quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Juventude na Campanha da Fraternidade 2013

Anteontem, tive a honra de participar de um pedaço da Campanha da Fraternidade deste ano, que tem como tema central a juventude. Falei na zona leste, convidado pelo Padre Ticão, onde compareceram quase 300 pessoas de toda região leste da capital paulista.
Eu já havia postado algo aqui e prometi reproduzir minha fala. Então, lá vai:

Padre Ticão me pediu para dar um testemunho pessoal. Então, resolvi contar um pouco da minha passagem da infância para a juventude, não como exemplo, mas como base para analisar o que é e como nos tornamos jovens. Esta não é uma escolha fácil, mas espero contribuir. Porque eu poderia começar pelos dados que revelam que nossa juventude merece nosso apoio. A maior causa de morte de jovens no Brasil, principalmente homens, é homicídio com arma de fogo. Os adolescentes e as crianças formam um índice mais que duas vezes maior de pobres que a dos adultos. Todos os dados são estarrecedores. Eu preferi, contudo, trilhar pela sugestão de Padre Ticão. Começo contando algo que me marcou muito na infância. Meu pai, pouco antes do Natal, comprava frangos, sanduíches e refrigerantes e colocava em várias caixas, dessas de sabão. Arrumava tudo no porta malas do carro e chamava os filhos para dar uma volta. Era um final de semana, início da noite. Parávamos na entrada de algum bairro onde havia muita pobreza. Algo que já, por si, é muito estranho. Afinal, como poderia existir um bairro com tanta pobreza numa cidade de 40 mil habitantes? Já era uma dica que tantos cristãos só poderiam ser da boca para a fora. Por que? Porque ser cristão é algo pensado, não é algo natural. Ser cristão é transcender, quer dizer, perceber que só existimos como comunidade, pensando e fazendo algo pela vida dos outros. Isto não é fácil. O comum, o mais animalesco, é pensarmos em nós mesmos, no sucesso, no bem estar próprio, no máximo, no bem estar da prole. Mas pensar o bem e se preocupar com um estranho, isto é algo maior, que exige a tal conversão, de fato. Nós distribuíamos as caixas para os moradores daquele bairro. Batíamos palma e perguntávamos se eles aceitariam um presente de Natal. Meu pai dizia que nunca deveríamos dizer o nome de quem estava dando aquilo. Ele não dizia porque, mas isto criava uma boa sensação em todos nós, os três irmãos.
E é por este motivo que eu até hoje acredito que o maior conceito de toda religião é o de gratuidade. Fazer algo sem esperar nada, pelo simples motivo de se sentir parte da humanidade e fazer o bem para os outros, isto é que dá sentido ao sentimento religioso. O que mutos políticos, que não entendem absolutamente nada sobre religiosidade, entendem como ingenuidade.
Mas começo por aí porque não acredito que uma criança consiga construir uma noção de Deus justamente porque a criança é puro desejo e a noção de comunidade de iguais exige administração do desejo, exige que consigamos conter o olhar só para si, que estejamos convencidos que a vida só tem sentido se os outros estão bem como nós. Mas, neste caso, o ato dos adultos que estão perto de nós, que chamamos de famílias (não necessariamente a biológica), muito mais que as palavras e a doutrinação, criam uma espécie de curto-circuito lá dentro de nós. Entregar caixas com alimentos para pessoas tão diferentes da minha família criava uma espécie de estranhamento. Acho que foi isto que Siddharta sentiu ao ver a velhice e a doença, que seus pais tentavam poupá-lo, e este choque é que o fez se tornar Buda. Diferente de Siddharta, que foi poupado pelos pais (que encobriam a verdade), meu pai me colocou em contato com este choque de realidade. E isto fica. Até hoje me lembro disto, com muita nitidez. Acho que é este curto-circuito que vai alimentar o sentimento religioso, mais à frente, já na adolescência. Mas não só.
