O Futuro do PTPor RUDÁ RICCI
1. A promessa de um outsider
Uma das trilhas para analisar o futuro do partido do Presidente Lula é organizar um olhar em perspectiva, o que inevitavelmente gera comparação entre sua promessa original e sua realização efetiva. Por aí é possível localizar mais nitidamente o lugar do partido no interior do sistema partidário nacional.
Ao adotamos esta trilha analítica, a primeira questão posta é compreender a promessa feita na origem do PT. Ao contrário da imagem que ficou da primeira campanha eleitoral que o partido participou, o PT não prometia a revolução socialista ou o revanchismo em seus documentos originais. Era, no seu início, um partido outsider, se aproximando de uma revolução de hábitos e práticas políticas, colocando em xeque até mesmo a tradição revolucionária das esquerdas do país. Não por outro motivo, os documentos oficiais dos primeiros anos deste partido negavam todas estruturas políticas autoritárias e centralizadoras. Criticavam, pela esquerda, o socialismo real existente e, por tabela, os acordos de cúpula. Era o ideário anti-institucionalista dos movimentos sociais dos anos 80. Um discurso que criava um frescor no sistema partidário do país. Na origem, o PT foi o “maio de 68” da política brasileira.
Por este motivo, os parlamentares eram pautados pelas deliberações dos anônimos militantes de base, organizados em diretórios municipais, zonais ou núcleos (uma mescla entre comunidade de base e célula de organizações de esquerda). Esta é a lógica que isolou parlamentares que sugeriam o apoio do partido à uma candidatura oposicionista pela via indireta quando da derrota da campanha das Diretas Já. Deputados como Airton Soares e Marco Aurélio Ribeiro foram enquadrados pela base partidária, possivelmente um fato inédito na vida dos partidos políticos do país.
A elaboração de programas de governo consistia num complexo processo de discussões presenciais de militantes de base, criando o que alguns dirigentes, irritados, chamavam de “colcha de retalhos”. Até mesmo a maior corrente interna, a Articulação, adotou uma metodologia inspirada neste ideário, o “consenso progressivo”, em que divergências eram postas de lado, para serem retomadas mais adiante.
Esta lógica durou até 1990. O que prometia o partido até este momento? Prometia uma mudança radical no sistema partidário, a transparência na gestão pública, a inversão de prioridades (prioridade em investimentos sociais e em regiões mais inóspitas e marginalizadas) e controle social. Prometia, ainda, avanços progressivos, dentro da ordem, na direção do socialismo. Um socialismo, é verdade, não muito bem explicado, meio libertário, meio autonomista, meio vocacionado ao conselhismo. Não por outro motivo, o velho dilema entre reforma e revolução era retomado com freqüência em debates internos do partido.
E veio 1989. Por pouco este partido outsider não conseguiu eleger o Presidente da República. Derrotou o trabalhismo de Brizola. Derrotou o gigante PMDB. Mas, significativamente, perdeu, no final, para o mais outsider dos candidatos. Um partido outsider chegava à reta final da disputa contra um candidato outsider. Foi um período especial da história política brasileira, que perdurou por mais alguns anos. Outros candidatos de estilo exótico, tendo em Enéas a sua expressão maior, tiveram votação expressiva. O Brasil revelava com toda sua força a desconfiança em relação à sua ordem política. Mas a direção partidária leu outros sinais. A quase vitória assustou muitos dirigentes petistas. Faltou pouco. Por esta fresta surgiu algo que o ideário original do petismo execrava: o realismo político.
O realismo político é o avesso da utopia política. Se a utopia projeta o outsider como possível, o realismo opera ao contrário: adapta-se às condições postas, aos limites da ordem. É deste momento que o conceito de correlação de forças virou senha para justificar o óbvio, ou seja, que o PT era outsider. Sendo outsider, dificilmente teria condições de se impor sobre as outras forças. Mas esta é justamente a lógica de quem se posiciona como outsider: negar o establishment.
O desafio que se apresentou a partir daí era o de se apoderar dos instrumentos e lógicas institucionalizadas, procurando reverter a correlação de forças na medida em que o PT se colocava integralmente como parte do sistema e lógica partidários.
Enfim, 1990 foi o momento da inflexão do partido. O momento seguinte não foi exatamente a Carta ao Povo Brasileiro, nem mesmo a vitória de Lula nas eleições presidenciais. A prova de fogo foi a crise aberta pelo que ficou conhecido como mensalão. Foi o último pedágio de entrada do petismo ao sistema tradicional de operação dos partidos brasileiros.
2. Da promessa ao realismo político
O PT não é o mais importante partido do país. Este posto pertence ao PMDB (em número de parlamentares, prefeitos, total de votos). Mas o lulismo é maior que o PT e, possivelmente, maior que o PMDB. O lulismo é uma concepção de gestão política e do Estado que inverteu absolutamente o ideário petista. O PT, por seu turno, se “americanizou”, ou seja, forjou-se como uma grande máquina eleitoral, ao estilo dos partidos Democrata e Republicano, um “partido-empresa”, onde a burocracia interna, desconhecida por grande parte da população, até mesmo dos filiados, opera alianças, apoios, financiamento, peças publicitárias. Obviamente que há resistências internas. Mas as correntes internas contam muito pouco para a prática do PT.
