Diferenças entre lulismo e petismo: mais um pouco do debate com Luiz Marquez sobre o lulismo
Rudá Ricci
Luiz Mario nos brinda com a continuidade do debate. Sei que parece cabotino, mas não resisto a afirmar o quanto sinto saudades deste tipo de debate, tão freqüente no período de fundação do PT e dos movimentos sociais nascidos quase que simultaneamente. Lembro-me dos encontros apinhados de estudantes e militantes, com Paulo Freire, Marilena Chauí ou mesmo as defesas de tese que procuravam repensar o Brasil e colocavam em pauta até mesmo o conceito de Revolução de 30 construído por autores alinhados com o PCB. Cada livro publicado pela Editora Brasiliense era motivo de grande excitação e debate nos meios acadêmicos e partidários (ao menos, entre partidos de esquerda). Agora, vivemos esta pasmaceira, esta mesmice que faz do debate uma quase-ofensa, como se fora um elefante adentrando a loja de porcelanas.
Agradecimentos feitos, vamos à discussão. Destaquei (com a ressalva: toda eleição é uma escolha de cunho pessoal) os seguintes pontos de divergência que tentarei aprofundar:
1. Luiz sustenta que não há identidade entre PSDB e PT. Ilustra esta convicção com as diferenças de pauta de governo de FHC e Lula;
2. Sugere que o governo FHC foi marcado pela agenda neoliberal
3. Também não concorda com minhas críticas (imagino que as considere excessivas, mas não totalmente descabidas) ao Welfare State. Embora tenha afirmado que esta crítica também é feita pela extrema esquerda, vou desconsiderar esta linha argumentativa por um motivo simples: não citei nenhum argumento de extrema-esquerda, mas críticas oriundas do centro formulador da própria social-democracia européia (como Claus Offe) e, surpreendentemente, do PT
4. Cita um caso específico de ampliação de espaços de gestão participativa implementados pelo atual governo Tarso Genro em que um dos convidados teria declinado à participação num colegiado plural por recusar sentar-se com o patronato
5. Afirma que o PT continua o mesmo, adotando espírito classista, utópico e ainda pautado por estrutura organizativa democrática
6. O lulismo não é neogetulista ou marcado pela modernização conservadora. Cita, como ilustração, as 70 conferências nacionais que promoveu durante sua gestão.
Obviamente que não concordo com essas seis crenças de Luiz. Vejamos.
O PT tem uma identidade tão próxima à do PSDB que estiveram coligados nas últimas eleições municipais em mais de 1.000 municípios. Não se trata de uma mera coincidência eleitoral. Na capital mineira fizeram juntos, o prefeito, sendo que o partido lulista havia governado a cidade por várias gestões. Há uma identidade programática e de estilos. Obviamente que ao citar a Carta ao Povo Brasileiro, a escolha de técnicos pró-FHC pelo ministro Palocci para compor as secretarias nacionais da Fazenda (em especial, os que elaboraram a Agenda Perdida), a mudança de percurso do controle social para a articulação com prefeitos e governadores ou a sobrevida que deu às lideranças da oligarquia política regional alimentará a previsível chave explicativa da “correlação de forças”. Argumento subjetivo que aproxima ainda mais o PT do velho partidão e do etapismo como marca do vanguardismo. Nada que deponha contra o PCB, mas que depõe contra o PT que nasceu como oposição a esta visão. Aliás, a crítica de PCdoB e PCB quando da criação do PT foi justamente o esquerdismo que não percebia o erro da ousadia extrema de se criar um partido de trabalhadores fincado na alteração da lógica política vigente e do capitalismo.
O fato é que não se trata apenas dos anos Lula. O PT inovador deu lugar à imposição de alianças estranhas no Maranhão, Minas Gerais, Paraná e tantos outros, calando a militância. O modelo de formulação política para campanhas, altamente participativa, foi substituída pelo processo de decisão dos marketeiros e burocratas do partido. Quando coordenei a elaboração do programa agrário da campanha de Lula em 1989 tive que acompanhar uma maratona de seminários e debates regionais, de reuniões com petistas da academia, de ONGs, sindicatos, movimentos sociais. Discutimos e discutimos a ponto de José Graziano da Silva criticar a “colcha de retalhos”. Não se tratava de retalhos, mas da expressão das crenças e certezas de nossos militantes. Na posse de Collor já se percebia alguma coisa no ar. Fiz parte do governo paralelo e na primeira reunião que tivemos, exatamente no dia em que Collor anunciava o seqüestro da poupança ouvimos, estarrecidos, a equipe econômica ali presente (onde figurava um atual ministro de Dilma Rousseff) a frase que nos deixou atônitos: “faríamos o mesmo se Lula vencesse as eleições”. Não se trata de identidade programática com o PSDB, mas com Collor! Eu devia ter tirado uma foto da expressão de Fábio Konder Comparato, que estava ao meu lado.