E acho que, novamente, minha história pode ser ilustração do que estou querendo dizer. Com 15 para 16 anos, eu estudava numa escola estadual. Só pensava em jogo e só jogava. Quase o dia todo. Mas, no intervalo das aulas, tentávamos estar bem para nos aproximarmos das meninas. Sempre há umas duas ou três que despertam paixões juvenis. Mas o problema era um raio de guarda pó que tínhamos que usar para as aulas de marcenaria. Naquela época, regime militar, parte do ensino fundamental agregava aulas semi-profissionalizantes. Mas com o calor infernal que fazia na minha cidade, o guarda pó não ajudava em nada. Ficávamos suados dentro daquela sauna ambulante. Aí, eu e alguns amigos tivemos a ideia de fazer um abaixo assinado contra o guarda pó. Coletamos muitas assinaturas e entregamos para a diretora, uma senhora com um cabelo todo armado, parecendo algodão doce, que não entendia muita coisa de educação. Ela ficou apavorada e denunciou o abaixo assinado "subversivo" ao DOPS. E lá estavam, na manhã seguinte, nossos pais na pequena delegacia de polícia de nossa cidadezinha. Eles queriam saber qual professor comunista estava incentivando nosso ato subversivo. Foi o que bastou para tentarmos entender do que estávamos sendo acusados. E começamos a estudar o que era o tal comunismo. Lembro que dois amigos, em especial, ficavam me instigando o tempo todo, dizendo que eu era burguezinho e que não entendia nada, só pensava em jogar e ter vida de playboy. Isto me ofendia, mesmo sem entender muito bem o que queriam dizer.
E este é outro elemento da minha vida que gostaria de usar como ilustração para conversarmos sobre a juventude. Hoje, há muitos estudos que dizem que são os amigos que formam valores e hábitos entre os jovens. Cada vez mais, os pais e todos adultos tem menos tempo para dar para os adolescentes. São os "pares de idade" que os acolhem e os confortam. E os educam. Ora, a provocação dos meus amigos me jogou para frente. Eu queria saber o que era ser burguezinho, se eu era e se havia outro jeito de ser. A provocação gerava um certo desmerecimento do que eu era, me fazia pensar sobre o que eu era. E gerava certa frustração. Aqui está uma palavra que os pais de hoje abominam: frustração. Mas, o fato é que se não nos frustramos nesta fase da vida, continuamos crianças, vivendo só a partir de nossos desejos, não conseguindo administrá-los e só pensando em nós mesmos. E se pensamos em nós mesmos, não há como nos entendermos como cristãos, como já disse no início. Mas é mais que isto. Se não pensamos se o que somos e fazemos está correto, não fazemos escolhas conscientes. Sartre dizia que somos nós que fazemos nossa essência, ou seja, somos nós que escolhemos caminhos, que nos fazem maus ou bons. Não nascemos ruins ou maravilhosos. Embora Sartre não fosse cristão, muito menos religioso, ele nos dá uma dica importante: só ao olharmos o que somos, de fora, é que podemos fazer escolhas conscientes sobre a essência que estamos criando para nós.
Então, aqui vem outra dica. Não dá para um cristão apenas viver, passar pela vida. Ele precisa refletir, pensar sobre o que viveu, fazer escolhas. Entendem? O que estou querendo dizer é que não dá para ser cristão se não conseguirmos refletir sobre o que somos, se só pensamos em nós sem olhar para os outros, para aquilo que acreditamos ser a humanidade e, a partir daí, fazer escolhas. Temos que dialogar com o que somos. Aliás, é o que Santo Agostinho queria dizer sobre dialogar com a verdade interior. Dizem que Santo Agostinho foi o primeiro grande filósofo cristão. Outros dizem que foi São Paulo. Mas como sou corinthiano, não quero dar esta chance para os saopaulinos. O fato é que a comunidade cristã (assim como os pais) precisa criar situações para os jovens pensarem sobre si. Para pensarem sobre as frustrações, que são essenciais para aprendermos a administrar o desejo. E temos que pensar as amizades como combustível para esta reflexão. Muitas vezes pelas chacotas. Mas elas fazem parte. O ruim é acharmos que nossos jovens não podem se frustrar, que precisam ser protegidos do mundo real, que o que querem tem que ser atendido imediatamente como prova do nosso amor. Este é o atalho mais perigoso, que pode alimentar o egoísmo e a ruptura daquilo que nos faz humanos: a solidariedade e o sentimento de justiça como equidade.
