Pois bem, neste artigo, Cidinha destila, desde o início, a frustração não contida de Marina ser religiosa, a partir do qual professaria "valores inaceitáveis quanto à orientação sexual de outrem, à soberania da mulher sobre o próprio corpo e à garantia da liberdade para o exercício das diversas práticas religiosas". E termina destacando sua maior contrariedade: Marina sugeria que estes temas (aborto e casamento gay, entre outros) fossem objeto de consulta pública.
O medo, implícito no artigo, se deve ao fato de qualquer plebiscito ou consulta popular realizada no Brasil invariavelmente dará ganho para o ultraconservadorismo fundamentalista. Muitas pesquisas recentes revelam que a maioria dos brasileiros (acima de 70% do total de opiniões aferidas) é a favor da pena de morte, criminalização do aborto e uso de maconha, proibição de casamento gay, entre outros temas "polêmicos".
Daí que parte dos defensores dos direitos civis compreenderem que qualquer consulta popular se transforma em chantagem política. Aí entramos numa seara das mais complexas.
Primeiro, porque a consulta popular nasce da mesma premissa do voto universal: a democracia fundada no deseja da maioria. Cidinha deveria, neste caso, revelar sua indignação com o voto. Não se trata de uma posição conservadora, por princípio, como já demonstrou Luciano Canfora (no livro "Crítica da Retórica Democrática"). Canfora sustenta, justamente, que as maiorias eleitorais são, muitas vezes, construídas por uma minoria organizada, o que constituiria uma aristocratização da democracia. Mas Cidinha fica no meio do caminho. E fica porque a concepção da democracia como exposição da vontade da maioria está na base de todas organizações de representação social do Brasil.
Segundo, porque o inverso da consulta popular cairia nas teias da teoria das elites. Pareto e Mosca foram os expoentes teóricos que naturalizaram as classes dirigentes no jogo social e político. Há muitos teóricos e países que creem na superioridade de uma elite mais preparada e racional que a maioria, a multidão envolvida em interesses egoístas ou paixões, que limita a capacidade de discernir sobre o justo e o privilégio, sobre o universal e o particular. As elites teriam preparo, tempo e estudo para refletir e ponderar racionalmente.
Enfim, Cidinha ataca a pessoa porque não se atreve a ir além.
Neste caso, parece temer a novidade que o partido de Marina representa no espectro partidário. Mais: parece temer a fragilidade política das organizações que defendem direitos civis no Brasil. Assim como os partidos que acolhem suas lideranças e agendas.
Marina procura articular uma agenda moderna (o desenvolvimento sustentável) com a ultraconservadora e fundamentalista (que conflita com a ampliação dos direitos civis no Brasil). Quando esteve em Belo Horizonte, à convite da Fundação Dom Helder Câmara, questionei esta contradição de sua agenda. Marina se saiu com uma anedota (sobre a observação que cientistas faziam das práticas indígenas para ter certeza se choveria ou não) que me pareceu a defesa da superioridade do saber comunitário e tradicional sobre o científico. Enfim, Marina nunca escondeu sua agenda e rosário de crenças.
Ora, neste sentido, qual o problema dela expressar esta crença em um partido?
É que o problema de fundo não é este. O problema é que nós, que defendemos uma agenda de ampliação dos direitos civis e democráticos, de controle do Estado pela sociedade civil, não conseguimos ser populares. E, ainda: o lulismo, ao procurar a popularidade como uma meta, rebaixou seu programa e se submeteu aos valores fundamentalistas da maioria da nossa sociedade. Em outras palavras, abandonamos o dever da disputa cultural, da ação pedagógica, do debate de ideias e valores.
Gente como Cidinha entregou as armas da argumentação pelo caminho fácil da imposição do direito via decretos governamentais e uma ou outra lei discutida no parlamento. A rua foi abandonada. E é por este motivo que falar em ouvir as ruas atormenta tanto e parece uma ameaça.
7 comentários:
Vamos colocar em questão o direito do negros, do casamento interracial, ná época em que foram instituídos? não acho pertinente colocar direitos de minorias em questão, em uma sociedade machista, heteronormativa, não é razoável! entendo o seu ponto de vista sob o abandono das discussão nas ruas,mas, qualquer debate com grupos contrários à ampliação dos direitos civis minorias são permeados de "Deus criou o homem e a mulher", ou que esse mesmo deus seria resposta de todas as coisas? impedindo um debate em outros termos...não há novidade no referido partido só velho conservadorismo que naturaliza as diversas "exclusões" como as econômicas, de classe, de gênero.
Veja, Anselmo. Da mesma maneira que não concordo com o discurso fundamentalista, não concordo com o tom excludente (e também fundamentalista) da crítica contida no artigo que citei na nota. Contudo, os dois discursos têm o direito de se expressar. O tom, contudo, é o mesmo, de exclusão ou de limitar ao máximo os argumentos em função de um princípio de ouro, fechado, intolerante. Sinto o mesmo em grande parte do movimento negro, para citar um dos que você alinha. Por que deixamos de debater para incriminar ou excluir?
Concordo com vc a criminalização de alguma coisa não vai fundo na discussão, mas é um ponto sensível aos que defedem a negativa de direitos a certos segmentos sociais, pois os intrumentos do direito penal são da preservação da ordem. Concordo com o debate nas ruas, mas o que me parece quando se adentra na questão dos valores e crenças individuais os mesmos são inegociáveis e mesmo há um ambiente avesso ao debate (por, consumismo, individualismo) e enquanto houver isso sou a favor da atuação estatal na afirmação de direitos das "minorias", como por exemplo a questão do casamento igualitário.
ps:Vc assistiu à entrevista de Silas malafaia à Marília gabriela? e a réplica de um geneticista que estuda na inglaterra? em vez de tentar responder com argumentos o Pastor reposndeu: metido a doutor, que defende em causa própria!
Bom, Anselmo, sou filhote da velha escola de pensamento gramsciana. Portanto, entendo a construção da hegemonia como conquista e não como imposição (como era a solução leninista). Não gosto de vencer pela via administrativa. Prefiro a disputa de ideias e valores. Portanto, tudo é negociável, desde que garanta avanços ou rupturas em culturas fundamentalistas e conservadoras. Não gostam das leis "que não pegam" e que podem desmoronar com uma simples eleição ou alternância de poder. A disputa política deve visar algo mais perene. Percebo, nesta pressa, algo que se aproxima do pragmatismo político, com foco apenas no resultado, não no método. Sobre Malafaia, quem é este cara, mesmo? Ele é um personagem secundário e o que importa são seus seguidores, não este falso profeta.
Também prefiro a disputa por ideias e valores.
com exceção no campo dos costumes..
Olá Rudá, sou a autora da pequena crônica confrontada por ti neste artigo. Um amigo de BH, seu leitor, comentou hoje sobre a publicação e corri aqui para ver. Não pretendo discutir nossas divergências, mas, sinceramente, agradecer por você ter se dado ao trabalho de discutir minhas ideias. Sinto-me honrada por merecer a leitura e atenção de um pensador respeitável como você. Deixo um abraço. cidinha da silva
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