O fato é que a cúpula do PT percebeu, após as eleições de 89, que seria possível governar o país. Em 1989 lembro-me, ainda, de como discutíamos a experiência de Salvador Allende. Sabíamos que enfrentaríamos este cenário como possibilidade real. Aliás, o Comando de Caça aos Comunistas já fazia reuniões públicas, em restaurantes próximos da prefeitura de São Paulo, governada por Luiza Erundina. Mas em 1990, já ficava claro que a cúpula paulista do PT queria ser mais pragmática. E Lula, em 1994 e 1998, repisou esta cantilena, até chegar à eleição vitoriosa afirmando que não seria candidato para perder e que exigia alianças mais amplas. Não eram apenas alianças mais amplas. Era mudança programática. Não vou desfiar todas mudanças em relação às resoluções coletivas do partido. Cito as mudanças em várias passagens do meu livro. Quero, contudo, destacar que o grande problema foi o PT abdicar de seu papel pedagógico pela extrema necessidade de ser popular. Para se tornar popular foi necessário – não em função da tal correlação de forças, já que não se trata da força entre partidos, mas da formatação de um discurso hegemônico – se amoldar ao conservadorismo da maioria do eleitor brasileiro. Até então, Gramsci era uma inspiração permanente entre petistas. Não raro, lideranças e intelectuais petistas afirmavam que seria possível conquistar o poder sem ser governo. Quanta diferença daqueles anos efetivamente marcados pela utopia para o realpolitik dos anos 1990!
Outra cantilena é a do neoliberalismo. Mas, o que é neoliberalismo? Segundo estudos de Sonia Draibe, trata-se de uma mera pauta de programa e não uma teoria. Segundo a autora
“Não há um corpo teórico neoliberal específico, capaz de distingui-lo de outras correntes do pensamento político. As teorizações. que manejam os assim ditos neoliberais são geralmente emprestadas do pensamento liberal ou de conservadores e quase que se reduzem à afirmação genérica da liberdade e da primazia do Mercado sobre o Estado, do individual sobre o coletivo. E, derivadamente, do Estado mínimo, entendido como aquele que não intervém no livre jogo dos agentes econômicos. (As políticas sociais e o neoliberalismo: reflexões suscitadas pelas experiências latino-americanas. In: Revista USP – Dossiê Liberalismo, Neoliberalismo. São Paulo: USP, 1993, p.88)”
E que pauta é esta? Segundo a mesma autora, ao conceito de renda mínima (sim, aquela defendida por Eduardo Suplicy), descentralização, privatização e focalização (sim, aquela defendida pelo Ministério da Fazenda do primeiro governo Lula).
Acrescentaria a preferência das políticas protetivas da área social (já que os neoliberais sustentavam que ações assistenciais deveriam ser delegadas ao Terceiro Setor) em relação às políticas promotoras (que criam forte ascensão da condição de vida e não apenas de proteção à vida).
Ora, se nos pautamos pelo formalismo, encontraríamos várias destas marcas na gestão Lula. Já citei a focalização – que gerou forte atrito entre Maria da Conceição Tavares, Marcio Pochmann e equipe do então ministro Antonio Palocci. Mas seria um evidente exagero. É por aí que me pauto para afirmar que também é um exagero afirmar que a gestão FHC foi neoliberal. Antes, foi definida pelo Estado Gerencial, ou New Public Management, formulado no Reino Unido e Nova Zelândia e importado pelo então ministro Bresser Pereira. Ora, o Estado Gerencial possui elementos neoliberais, mas também social-democratas. Então, estamos nos referindo a modalidades de uma agenda que tem na intensidade da participação do mercado na formulação das políticas nacionais as suas diferenças. Somente assim, podemos entender a forte participação do alto empresariado nacional na gestão Lula. E não como pragmatismo e respeito à correlação de forças. Mas como crença numa formulação que didaticamente venho apelidando de “fordismo tupiniquim”. O lulismo é conciliador e tem no seu DNA a crença fundamentalista no consenso, o antigo “consenso progressivo” que se aplicava nas reuniões da Articulação. Mais: é uma identidade sindical, da negociação permanente. Daí podemos compreender o motivo para Lula deixar vazar que Henrique Meirelles deveria permanecer à frente do Banco Central (o que a presidente Dilma não acolheu), fazendo o contraponto a Guido Mantega.
O que torna o mundo mais complexo e menos maniqueísta.
Discuti este problema num seminário que o PT mineiro realizou durante o governo FHC. Tentei explicar para Aloísio Mercadante os erros de se simplificar a leitura da realidade para os militantes petistas ao taxar de maneira simplória o governo FHC de neoliberal. Na América Latina, o neoliberalismo foi implantado em sua forma mais acabada no Chile. Mas no Brasil foi um arranjo de tipo mais complexo que esta fórmula ultraconservadora sugere.
