3. Sociedade
fragmentada
O
modelo societário imposto pelo fordismo europeu foi fortemente influenciado
pelos partidos modernos, de massa e operários, que se inscrevem na lógica
política do século XIX e que desaguam, já na segunda metade do século XX, no
modelo neocorporativo. Trata-se da inclusão das estruturas sindicais superiores
(centrais sindicais, federações e sindicatos nacionais) em arenas de negociação
e elaboração da agenda nacional, forjando mecanismos institucionalizados de
participação na tomada de decisões governamentais. O neocorporativismo foi além
desta mera participação na tomada de decisões e avançou sobre um modelo
peculiar de cogestão pública, uma coalizão governista de alta complexidade. Em
outras palavras, o fordismo europeu incorporou interesses organizados ao
processo político-estatal. Na definição original de Philippe Schmitter [1],
o neocorporativismo forja um sistema de representação de interesses estruturada
em um número limitado de categorias não competitivas, reconhecidas pelo Estado,
conferindo o monopólio da representação. Constitui-se, assim, uma elite
política nacional que estrutura o corporativismo estatal[2].
Algo que supera as negociações de interesses setoriais. Um modelo tipicamente
social-democrata, bem sucedido nos países escandinavos e na Alemanha, dirigido
pela hegemonia conquistada nos
parlamentos, mas também envolvendo a Áustria, Holanda e Bélgica num modelo
similiar, mas que não dependeu da hegemonia socialdemocrata no parlamento[3].
Com a precarização dos direitos trabalhistas e a desestruturação do Estado de
Bem-Estar Social europeu, Cawson[4]
sustenta que o neocorporativismo clássico fundado na cooperação entre
interesses a partir da tutela do Estado (também denominado pelo autor de
“macrocorporativismo” por tratar da agenda nacional), foi substituído pelo
mesocorporativismo, fundindo processos intermediários de interesses (agenda
restrita).
Ocorre
que no Brasil, a ascensão do fordismo lulista é arquitetado justamente num
período de superação da agenda minimalista (neoliberal ou gerencial, onde os
objetivos e lógica de gestão empresarial são absorvidas pelos gestores
estatais) e reintrodução da cartilha keynesiana de ações anticíclicas. O que
interessa a este ensaio é observar que a forte influência do sindicalismo
europeu sobre o ideário lulista acaba por recriar o neocorporativismo europeu
sob uma roupagem inusitada, criando uma sociedade
política dual[5],
onde a representação sindical e corporativa de maneira geral não se articula
necessariamente com a cultura fragmentada da sociedade civil do período. Neste
sentido, o fordismo tardio brasileiro acomoda a estrutura política
neocorporativa à fragmentação societária hipermoderna ou individualista.
O
fordismo norte-americano, por seu turno, adota a lógica societária que, sugiro,
se aproxima do outro polo do fordismo tardio brasileiro.
A
sociedade norte-americana é marcada pelo individualismo, pelo pragmatismo e
pelo antiestatismo. Muitos autores clássicos destacaram este ideário societal,
de Tocqueville a Max Weber, passando por Karl Marx e Leon Trotsky. A ausência
de resíduos feudais, o individualismo representado na ampla classe média, o
nível salarial acima do europeu e o papel da ética do trabalho (e consumo) como
resultado do protestantismo se aliaram à desconfiança em relação ao poder
central dos fundadores da nação e formuladores da Constituição Federal. O
federalismo estadunidense funda-se em contrapesos que procuram diluir o poder
central como lócus da regulação social. Um ideário que se espraiou sobre
organizações da sociedade civil, partidos políticos e sindicatos.
Os
partidos de trabalhadores norte-americanos apoiaram-se numa agenda que
reivindicava mais o igualitarismo fundado num sistema universal de educação de
massas que na luta de classes ou conflito por interesses de classe[6].
Não se tratava de igualitarismo em função da renda, mas da “garantia de
barganha competitiva dentro do capitalismo”[7].
As
organizações sindicais mais combativas eram anarquistas e se apoiavam em forte
preservação do indivíduo e total estranhamento em relação às instituições
públicas. Lideranças sociais também desconfiavam do ideário da esquerda
europeia. Nos anos 1960, o movimento libertário liderado por jovens (e suas
organizações, como a Students for a Democratic Society) criticava acidamente
tanto a socialdemocracia (estruturada a partir da hipertrofia da burocracia
estatal) e o stalinismo estatal. O ideário libertário transitava entre o
anarquismo, o pacifismo e o radicalismo democrático que, no caso, significava a
garantia da liberdade individual e a limitação do controle das instituições de
representação (e até das comunidades) sobre a autonomia dos indivíduos.
[1]
O autor desenvolveu o conceito ao longo dos anos 1970. Ver SCHMITTER, Philippe C., Interest conflict and political change in
Brazil. Stanford, Stanford University Press, 1971; e "Still the
century of corporatism?", ira P. C. Schmitter. & G. Lembruch (eds.), Trend toward corporatist intermediation.
Beverly Hills & Londres, Sage Publications, 1979.
[2]
Segundo Schmitter, ao contrário do corporativismo societal, cujas demandas
endereçadas ao Estado não afetam a autonomia e independência dos atores
sociais, o corporativismo estatal tem no Estado seu protagonista, absorvendo,
arbitrando e domesticando os atores envolvidos no processo de construção e
gestão de políticas públicas. O arbítrio e domesticação como ação estatal
aparecem como formulação teórica nos estudos de Lehmbruch, como intermediação,
que se aproxima mais do projeto lulista. Ver LEMBRUCH, G. “Concertation and the structure of corporatist
networks“, In GOLDTHORPE. J. H. (org.). Order
and conflitct in contemporary capitalism. Oxford University Press, 1988.
[3]
Ver Keller, Wilma. “Neocorporativismo e Trabalho: a experiência brasileira
recente”, In São Paulo em Perspectiva, São
Paulo, Fundação SEADE, 9 (4), 1995,
páginas 73 a 76.
[4] Ver CAWSON, A. “Varieties of
corporatism: the importance of the meso level of interest intermediation”. In
CAWSON, A. (org.) Organizized interests
and the state: studies in meso-corporatism. London, Sage
Publications, 1986.
[5]
Conceito já explicitado na introdução deste ensaio.
[6] Ver LIPSET, Seymour Martin &
MARKS, Gary. Por que não vingou?
História do socialismo nos Estados Unidos. Brasília, Instituto Teotônio
Vilela, 2000, p. 20 e seguintes.
[7]
LIPSET, Seymour Martin & MARKS, Gary, op. cit., p. 21.
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