Explico. A noção de justiça é muito superior ao simples respeito às regras. Respeito à regra toda criança sabe o que é. O pai, como um deus, diz que isto é certo e a criança é obrigada a cumprir. Mas justiça é algo maior. E nasce do confronto entre várias regras. Ao confrontar, somos convidados a escolher a mais justa, aquela que que garante a igualdade formal entre humanos, que elimina desigualdades (não diferenças, que fique claro). Mas há duas formas de pensarmos a justiça. A mais simples é a justiça como igualdade. Se uma coisa é certa, tem que ser igual para todos. Ledo engano. Veja o caso da pista de corrida nas olimpíadas, que adota a forma oval. Se o justo é o que é igual para todos, a saída para uma corrida de 400 metros teria que ser em linha, um corredor ao lado do outro. Mas a pista é oval. Assim, aquele que sai na raia mais aberta, vai correr mais que aquele que estiver na raia fechada, já que a curva será pequena. A igualdade parece justa, mas não é. Portanto, a noção de justiça superior é a da justiça como equidade, ou seja, a regra que dá condições iguais (não que parte de uma situação idêntica) aos desiguais. Por este motivo que nas olimpíadas, o que corre na raia mais aberta sai alguns metros à frente do que sai da raia mais fechada, e assim por diante.
A questão é que para sermos justos (com equidade) temos que abrir mão de "nossas vantagens iniciais". Este é um esforço superior, que nos faz humanos (como dizia Hannah Arendt, nós não nascemos humanos, mas nos fazemos humanos). Não é um esforço qualquer. Imaginem. Significa que percebemos que temos uma vantagem que não é tão justa. E abrimos mão desta vantagem, que nos daria possivelmente a vitória, para que o outro, com qual supostamente competimos, fique em pé de igualdade conosco. É algo superior. Quantos de nós ficou positivamente surpreso quando Guga dizia ao juiz que a bola que lhe daria a vitória tinha saído, perdendo o ponto que parecia certo? Ou a história de Garrincha jogar a bola pela lateral, que estava nos seus pés, porque um adversário tinha se machucado e precisava ser atendido? A vitória, neste caso, era menor que a humanidade, que este sentimento de pertencermos a algo maior que uma rinha infantil.
Família cria, como já disse, pelos atos, o curto circuito que será acionado quando nossos amigos nos instigam (nem sempre positivamente). As amizades são a porta de saída do mundo familiar, digamos assim.
Mas aí vem o segundo problema para pais e adultos entenderem a juventude. Achamos que, quando nos contrariam, fazem por estarem com más companhias ou para se afirmarem. Se afirmam pelo confronto. Sim e não. Em parte, ocorre da afirmação se dar pelo conflito. Porque as regras que aprendemos com os pais nem sempre são as mais justas. E isto frustra os filhos que nos achavam invencíveis. Mas não é apenas isto. O psicólogo Jurandir Freire ao analisar um filme sobre jovens transtornados afirmou que é muito comum que o que os jovens fazem é radicalizar os sinais que os pais lhes dão. Algo que é justamente o contrário do que imaginamos. Freire dá um exemplo arrasador. Diz que quando um pai se separa de sua família em função de uma paixão, que lição acaba deixando para os filhos? Que entre a paixão e a responsabilidade, ficou com a primeira. É algo forte, mas que nos faz pensar que o caminho do equilíbrio é o mais adequado, embora seja o mais difícil, evidentemente.
Voltando ao Siddharta, ele se revoltou contra os pais que o protegiam como príncipe. Quando, ao insistir com seu preceptor para sair do palácio para ver as ruas, a realidade o chocou. Não imaginava que existiria fome, doença e velhice. E este choque o revoltou. Abandonou tudo e partiu para uma jornada reflexiva que o tornaria Buda. O que quero tirar desta lição é que a juventude adora a verdade. É radicalmente contra mentira ou proteções exageradas. Não que o confronto com a realidade seja tranquilo. De maneira alguma. Mas é ela que abre possibilidades. E aqui me parece o que marca definitivamente a juventude: a escolha das possibilidades. Se teve, na infância, situações criadas pelos pais (ou pela vida) que geraram o tal estranhamento com o egoísmo infantil, elas voltarão neste momento de escolhas. A grande maioria dos jovens sente energia pura para ser diferente dos antigos, de ser protagonista. "O que meus pais não fizeram, eu farei", é uma das palavras de ordem mais conhecidas. Este é o momento crucial para ele, mas também para toda comunidade cristã. Porque é aqui que podemos ajudar a dialogar. Não impor, nem chantagear. Mas, talvez, conversando sobre nossas dúvidas e escolhas, fazendo um testemunho (e acho que por este motivo que Padre Ticão me pediu para dar um testemunho pessoal sobre o tema da Campanha da Fraternidade).
Porque neste momento, há jovens que simplesmente acabam por seguir os grupos, amigos e líderes. Na dúvida, seguem os que falam com mais segurança, com mais força, ou os que instigam mais. Nem sempre dá errado, mas é o caminho sem consciência nítida, sem escolhas pessoais claras.
