Por uma constituinte popular
permanente
Chico Whitaker
Enquanto era um
simples projeto de iniciativa popular, para o qual eram recolhidas assinaturas
de apoio pelo Brasil afora, a atual Lei da Ficha Limpa sofreu muitos e
diversificados ataques. Chegou a ser chamada mesmo de autoritária, por fazer um
reparo à conquista indiscutível da humanidade que foi a adoção universal do
principio anti-barbárie da presunção da inocência. Mas seus principais
opositores se encontravam justamente entre os que seriam por ela atingidos e
que, apoiando-se na infindável possibilidade de recursos aberta pelos nossos
Códigos processuais, usavam esse principio para assegurar sua impunidade. E por isso mesmo foi de fato uma surpresa que
o projeto superasse a barreira que se erguia contra ele no Congresso, onde se
dizia, quando lá chegou com seu milhão e meio de assinaturas, que era mais
fácil uma vaca voar do que ele ser aprovado.
E eis que o bom senso
desse milhão e meio de eleitores chegou - depois de uma verdadeira maratona
dentro do Congresso, no Tribunal Superior Eleitoral e por fim no Supremo
Tribunal Federal - a encurralar o principio da presunção da inocência lá onde
ele tinha mesmo que ficar: no direito penal. E a sociedade se viu enfim
contemplada com a validação do principio também universal da precaução, ainda
mais quando se trata, como no direito eleitoral, de eleger pessoas às quais
será entregue a responsabilidade de cuidar dos destinos do país.
Uma vez feito mais
esse avanço na vagarosa construção de uma verdadeira democracia no Brasil,
chovem loas à nova lei, vindas das mais diversas e às vezes incríveis
procedências. Um sólido consenso, apoiado numa significativa proporção de votos
no STF, se forma no país em torno da necessidade indiscutível de uma biografia inquestionável
para se ter o direito de exercer funções públicas. Ficha Limpa passou a ser um
novo e importante conceito da cultura nacional. E como se todos tivessem de
repente descoberto o ovo de Colombo, multiplicam-se, do nível municipal ao
nível federal, novas leis estendendo essa obrigatoriedade a todo e qualquer
cargo de governo, inclusive os de confiança. Fomos enfim capazes de introduzir algumas
barreiras a outros tipos de barbárie, como a de se apropriar insaciavelmente de
recursos que são de todos – a corrupção que hoje se escancara em todo o mundo –
ou como a de se apoiar no poder conquistado pelo voto para se resguardar de
condenações por diferentes tipos de crime.
Mas eu gostaria de analisar
outro aspecto da experiência vivida. O processo de conquista da Lei da Ficha
Limpa teve outro tipo de efeito, que pode vir a ser ainda mais amplo: o de dar
aos cidadãos a consciência de que podem mudar as leis do país em favor da
coletividade. Um pequeno artigo da Constituição de 1988, já então chamada de
Constituição Cidadã, criou o instrumento da Iniciativa Popular de Lei, pelo
qual uma proposta de mudança legislativa pode ser levada ao Congresso desde que
um por cento do eleitorado a subscreva.
O primeiro uso desse
instrumento – uma proposta de criação de um Fundo Nacional de Habitação Popular
- ocorreu cinco anos depois. Mas o projeto correspondente levou 17 anos para se
transformar em lei. Com o aprendizado da primeira, uma segunda tentativa, seis anos
depois, foi mais bem sucedida: um projeto que estabelecia que perderiam seu
registro os candidatos que comprassem votos – a chamada corrupção eleitoral - foi
transformado em lei sete semanas depois. E passados mais dez anos a proposta da
Ficha Limpa veio coroar a efetividade do instrumento, ainda que tivesse exigido
oito meses para ser transformada em lei.
E eis que de repente,
após o término da novela da Ficha Limpa, surgem por todo o Brasil, do nível
federal ao municipal (nos Municípios cuja Lei Orgânica também incorporou o
instrumento), projetos de lei de iniciativa popular. Nem tenho informações sobre tudo que está
sendo gestado pelo Brasil afora. Mas há muitos grupos de cidadãos e cidadãs,
reunidos em associações e entidades da sociedade civil, que estudam projetos
visando questões que nossos Parlamentos não enfrentam adequadamente.
A Plataforma pela
Reforma do Sistema Político, que congrega 35 entidades nacionais da sociedade
civil, lançou um projeto de lei visando a Reforma Política. Todos sabemos que ela
é extremamente necessária em nosso país, mas o Congresso sozinho não consegue realizá-la.
Há pouco outro importante problema nacional começou a ser enfrentado também por
meio de uma Iniciativa Popular: foi lançado no Amazonas um projeto de lei de
Desmatamento Zero, que contesta diretamente a decisão congressual sobre o
Código Florestal. Há associações que estão elaborando uma Iniciativa que limita
em dois mandatos consecutivos o exercício da representação política – que uma
vez transformada em profissão perverte o seu sentido. A proposta de limitar o
número de mandatos está sendo inclusive levada ao nível preparatório final da
1a. Conferência Nacional sobre Transparência e Controle Social. Há grupos
estudando uma Iniciativa de Lei que interdite as empresas de financiar
campanhas eleitorais - que as leva a dominar em seu favor as decisões
congressuais e do próprio Poder Executivo.
