e sempre será, como destacou Polanyi, uma construção política e social. Neste particular, é de se esperar que alguma mudança maior, se houver, só será possível por conta da pressão dos países emergentes. O futuro da economia mundial e a geopolítica global estão em aberto. Em particular, o "double dip" será tanto
maior (ou menor) e profundo quanto menor (ou maior) for a capacidade dos governos nacionais darem respostas adequadas para a superação da crise atual, o que como sugerido neste artigo parece não ser o caso, pelo menos a médio prazo.
---------------------
(1) Ver Farhi, M. (2012), "A crise e os dilemas da política econômica". V Encontro Internacional da AKB, www.akb.org.br.
(2) Ver Kregel, J. "Seis lições extraídas da crise europeia" e Freitas, M.C.P., "Do Tratado de Maastricht à crise financeira", no livro Sistema Financeiro e Política Econômica em uma Era de Instabilidade, Elsevier/AKB, 2012.
Luiz Fernando de Paula é professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (FCE/UERJ) e presidente da Associação Keynesiana Brasileira (AKB). O autor expressa seus pontos de vista em caráter pessoal.
Um comentário:
Rudá, não sei se isso já foi abordado. Não consigo acompanhar tudo. Acontece que havia uma grande discussão sobre o uso destrutivo dos recursos naturais em razão do crescimento econômico e do consumo exagerado de algumas sociedades. Agora que estamos numa crise como esta se projeta no meio ambiente. Pode até piorar em razão da precarização produtiva? Pode piorar por falta e evolução tecnológica em razão do baixo investimento em pesquisa? As populações empobrecidas consumirão recursos gerando mais impactos negativos? Ou acontecerá o contrário: haveria um alívio do impacto sobre o meio ambiente. Enfim, há algum acompanhamento que reflita o que a crise econômica mundial representa para o meio ambiente?
Postar um comentário