sábado, 9 de julho de 2011

A carnavalização da política

Ronan posta uma mensagem neste blog fazendo uma solicitação:
Rudá,
Gostaria que você escrevesse um artigo relacionando o avanço da esquerda no Brasil dos últimos anos, o avanço dos direitos sociais e a expansão democrática e a contrapartida da sociedade que parece não aproveitar esses benefícios; sou professor da educação básica e a sensação geral é a de um excesso de direitos sem compromissos com deveres como observado na segurança (em que criminosos não são punidos) e na educação (em que maus alunos têm todo o direito de estar na escola mesmo que seja para causar desordem e ameaça); na verdade, como sempre foi no país, só existe educação mesmo para uma casta social; os governos mineiros (sem serem de esquerda) sempre se omitiram e vendem a propaganda forçada da melhoria educacional no Estado…

Na verdade, Ronan faz um comentário, que pode ser dividido em dois gomos.

O primeiro gomo é o que trata do avanço de direitos sociais e expansão democrática em nosso país. Temos aí fases distintas. A primeira, que se inicia em 1977 e se completa com a nova Constituição Federal. 1977 é um marco na redemocratização democrática, quando o regime militar perde capacidade de investimentos (em função da queda de liquidez internacional), o empresariado se articula nacionalmente, têm início a articulação de organizações de esquerda com parte da igreja católica progressista na promoção de movimentos, como o Movimento Contra a Carestia e organização em bairros e comunidades rurais, entre outras situações inovadoras. Em 1974 já começava a arrancada do MDB e oposições, gradativamente ganhando eleições sobre a ARENA. Mas 1977 já havia um movimento mais amplo que envolvia centros políticos irradiadores. Passamos pela campanha das diretas, pela ascensão dos movimentos sociais e recriação das centrais sindicais, pela articulação do PNRA no interior do governo Sarney e inovamos em vários artigos da Constituição, abrindo a brecha da criação dos 30 mil conselhos de gestão pública hoje existentes. Os anos 1990 foram dedicados à institucionalização das novidades. E aí entramos num segundo período. Porque se inovamos e ampliamos os espaços da ação política na década anterior, esta foi a década mais legalista, mais intimista, mais fechada nos escaninhos do Estado e dos fóruns de negociação e formulação de políticas públicas. O mais surpreendente é que a partir daí o protagonismo na política passou a ser, gradativamente, dos atores tradicionais, dos partidos políticos e do Estado. E avançamos nesta trilha, até que chegamos à politização do judiciário, que passou a decidir em virtude da ausência do legislativo no trato de questões nacionais. Mesmo porque, o legislativo passou a negociar espaços com o executivo e se furtou das pautas nacionais, das relações com a sociedade civil, da ousadia.

Não menos surpreendente é que os oito anos de governo Lula embotaram nossos novos mecanismos de participação institucional dos cidadãos. O Estado patrimonial engoliu o que poderiam ter sido novos atores sociais, os conselheiros. O fordismo lulista tutelou ao invés do que se esperava, ou seja, ampliar a “invasão da sociedade” no interior do Estado.