Retomam-se também velhos sonhos como o da Tarifa Zero no transporte
coletivo da cidade de São Paulo, ou o da obrigatoriedade de plebiscitos prévios
à realização de obras públicas de elevado valor ou significativo impacto
ambiental, previstos na Lei Orgânica desse mesmo município. Até um Poder
considerado intocável como o Judiciário será seguramente um dia surpreendido
por propostas populares visando corrigir as distorções que ocorrem em seu
funcionamento.
A Constituição exclui
do alcance da Iniciativa Popular mudanças constitucionais. Nada impede porem que
a aspiração popular chegue ao Congresso com milhões de assinaturas e um grupo
de parlamentares assuma a iniciativa de propor, apoiados nessa aspiração, um
Projeto de Emenda Constitucional – PEC, nos termos da proposta popular. É o
caso da iniciativa sobre o número de mandatos, que já prevê a necessidade de
uma PEC, e da iniciativa resultante do impacto causado pelo drama de Fukushima,
que propõe que nossa Constituição vede a construção de usinas nucleares em
nosso país e determine a interrupção da construção de Angra III e o desmonte de
Angra I e Angra II, livrando-nos do pesadelo dos terríveis acidentes com
reatores e as gerações futuras da herança diabólica do lixo atômico.
Corremos na verdade o
risco da banalização desse instrumento.
Até porque que tais empreitadas são gratificantes mas não são fáceis. Nas
duas iniciativas bem sucedidas acima citadas – contra a compra de votos e pela
Ficha Limpa – levou-se um ano e meio, em cada uma, para se chegar ao 1% do
eleitorado. É preciso muita perseverança. E uma vez entregue ao Congresso, a
tramitação da proposta tem que ser acompanhada dentro dele pelos seus
promotores, passo a passo, para que não fique, como a primeira delas, 17 anos
mudando de gaveta. As vacas só voam com
muito embalo... E a um período de entusiasmo e multiplicação de propostas
pode-se seguir cansaço, desencanto, frustração... Precisaríamos estar bem
conscientes de que só devemos lançar Iniciativas Populares se estivermos organizados e dispostos a ir
até o final de um processo difícil e longo.
Nesse quadro alguns
parlamentares já se apressam, quase afoitamente, para mudar a Constituição e facilitar
as coisas para o povo. Por exemplo, criando a possibilidade da coleta de
assinaturas pela Internet, que permite que se chegue mais rapidamente ao mínimo
necessário. No caso da Ficha Limpa, no final do seu processo, e já entregue o
projeto ao Congresso, mais 400.000 assinaturas obtidas pela Internet foram incorporadas.
Mas essa facilitação
reduz a adesão ao trabalho de ler uma proposta e apertar um botão para
expressá-la, e anula toda a dimensão educativa do processo de coleta de
assinaturas. Essa coleta pode ser demorada mas é também uma pedagogia de
exercício da cidadania. As pessoas que buscam assinaturas têm que estar bem
cientes do que estão propondo e as pessoas que assinam só o farão se estiverem
convencidas. No caso da lei contra a corrupção eleitoral foi possível criar com
essas pessoas, em todo o Brasil, após sua aprovação, os chamados Comitês 9840
(número da lei), que assumiram a função de garantir que fosse realmente
aplicada lá onde moravam – e mais tarde foram animadores da coleta para a Ficha
Limpa.
Alem disso, com a
coleta pela Internet corre-se com isso o risco de não se ter muita gente
disposta ao demorado trabalho de acompanhar e pressionar o Congresso, durante
todo o tempo de discussão e decisão sobre o projeto – no caso da Ficha Limpa
foram oito meses.
Se o tema de uma
proposta for preciso, compreensível, e corresponder a uma efetiva aspiração da
sociedade, essa forma de participar do processo legislativo pode ser efetiva,
como ficou demonstrado com as leis da compra de votos e da Ficha Limpa. E
quanto mais o instrumento da Iniciativa Popular se consolidar no conhecimento
dos cidadãos e cidadãs e passar a contar com maior apoio dos meios de
comunicação de massa, os prazos podem ser mais curtos e a pressão sobre o
Congresso mais forte.
O Senador Pedro Simon,
em recente desabafo no Senado, falou de seu desencanto com o Congresso, opinando
que somente a pressão da sociedade faria com que ele assumisse plenamente suas
funções. Quem sabe o surgimento de um processo constituinte popular permanente
possa atender à sua angustia.
Um comentário:
Sinceramente?
O Sen Pedro Simon de 2012 é pálida lembrança, versão farsesca, do Pedro Simon do MDB na ditadura civil/militar.
O que ele diz não repercute em seus atos, haja vista que ele sempre foi ácido crítico do governo Lula a nivel Federal e entretanto, participou, deu apoio e defendeu o inacreditável (e podre) governo de Yeda Cruzes no RS...
:/
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