O efeito imediato do lulismo como força política superior a do PT é a dissociação da base social e eleitoral de um de outro. O partido ainda trilha o caminho aberto pelo lulismo, de transição de uma base organizada e de grandes centros urbanos para a população de baixo poder aquisitivo, dos rincões do país e desorganizada. Uma mudança que retoma um dilema antigo da esquerda brasileira: a de se tornar popular sem perder o ideário de esquerda. Este é um dilema enfrentado desde a fundação do PCB, na década de 20. A esquerda brasileira tem profundas dificuldades para se tornar popular em virtude do lastro teórico de origem européia, do mito do partido de quadros e da necessária tutela do partido sobre os destinos das ações sociais. Tivemos autores que tentaram criar um pensamento de esquerda genuinamente brasileiro, como Caio Prado Jr ou Florestan Fernandes. Mas pensar o Brasil nunca foi tarefa fácil, porque somos uma nação multifacetada e corroída por uma cultura moralista e conservadora. O lulismo dialoga diretamente com esta cultura popular, complexa e conservadora. Fala para a classe média emergente, que desconfia da política mas é extremamente pragmática o que, na prática, a leva a ser cínica. Aceita, mas sem nenhuma fé.
O lulismo, ao se submeter à ordem do sistema partidário, dialoga com esses segmentos sociais desorganizados e sem qualquer pretensão pedagógica, sem buscar enfrentar a cultura conservadora. Seu diálogo é rebaixado, procurando criar uma identidade permanente. Ora, ser reflexo político de uma base social conservadora é efetivamente trilhar pelo conservadorismo. E este é o motivo pelo qual o lulismo – e os dirigentes petistas que abraçaram o realismo político - perdeu toda inspiração de um projeto de esquerda. O lulismo é social-liberal. Por este motivo, o PT se tornou figura menor. O petismo não se tornou popular. Em contraste com o lulismo, sua imagem pública se tornou carrancuda e, para a grande imprensa, oportunista.
O PT tem dois momentos muito distintos em sua história. Nos anos 80 foi um partido de massas porque abraçou a lógica e ideário dos movimentos sociais daquele período, marcado pela democracia direta, o anti-institucionalismo, o anti-capitalismo, o participacionismo e o comunitarismo cristão. Mas em meados dos anos 90, foi capturado por um grupo político muito menos público que as tendências e correntes petistas (ex-militantes de esquerda organizada oriundas do PCB e dirigentes sindicais metalúrgicos e bancários, o setor mais controlador e autoritário do sindicalismo brasileiro). Esta cúpula adotou práticas estranhas à origem do partido, deixaram de lado a utopia que gerava energia à militância e agiram de maneira rebaixada, pragmática, focada na vitória a qualquer custo.
Nos anos 80 era preciso ser líder de massas para ter expressão pública no PT. A partir de 94 não houve mais esta necessidade e identidade. Muitos dirigentes passaram a ter sua legitimidade centrada na burocracia partidária, na vida parlamentar, nos cargos da administração pública, mas não mais em movimentos e representação de massas.
E, por esta breve leitura da trajetória do partido podemos indicar a hipótese que o PT viverá, a partir de 2011, uma profunda encruzilhada. Se continuar adotando a atual via do estatal-desenvolvimentismo, tutelando a sociedade civil, ou seja, completando a modernização conservadora iniciada por Vargas, estará fadado a continuar falando para a classe média emergente, a maior porção do eleitorado brasileiro. E esta nova classe média é profundamente conservadora e pragmática. Se Dilma Rousseff vencer as eleições de outubro e resolver romper com esta lógica, poderá bloquear o diálogo fácil com esta nova classe emergente que, hoje, compõe a maior fatia do eleitorado brasileiro. A ruptura com a imagem de Lula será visível. E provocará uma profunda crise de representação partidária que será testada em 2011, em plenas eleições municipais. O dilema da esquerda permanecerá.
A questão posta pelo lulismo é como romper com sua poderosa e pragmática lógica e retornar à utopia da esquerda democrática, sem se tornar elitista. O PT estará nesta encruzilhada posta por estas duas referências: o lulismo ou o elitismo. A maior possibilidade será a de um lulismo com Lula nas sombras. Talvez nem tanto na sombra como se imagina. Lula deitou raízes na sociedade e no sistema partidário. Está enviando a Consolidação das Leis Sociais ao congresso. Não se trata de um trocadilho. Getúlio Vargas não estava no governo e foi carregado por muitas forças partidárias (incluindo o PCB, perseguido ferozmente por sua ditadura), de volta ao trono. O lulismo tem cheiro de queremismo.