Há um risco real nesta história toda. Revelar que as disputas palacianas papais são mundanas quebra uma das pernas da religiosidade, o carisma. Carisma é um toque de Deus. Uma escolha. O Concílio de Trento reafirmou esta Voz que não é a do ser humano. Na prática, o padre, investido de instrumento de Deus, sobe ao púlpito envolto nesta aura. Os católicos estavam preocupadíssimos, naquela quadra do século XVI (1545 a 1563), com o discurso sedutor e individualista dos protestantes para quem seria possível o contato direto daquele que tinha fé com Deus, via leitura da Palavra Divina. A explosão de edições da Bíblia Sagrada desmontava a investidura dos homens da igreja. Lutero sugeria que a frase de Paulo, "o justo viverá pela fé", diminuía as obras originadas da própria fé. Tanto que sua tradução da Bíblia para o alemão incluiu, nesta frase, a palavra "somente". Assim, Deus salvaria o homem sem ação do Espírito Santo.
Debate teológico à parte, o vazamento das relações mundanas entre os operadores políticos do Vaticano, se não estancado, desmistifica a igreja. A escolha do Papa deixa de ser obra do Espírito Santo. A própria existência do Papa seria fruto de disputas intestinas pelo poder e não por um chamado.
O que nos faz pensar que este século XXI vai acelerando o desencantamento do mundo.
4 comentários:
Meu caro Rudá, permita-me discordar de seu raciocínio. A ideia romântica de que tudo na Igreja deriva de uma ação sobrenatural não pode nortear o pensamento dos crentes. Ora, a partir do momento que a Igreja atua no mundo (chamada peregrina ou terrena) não exime os que a lideram de absorver as imperfeições deste mesmo mundo. O Concílio Vaticano II, convocado em 1959, que iniciou em 1962 e terminou em 1965, é um exemplo claro disso. A iniciativa do Papa João XXIII trouxe um novo sopro de vida para o catolicismo. Os estudiosos do legendário concílio chegam a afirmar que o Vaticano II inseriu a Igreja no mundo. Noutras palavras, representou mudanças profundas na pastoral, nas ações de base. Era a Igreja que voltava o olhar para o mundo e dele tornava-se parte integrante. Mas o reconhecimento dessa ação não exclui, em absoluto, a ação de Deus. Existe a Comunhão dos Santos (a sintonia entre as igrejas peregrina (Terra), penitente (purgatorial) e celeste (a perfeição celestial)) que corrobora o divino no humano. A própria eleição de João XXIII, em 1958, é um desafio à razão. Escolhido como Papa de transição - aquele que apenas conduzirá os trabalhos, sem grandes mudanças; prepará o terreno para outro que, esse sim, virá para governar de fato -, após um pontificado relativamente longo de Pio XII, Rocanlli, entretanto, convocou o Concílio Ecumênico Vaticano II e modificou a face da Igreja. No recente episódio fica claro algo que você não tocou. O Vaticano é um estado e o Papa um chefe de estado. A política, portanto, é algo essencial e natural. O problema é que a mídia arvora-se no sentido de desmitificar a Igreja, justamente porque a Igreja Romana, que atravessa as eras com galhardia, representa a negação de verdades que esse mundo proclama absolutas. Certa feita, li um livro sobre história da Igreja. O autor, muito a propósito, fala algo interessante. De Padre Luiz Cechinato: "Diante das manchas do passado, não se abale sua fé, pois a fraqueza dos homens vem provar que a Igreja é divina. Nessa hora, lembre-se do sábio conselho de Gamaliel, quando os membros do Sinédrio queriam matar os apóstolos porque anunciavam Cristo ressuscitado: Se a sua doutrina verdadeiramente vem de Deus, não conseguireis destruí-la."
Valéria,
Sua análise é sociológica, adotando estruturas e conceitos racionais. Ora, eu não estou me apoiando nestes princípios, mas na fonte de legitimação de uma religião. E religião é fé, baseada na transubstanciação. Não é matéria. Leia melhor as resoluções do Concílio Vaticano II. Trata-se de uma orientação anti-classista e anti-racional. Há muita fantasia a respeito. Há uma forte defesa pela defesa da humanidade como espécie, mas não há nada sobre transformação da estrutura social. Pelo contrário. Se não entendemos a estrutura mental que legitima o poder, não entendemos o que lhe abala e o que lhe dá segurança.
Sim, Rudá, mas acho que a religião não pode ser analisada só por esse lado. Não sou expert em Vaticano II, mas entendo que a iniciativa do Papa João XXIII abriu as portas para se pensar a Igreja contextualizada no mundo. Ela saiu de um mundo que lhe era próprio e arriscou encaixar-se no mundo que, antes, de certa forma rejeitava. E isso só poderia ser feito a partir da pastoral. Não sei se entendi bem, mas vejo você focado na noção de perfeição ou, em suas próprias palavras, "na fonte de legitimação de uma religião": a fé. Você aborda o distanciamento do catolicismo, personificado na Santa Sé e cujo centro é o estado do Vaticano, da questão social, observado no avanço da ala conservadora e na consequente perda de espaço dos progressistas. "Se não entendemos a estrutura mental que legitima o poder, não entendemos o que lhe abala e o que lhe dá segurança", diz você. Quando falamos especificamente de Igreja, acho que seria mais correto dizer estrutura mental-espiritual. De qualquer maneira, reconheço que preciso de mais base para enveredar num debate mais profundo com uma pessoa como você. Fica aí o comentário. Parabéns pelo blog e pela gama de assuntos que traz à tona.
Valéria,
Acho que estamos falando idiomas diferentes. Eu não estou fazendo análise da igreja. Sou gramsciano e se fosse este meu interesse, a análise seria outra. Eu estou destacando como esta história dos conflitos internos, por si só, abala o principal pilar de poder simbólico da igreja católica. Este expediente está vinculado à leitura da base de sustentação de um sistema de dominação política. Weber denominava dominação legítima, ou seja, que não utiliza a força, mas a aceitação. Este é o tipo de dominação mais sofisticado e duradouro. A força gera submissão e revolta. A dominação legítima forma apoio. Neste caso, meu centro de análise é a instituição e não os grupos internos. Até mesmo os progressistas utilizam este estratagema para se manter no poder. Enfim, você segmenta a análise institucional pelas ideologias internas. Mas a instituição é uma só e a igreja acolhe todas até o limite. Esta é a força de uma instituição milenar. Você está reduzindo esta força à história moderna, mas o catolicismo é anterior.
Postar um comentário