quinta-feira, 31 de maio de 2012

Política no Vaticano é.... política

Quando Weber escreveu sobre o desencantamento do mundo não imaginava que acertaria neste alvo. A crise aberta pelas revelações do jornalista Gianuluigi Nuzzi, a respeito de cartas do arcebispo Carlo Maria Vigano ao Papa Bento 16 revela algo prosaico: que a política no Vaticano não é tão santa. Muitos italianos afirmam que a questão central é o ataque a Tarcísio Bertone, o número 2 no Vaticano. A consequência deste vazamento já é esperada: a cúpula da igreja vai se fechar ainda mais. Os conservadores ganharão, possivelmente.
Há um risco real nesta história toda. Revelar que as disputas palacianas papais são mundanas quebra uma das pernas da religiosidade, o carisma. Carisma é um toque de Deus. Uma escolha. O Concílio de Trento reafirmou esta Voz que não é a do ser humano. Na prática, o padre, investido de instrumento de Deus, sobe ao púlpito envolto nesta aura. Os católicos estavam preocupadíssimos, naquela quadra do século XVI (1545 a 1563), com o discurso sedutor e individualista dos protestantes para quem seria possível o contato direto daquele que tinha fé com Deus, via leitura da Palavra Divina. A explosão de edições da Bíblia Sagrada desmontava a investidura dos homens da igreja. Lutero sugeria que a frase de Paulo, "o justo viverá pela fé", diminuía as obras originadas da própria fé. Tanto que sua tradução da Bíblia para o alemão incluiu, nesta frase, a palavra "somente". Assim, Deus salvaria o homem sem ação do Espírito Santo.
Debate teológico à parte, o vazamento das relações mundanas entre os operadores políticos do Vaticano, se não estancado, desmistifica a igreja. A escolha do Papa deixa de ser obra do Espírito Santo. A própria existência do Papa seria fruto de disputas intestinas pelo poder e não por um chamado. 
O que nos faz pensar que este século XXI vai acelerando o desencantamento do mundo. 

4 comentários:

Valéria Borborema disse...

Meu caro Rudá, permita-me discordar de seu raciocínio. A ideia romântica de que tudo na Igreja deriva de uma ação sobrenatural não pode nortear o pensamento dos crentes. Ora, a partir do momento que a Igreja atua no mundo (chamada peregrina ou terrena) não exime os que a lideram de absorver as imperfeições deste mesmo mundo. O Concílio Vaticano II, convocado em 1959, que iniciou em 1962 e terminou em 1965, é um exemplo claro disso. A iniciativa do Papa João XXIII trouxe um novo sopro de vida para o catolicismo. Os estudiosos do legendário concílio chegam a afirmar que o Vaticano II inseriu a Igreja no mundo. Noutras palavras, representou mudanças profundas na pastoral, nas ações de base. Era a Igreja que voltava o olhar para o mundo e dele tornava-se parte integrante. Mas o reconhecimento dessa ação não exclui, em absoluto, a ação de Deus. Existe a Comunhão dos Santos (a sintonia entre as igrejas peregrina (Terra), penitente (purgatorial) e celeste (a perfeição celestial)) que corrobora o divino no humano. A própria eleição de João XXIII, em 1958, é um desafio à razão. Escolhido como Papa de transição - aquele que apenas conduzirá os trabalhos, sem grandes mudanças; prepará o terreno para outro que, esse sim, virá para governar de fato -, após um pontificado relativamente longo de Pio XII, Rocanlli, entretanto, convocou o Concílio Ecumênico Vaticano II e modificou a face da Igreja. No recente episódio fica claro algo que você não tocou. O Vaticano é um estado e o Papa um chefe de estado. A política, portanto, é algo essencial e natural. O problema é que a mídia arvora-se no sentido de desmitificar a Igreja, justamente porque a Igreja Romana, que atravessa as eras com galhardia, representa a negação de verdades que esse mundo proclama absolutas. Certa feita, li um livro sobre história da Igreja. O autor, muito a propósito, fala algo interessante. De Padre Luiz Cechinato: "Diante das manchas do passado, não se abale sua fé, pois a fraqueza dos homens vem provar que a Igreja é divina. Nessa hora, lembre-se do sábio conselho de Gamaliel, quando os membros do Sinédrio queriam matar os apóstolos porque anunciavam Cristo ressuscitado: Se a sua doutrina verdadeiramente vem de Deus, não conseguireis destruí-la."

Rudá Ricci disse...

Valéria,
Sua análise é sociológica, adotando estruturas e conceitos racionais. Ora, eu não estou me apoiando nestes princípios, mas na fonte de legitimação de uma religião. E religião é fé, baseada na transubstanciação. Não é matéria. Leia melhor as resoluções do Concílio Vaticano II. Trata-se de uma orientação anti-classista e anti-racional. Há muita fantasia a respeito. Há uma forte defesa pela defesa da humanidade como espécie, mas não há nada sobre transformação da estrutura social. Pelo contrário. Se não entendemos a estrutura mental que legitima o poder, não entendemos o que lhe abala e o que lhe dá segurança.

Valéria Borborema disse...

Sim, Rudá, mas acho que a religião não pode ser analisada só por esse lado. Não sou expert em Vaticano II, mas entendo que a iniciativa do Papa João XXIII abriu as portas para se pensar a Igreja contextualizada no mundo. Ela saiu de um mundo que lhe era próprio e arriscou encaixar-se no mundo que, antes, de certa forma rejeitava. E isso só poderia ser feito a partir da pastoral. Não sei se entendi bem, mas vejo você focado na noção de perfeição ou, em suas próprias palavras, "na fonte de legitimação de uma religião": a fé. Você aborda o distanciamento do catolicismo, personificado na Santa Sé e cujo centro é o estado do Vaticano, da questão social, observado no avanço da ala conservadora e na consequente perda de espaço dos progressistas. "Se não entendemos a estrutura mental que legitima o poder, não entendemos o que lhe abala e o que lhe dá segurança", diz você. Quando falamos especificamente de Igreja, acho que seria mais correto dizer estrutura mental-espiritual. De qualquer maneira, reconheço que preciso de mais base para enveredar num debate mais profundo com uma pessoa como você. Fica aí o comentário. Parabéns pelo blog e pela gama de assuntos que traz à tona.

Rudá Ricci disse...

Valéria,
Acho que estamos falando idiomas diferentes. Eu não estou fazendo análise da igreja. Sou gramsciano e se fosse este meu interesse, a análise seria outra. Eu estou destacando como esta história dos conflitos internos, por si só, abala o principal pilar de poder simbólico da igreja católica. Este expediente está vinculado à leitura da base de sustentação de um sistema de dominação política. Weber denominava dominação legítima, ou seja, que não utiliza a força, mas a aceitação. Este é o tipo de dominação mais sofisticado e duradouro. A força gera submissão e revolta. A dominação legítima forma apoio. Neste caso, meu centro de análise é a instituição e não os grupos internos. Até mesmo os progressistas utilizam este estratagema para se manter no poder. Enfim, você segmenta a análise institucional pelas ideologias internas. Mas a instituição é uma só e a igreja acolhe todas até o limite. Esta é a força de uma instituição milenar. Você está reduzindo esta força à história moderna, mas o catolicismo é anterior.