Há os que, ao contrário, se isolam, sofrem consigo mesmos e sentem que estão perdendo o paraíso familiar. Uma tortura muitas vezes desnecessária.
E há, ainda, os que duvidam permanentemente, se desorientam momentaneamente, experimentam (concretamente ou nas suas fantasias).
Os três caminhos (e evidentemente há outros) podem ser perigosos. O que pode diminuir o risco pessoal é justamente o diálogo com outros, jovens ou não. E é aí que eu acredito que a comunidade cristã pode dar uma contribuição mais efetiva. Desde que esqueçamos a chantagem ou punição. A chantagem do pecado é o mais cruel porque não dialoga com a dúvida. Impõe uma certeza e desqualifica este momento de escolha do jovem.
Também temos que nos policiar para não criarmos falsos acolhimentos, buscando atrair pela forma, parecendo que a igreja é jovem, mas da maneira mais artificial: com músicas, gritaria e encontros festivos que não passam de eventos.
Na minha opinião, a questão central é como a comunidade se tornar espaço de desconcentração, diálogo, escuta e experiência. Um espaço de amizade, porque já afirmei que é pela amizade que se reconstrói o caminho daquele que deixa a infância para entrar no mundo do jovem.
Acredito que este é um dos motivos do uso desenfreado de twitter, facebook e youtube. Por qual motivo um jovem filma pelo celular alguns segundos de uma festa, parecida com tantas outras milhares que ocorrem naquele momento, e posta no facebook? Ou que posta no twitter algo como: "por que este cara do meu lado fica gritando no ouvido?". Parece óbvio que tenta falar com alguém sobre sua vida, se expondo num reality show pessoal, tentando interagir, ser visto, ser alguém cuja vida vale a pena compartilhar. E nem sempre conseguimos perceber a possibilidade aberta por este diálogo.
Vou terminar com um último testemunho, agora já com uns 17 anos. Ao ser instigado por aquela história do abaixo assinado ser coisa de comunista, comecei (com meus colegas de "subversão") a ler muito sobre o que era comunismo e sobre os motivos da pobreza e das lutas políticas. Um dia, cheguei a um conjunto de slides produzidos pela Arquidiocese de São Paulo, que se chamava Fé e Política. Eram vários desenhos, uma espécie de  história em quadrinhos, baseado no Êxodo, mas situada nos dias atuais. Tratava da união dos marginalizados, lutando por seus direitos, entre outras coisas. Decidi passar estes slides numa comunidade rural. E pedi ajuda para um padre, que sorriu e disse que depois da missa, convidaria todos para assistirem meu "filminho". Foi o que ocorreu. E, depois de assistirem os slides num salão paroquial muito simples, abri a discussão. Perguntei quais eram os problemas da comunidade e a resposta, por algum tempo, era um silêncio sepulcral. Até que um menino, alto, se levantou e disse que o problema era que faltava jogo de camisa para o time de futebol deles. Eu achei, cá com meus botões, que era algo muito alienado e nem dei bola. Continuei perguntando se havia problema com as estradas, ou com falta de trator, ou água. E nada. Até que um senhor disse que se queria ajudar, o problema era o jogo de camisetas de futebol. Eu não dei bola. E, aos poucos, todos foram saindo. Até restarmos eu e o padre. Fiquei desolado. O padre veio caminhando até bem perto e disse: "Rudá, a gente entra pelas portas que o povo abre".
Foi a maior lição política da minha vida. O jovem alto tinha aberto a porta e eu me recusei a entrar.
A grande questão é: como, num mundo em que o sucesso e a corrida para saber quem chega primeiro no olimpo dão o tom da existência humana, como nós, cristãos, nos envolvemos na busca da juventude?

2 comentários:

Fred disse...

Sigo o seu blog por interesse pelo mundo político, mas posts como esse me fascinam muito mais. É a vida real, como aprender com a vida, com o que está em volta.
É um belo depoimento. Li até o final e com certeza vou relê-lo novamente para tentar extrair alguns aprendizados.
Abs
Fred

Anônimo disse...

Rudá, não sou cristão (tive formação católica até a primeira comunhão, hoje me considero agnóstico), mas achei seu exto extremamente bonito e inspirador. Como disse o Fred, com certeza vou reler esse texto um dia.

Gosto das suas análises políticas, mas seria ótimo se você escrevesse mais sobre suas experiências. Grande abraço!