Então, me deparo com o segundo gomo da proposição de Ronan. Não acredito que a sociedade simplesmente não “aproveita benefícios”, muito menos que não tenha “compromissos com deveres”. Há um evidente transformismo dos avanços legais iniciados na Constituição Federal e em leis federais conquistadas no início dos anos 1990. Os sinais foram invertidos. A sociedade, é fato, se aquietou, muito em função da desmobilização ou mutação das lideranças sociais e movimentos sociais, que passaram a ser líderes de suas organizações particulares, buscando a conquista de recursos no “mercado” de financiamento ou no “mercado” político. O ideário de transformação social (e ampliação da cidadania ativa) foi substituído pelo discurso da competência. A técnica do planejamento eficiente passou a substituir a pauta da formação de cidadãos éticos e comprometidos com um projeto nacional. A técnica da comunicação social substituiu os fóruns e assembléias de discussão política. A eficácia política superou a mobilização política. A militância foi esquecida em função da capacidade de negociação de agendas e pautas. A sociedade se acanhou, é fato. Mas não porque não sabe quais são seus deveres e só pensa em direitos. Acanhou-se justamente pelo inverso: passou a ser mais legalista e transgredir menos. Mais e mais deveres e tutela estatal e menos ousadia e transgressão. Tornamo-nos envelhecidos precocemente. Até ontem, as ruas transbordavam ousadia e originalidade, passeatas com risos, palavras de ordem desconcertantes e apitos. Hoje, os apitos não têm humor. Hoje, quase se torna um ritual de comprovação de força, de imposição. É como se os líderes sindicais, quando fazem protestos de rua e greves, pensassem que a ordem é esta mesmo, mas querem ser reconhecidos, mesmo assim. Como dizia Boaventura Santos: trata-se de uma cultura carnavalizada, onde se transgride (quando muito) sem romper com a ordem. Uma espécie de esquizofrenia política e cultural. Não há permissividade. Pelo contrário.

7 comentários:

Dulcinéa disse...

Rudá, tento entender suas posições. Confesso que é difícil. Você é um crítico do que chama lulo-petismo, mas não teríamos, por exemplo, que ter lutado com unhas e dentes, ano passado, para que Dilma fosse vitoriosa? Serra seria terrível, não?
Tendo sido militante, sindical e petista, durante vinte e cinco anos, tornei-me desiludida com os rumos do partido em minha cidade. A grande quantidade de pessoas que passaram a fazer parte dos quadros do governo, que nunca tiveram nada a ver com o partido, historicamente. Mas, com decepção, me pergunto: teria outro jeito? Poderia ter sido diferente, mesmo a nível federal?
Para mim, Lula e Dilma são infinitamente melhores do que Serra e sua turma. Lula e os dirigentes nacionais do PT se tornaram pragmáticos, eu diria, ao extremo. Mas... teria outro jeito? Se discordar do que aí está, irei para onde?
Só sei que o que sonhei para a minha cidade, especialmente para a área a que me dediquei a vida toda _ a Educação _ foi bem mais, em se tratando do que você chama de "ampliação da cidadania ativa".

rudaricci disse...

Dulcinéia,
O problema é justamente este. Você acredita nesta lógica polarizada entre PT e PSDB e fica presa a ela. Eu tenho outro compromisso. Meu compromisso é com a democracia deliberativa e controle social. Não acredito em salvadores da pátria. E não utilizo este conceito pejorativo de lulo-petismo. O lulismo não é petista. É social-liberal. Ele tem uma série de predicados e auxiliou em muito o país. Mas não é nem de longe o que pensávamos em fazer para o país quando criamos o PT. O lulismo é altamente centralizador e não acredita em nenhum mecanismo de participação popular. A corrupção campeia em nosso país porque todos mecanismos de denúncia petista foram banidos do mapa. Assim, os partidos se locupletam com estes mecanismos escusos de uso do dinheiro público. Posso citar muitos casos de parlamentares e governantes petistas envolvidos nesta trama. A CUT se tornou um espelho atualizado da antiga CGT. É uma central chapa branca. Enfim, me causa espanto pensar que o Brasil se constrói apenas com eleição e que estamos fadados a limitar nossa cidadania ativa à ação de um governo ou no processo eleitoral. Mesmo porque, isto não é cidadania ativa (veja o conceito com quem o criou: Maria Victoria Benevides). Cidadania ativa é governar com quem elegemos e não só elegermos. Nisto, o lulismo foi um retrocesso. Veja o caso das conferências. Aumentamos em número, mas nenhuma de suas resoluções redundaram em leis ou orçamento, com exceção de duas. Duas!

Paulo disse...

