Lá vai
1. Por que interdisciplinaridade?
O currículo padronizado, denominado de tradicional, e
empregado largamente nas escolas brasileiras é, na verdade, um sofisma. Todo sofisma é fundado
numa lógica aparentemente válida, mas contradiz seus
próprios fundamentos. Qual, então, seria o fundamento de todo currículo? Orientar a socialização
dos estudantes. Curriculum significa,
numa tradução livre, a pista de corrida por onde caminham os educandos. O
preceito é dos mais nobres. Como Hannah Arendt sugeriu em seu livro “Entre o
Passado e o Futuro”, não nascemos humanos[1],
justamente porque a humanidade é uma soma de experiências individuais
socializadas pela linguagem. Este seria o papel da educação, segundo a
filósofa, que cria a paixão pelo mundo, tornando os educandos co-responsáveis por
ele. A frase da autora é ainda mais dramática do que esta síntese. Diz:
“A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o
bastante para assumirmos a responsabilidade por ele” [assim como] “a educação
é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não
expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos”.
Contudo,
para atingir tal nobre objetivo, faz-se necessário construir a mediação entre o
mundo e a vida privada. Mas o currículo tradicional, formatado em matrizes
verticalizadas, sem conexão entre um conhecimento específico e outro, não pode
realizar esta conexão. Porque fala de um mundo apartado, absolutamente distinto
da realidade.
O mundo é interdisciplinar. É assim que nossos olhos o percebem.
A física se relaciona com a geografia e a ocupação do espaço pelos humanos e
suas culturas. A linguagem se relaciona com as origens históricas da nossa
colonização e da incorporação de expressões de outras culturas que estiveram
presentes na nossa formação social.
Nosso
cérebro assimila o mundo a partir desta compreensão cruzada e integrada. O
neurologista Oliver Sacks nos ensina que tudo o que vemos são interpretações do
cérebro. Se não reconhecemos, não enxergamos[2]. Mas se o mundo é
interdisciplinar e o que as escolas ensinam é linear e compartimentado, o que é
estudado seria útil para a vida cotidiana? Para ser útil não teria que,
necessariamente, ser traduzida por um outro olhar?
Se o discurso curricular é distinto do que vemos no mundo sólido, real, das relações sociais dinâmicas, de que maneira estaria contribuindo para cumprir seu papel de socialização? Não estaria, justamente, criando um mundo a parte?
[1]
Hannah Arendt abordou os dilemas
educacionais em A Crise na Educação (incluído no livro Entre o Passado e o
Futuro) e em Reflexões sobre Little Rock, escritos em 1958 e 1959
respectivamente.
[2]
Ver, em especial, SACKS, Oliver. Um
Antropólogo em Marte. Sete Histórias Paradoxais, São Paulko: Editora Companhia
das Letras, 1995.
Um comentário:
Venho de uma experiência pela qual os compartimentos faziam sentido, aos meus olhos de então, no 1º grau; os professores eram muito bons (escola estadual em SP, entre os 70 e 80)). E pasme-se: utilizava-me da amaldiçoada decoreba. Pra mim, decorar as coisas era (é) um prazer e me rendeu (rende) muitos e bons frutos. Já no colegial, no início dos anos 80, os professores – escola estadual em SP – eram quase analfabetos funcionais e renunciavam não só aos saberes compartimentados – os quais, de resto, não detinham - mas a todo saber em nome do que chamavam “cidadania”: o embuste e vigarice para esconder a ignorância deles e colocar na linha de frente mais um projeto político de poder do que a tarefa “menor” de ensinar os conteúdos. O cinismo era de tal ordem que eles se punham a dizer que estavam ali para “aprender” com os alunos e, alguns, mais catequizados, invocavam o nome de Paulo Freire. Isso sim era opressão da pedagogia. Como tinha o desejo onívoro de aprender tudo, fui passando da faculdade de Economia para a de Filosofia e, no final, Direito. Nenhuma delas foi satisfatória exatamente porque confinava (e confina) seus saberes. Os professores são apenas especialistas num pequeno quinhão: sabem muito de pouca coisa. As ciências humanas são terreno fértil para especializações ocas que se transformam em cadinhos de criptografias inúteis (assim era na filosofia: o método de Platão segundo Plotino, etc); não havia, por exemplo, ninguém da física ou da astrofísica que tratasse de Galileu, Tycho Brahe, Copérnico, Kepler. Nem havia, no estudo da lógica, alguém versado em Matemática que aportasse na Filosofia novos conhecimentos e fizesse as conexões. O Direito me parece o mais infenso a essa permeabilidade de saberes. Dando aulas, mal posso fazer uma consideração analítica, solicitar uma inferência lógica ou probabilística na sala que logo me dizem que advogados não gostam de números (embora isso seja apenas uma demanda de raciocínio lógico-analítico); a utilização de métodos quantitativos em pesquisa é quase inexistente e decorre exatamente do fato de que advogados-pesquisadores não são treinados em estatística básica para manipular dados. Lidam, no mais das vezes, com o argumento de autoridade, citando livros antigos e doutrinadores de “escol” (argh!). Enfim....é isso.
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