O que estava, naquele período (anos 1990), em tela era a crise do Welfare State. O que ocorria? As duas crises internacionais provocadas pelo preço do barril do petróleo (em 1974 e final da década de 1979) colocaram em xeque o modelo de produção exclusivamente baseado nos derivados de petróleo e em extensas plantas industriais. Uma ilustração da mudança que se seguiu foi o tamanho e estilo dos veículos automotores: das “bacias de petróleo” norte-americanos para os “compactos” orientais. O Welfare State, que nada mais foi que uma expressão progressista e européia do fordismo, entrou em falência porque não tinha como manter o seu financiamento a partir do pacto produtivo keynesiano-fordista. O que tento alertar é que o lulismo vai pelo mesmo caminho e que a política de transferência de renda – cujos resultados são tão positivos e progressistas quanto aqueles gerados pelo Welfare State – não é sustentável. Enfim, não podemos confundir, sob pena de sermos irresponsáveis politicamente, o resultado com a política não-sustentável. Porque o discurso lulista se apóia nesta falácia: que o resultado é a prioridade. Sem taxar a renda – o que desconstruiria a política de consenso – a transferência de renda começa a bater no teto.
Enfim, estamos lidando com o aggiornamento do estatal-desenvolvimentismo centralizador e que tutela a sociedade civil. Não há como concordar que 70 conferências signifiquem participação. Este é o problema ao se confundir mobilização com participação ou controle social. Problema, aliás, que afeta toda lógica atual do orçamento participativo, já destacado pelo governador Tarso Genro. A energia inovadora dos anos 1980 tornou-se um pastiche de progressismo e participação. Em Belo Horizonte as plenárias foram substituídas por sistemas virtuais de consulta. Sugiro, para não me delongar, a análise do gradiente de consulta-participação definido por Sherry Arnstein.
Tarso Genro não pode ser contabilizado como parte do lulismo. Sua formação e capacidade de formulação são muito mais sofisticados e críticos que o lulismo. Não precisamos nos voltar para suas propostas formuladas a quatro mãos (com José Genoíno) publicadas no jornal Folha de São Paulo, que significaram um sopro de inovação no PT; nem precisamos retomar sua tese habermasiana dos espaços públicos não-estatais para sabermos que estamos falando de um intelectual de esquerda. Bato na tecla: a participação e o controle social somente ocorrem quando alteram a cultura política e a lógica de tomada de decisões públicas. Caso contrário, estacionamos no plano do espetáculo. Estacionamos, Luiz. Perdemos a energia moral da esquerda inovadora do pós-regime militar. Contentamo-nos com a tutela, com a urgência do combate à pobreza, com a correlação de forças. Ficamos calados quando a Executiva Nacional do PT proíbe que filiados participem de manifestações anti-Obama. Acreditamos que o financiamento público de campanhas acabará com o caixa 2. Tentamos crer que não criticar o assassinato pelo Estado de uma mulher no Irã é sabedoria de um estadista. Tentamos esquecer que o Fome Zero saiu das mãos de organizações populares articuladas por Frei Betto e foi para as mãos de prefeitos de todos naipes e “utopias” ou que as audiências públicas em capitais brasileiras para discutir o Plano Plurianual do governo federal (um bom início para discutirmos o orçamento participativo federal) foram totalmente abandonadas no mesmo 2003. Procuramos apagar as tantas reuniões em que lideranças sociais ficaram perplexas e frustradas com os casos de corrupção envolvendo a burocracia petista, como o carro-propina recebido por Sílvio Pereira, o velho e bom Silvinho. Procuramos acreditar que aqueles que se afastaram do PT, como Marina Silva, Chico de Oliveira, Plínio de Arruda Sampaio, Chico Alencar, Paulo Rubem e tantos outros militantes sinceros foram, na verdade, traidores.
Não, Luiz, o mundo não é tão simples como optar entre lulismo ou não-lulismo. O PT mudou. A idolatria a Lula é, para mim, a prova cabal de como mudou. Justamente o partido que nasceu contra a idolatria, defendendo a desconfiança em relação às lideranças personalizadas. Justamente o partido que afirmava que somente a base social organizada e em total autonomia política poderia mudar o país e democratizá-lo.
Não, Luiz, não posso concordar com seus argumentos. O lulismo moderniza, mas é conservador, porque conserva o status quo que um dia o petismo jurou publicamente que alteraria. Não a atual inclusão através do consumo. Mas pela política. Com autonomia. Pelo controle social. Diminuindo o poder dos poderosos, das elites, e aumentando o poder da população excluída. Não se trata de esquerdismo. Mas do petismo. Espero que, com uma gestão inovadora e ousada, o governador Tarso Genro resgate o petismo.
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