Considerando que o Lulismo solapou os movimentos sociais; considerando que, devido ao mensalão, para a governabilidade, fez alianças com o que existe de pior neste país; considerando que o PT perdeu seu programa partidário em vista do pragmatismo imediatista, ou seja, sequer tem plano de governo; considerando que as melhorias na empregabilidade foram meras consequências da política-econômica do FHC e da conjuntura internacional; considerando que o bolsa-família foi mera ampliação do bolsa-escola, iniciado por FHC (e ampliado com sérios problemas, diga-se de passagem); considerando que os avanços na área da saúde iniciados por Serra (programas nacionais de assistência, regularização das máfias dos laboratórios e das máfias dos cigarros e das bebidas alcoolicas) não tiveram continuidade no governo Lula; considerando que, na educação, o governo Lula promoveu um violento retrocesso pela linha estatizante, favorecendo o ensino superior em detrimento do médio e do básico, favorecendo as Universidades Federais (onde só tem elite) em detrimento dos estudantes nas particulares, pobres que pagam impostos e pagam mensalidade; considerando que o governo do PT, em tempo de estabilidade econômica e política, com uma legítimidade eleitoral como nunca neste país, deixou de promover as reformas estruturais tão necessárias e desejadas pelo povo brasileiro; considerando que Lula ressuscitou o coronelismo político nordestino (neocoronelismo, diga-se de passagem) e o caudilismo político sulino (o neopopulismo - de Getúlio Vargas -, diga-se de passagem)... Ufa! Enfim. Considerando que o PSDB também não é solução, está na hora de pensarmos um outro jeito de fazer política. Quem sabe, retomando as ações de pequenos grupos, em rede, com paciência e persistência, possamos recomeçar a participação política efetiva. Agora temos a experiência do desastre que foi o PT e sua gangue, Zé Dirceu, Palocci, Genoíno, Lula, Erenice, Dilma (sem falar daquela nova chefe da Casa Civil - a Casa de Tolerância Estatal - que se elegeu senadora no Paraná com dinheiro da Itaipu e Ideli que se elegeu com dinheiro do FAT, em SC!

Ronan disse...

Ok, Rudá!

A questão tem antecedentes. Ao ler o seu título, não pude deixar de associar o conceito de carnavalização ao dos estudos literários, especificamente em Macunaíma. Seria coincidência?!?Bem, sem delongas, a minha preocupação é com os rumos da educação e vejo que todo este contexto sócio-político desagua na escola, ou a envolve. Não quero sugerir, de maneira alguma, que o avanço dos direitos seja um pecado, mas quero revelar a perplexidade diante da qual nos encontramos hoje e não sabemos como agir. É realmente desolador! Pela sua resposta, percebo a complexidade e que tudo pode encontrar resposta na ação política e nos movimentos sociais, embora nos encontremos tão apáticos para tal. Ao mesmo tempo em que percebo uma maior sensibilização da União quanto ao problema educacional, percebo aqui embaixo que há pouca ação de fato e as coisas só pioram. Rudá, ainda há tempo para uma coalisão de esquerda assumir as Minas ou Aécio não deixa margem?? Agradeço pela resposta. Continuemos conversando. Em tempo, fui estagiário da Cláudia no CP/UFMG enquanto me graduava em Letras.

Angeline disse...

Só vou dizer uma coisa, com relação às universidades públicas o PT fez muito bem, mas mesmo assim acho indevido afirmar que não beneficiaram as particulares, porque há milhares delas por aí. Porém, creio que o fundamental é investir na educação de base.

Angeline disse...

Rudá, vc disse uma coisa muito interessante: 'meu compromisso é com a democracia deliberativa'. Hoje vivemos uma democracia do tipo representativa, com alguns pontos isoladíssimos de democracia participativa (ex. orçamento participativo RS). É promissor o horizonte da democracia deliberativa no Brasil?

Sul 21 » A carnavalização da política disse...

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