Rudá Ricci
Pelo twitter, Gaudêncio Torquato (USP), fez um desafio dos mais instigantes: discutir a organicidade social do Brasil. Aceitei, na hora, o desafio. Neste artigo, faço uma primeira aproximação. Começo reproduzindo a sequência do raciocínio de Gaudêncio.
Começou citando a eleição de Agripino Maia à Presidência do DEM. E vai adiante:
GaudTorquato Gaudencio Torquato
23 minutes ago Favorite Retweet Reply
Desejo ao senador José Agripino a melhor varinha mágica que se pode adquirir. Capaz de fazer das cinzas um corpo vivo. O DEM é pura cinza! Para o DEM ressuscitar, urge: ter uma bandeira, fazer mobilização, renovar pela base, aproximar-se das classes médias urbanas, respirar seu tempo. Vejo no Brasil um aglomerado de siglas rodeando o centro do poder. Amorfas, inodoras, incolores, insossas. Indistintas! Assemelhadas!
Este preâmbulo já define o rumo de sua análise. Mas a partir dela, amplia a análise para a estrutura organizacional da sociedade brasileira:
GaudTorquato Gaudencio Torquato
21 minutes ago Favorite Retweet Reply
Vamos mudar de assunto. Vamos falar da organizaçao da sociedade civil. As Centrais, mesmo competindo entre si, fazem seu trabalho. Não acham? Já as entidades patronais agem de maneira atabalhoada. Sem rumos, metas diferenciadas, discursos fluidos e sem homogeneidade! Tomemos o exemplo da ex-poderosa FIESP. A ideia q tenho é que perdeu a garra. Ou os dentes. Trata-se de um Leão Desdentado ali na Paulista! Os velhos tempos aguerridos de Luiz Eulálio ou mesmo Mário Amato ficaram para trás. Paulo Skaf é apenas um Executivo à procura de fama! Já a CNI deixou tb de ser a grande bitola da Indústria. Perde força e liderança. Estiola-se na miudeza das pequenas coisas. O que defende? Quem, por acaso,nesse exato momento, sabe declinar o nome do presidente da CNI? Um confeito para o raro adivinhador! CNI, baixa visibilidade. Em compensação, no meio da sociedade, explode uma miríade de constelações - associações, sindicatos, federações, grupos. Nova representação
As duas seqüências de mensagens, na minha leitura, formam um mesmo enredo. É o enredo em que as classes sociais mais abastadas não conseguem se expressar politicamente, publicamente. DEM em crise, que não se renova e estruturas sindicais patronais sem mensagem. Do outro lado, partidos mais enraizados com o mundo sindical – que desenvolve sua função, nas palavras não muito entusiasmadas de Gaudêncio – e uma miríade de constelações~ que formariam uma nova representação. Por que, afinal, haveria tal defasagem? Esta provocação de Gaudêncio se aproxima do esforço recente do ex-ministro mexicano Jorge Castañeda para tentar entender seu país, esforço consolidado no livro “Regresso ao Futuro”. Castañeda foi engenhoso: publicou um longo artigo na imprensa mexicana e saiu país afora para discutir sua análise e proposição em cidades acima de 100 mil habitantes, falando com lideranças, estudantes, organizações. Recolheu as leituras de seus ouvintes-interlocutores e produziu o livro. Nestes momento, está com o pé na estrada, em nova rodada de visitas-debate, apresentando e aprofundando seu livro entre compatriotas.
A engenhosa metodologia de Castañeda é substituída, no caso presente, pela engenhosa provocação de Gaudêncio. Um olhar de publicitário, que olha com ouvidos e todos outros sentidos.
Mas aceitei a provocação. Então, vamos ao pagamento do desafio.
Listo algumas hipóteses explicativas, sendo umas derivadas de outras.
A hipótese 01 é clássica da sociologia. Sociedades em forte mutação ou dinâmica social criam descompassos com suas instituições do período passado. As instituições se constituem em estruturas de garantia e preservação de valores sociais e se relacionam fortemente com cada momento histórico. São garantidoras da unidade social, das crenças, da própria interpretação da história coletiva da sociedade em que estão inseridas. Seu “aggiornamento” é necessário, mas lento. Caso contrário, se tornam meros reflexos dos conflitos, indecisões e impasses diários que envolvem agrupamentos sociais distintos. O discurso das instituições é próximo da construção do discurso hegemônico, que cimenta as projeções e interesses difusos e cria um amálgama, uma explicação verossímel e um projeto comum.
Ora, nossa sociedade vive, no momento, uma transição do mundo subdesenvolvido (perdão por utilizar termo tão em desuso, mas tento reforçar a noção de mudança rápida e avassaladora iniciada nos anos 1990) para um país emergente que se torna potência mundial. Somos a 7ª potência econômica e já temos 50% de nossa população vivendo como classe média. Mas ainda estamos na transição, no descompasso entre o velho subdesenvolvimento e o novo mundo emergente. O agronegócio, peça central desta mutação econômica, não conseguiu, ainda, se expressar politicamente. Certamente, não se expressa pela CNA, CNI ou FIESP. Percebo, inclusive, certo descompasso entre o discurso sindical e as bases sindicais. Este é o caso de professores que resistem ser considerados trabalhadores da educação. Suas queixas são sinceras, mas como já analisou Alicia Fernandez (no livro “A Mulher Escondida no Professor”), são estéreis porque não mobilizam, não geram resistência social. Cito este caso peculiar porque indica o impasse psicológico que esta fase de transição causa nas pessoas e nas instituições. Se as pessoas sentem-se em processo de mudança, por qual motivo as instituições – que existam para ligar desejos e projeções pessoais e grupais – estariam sólidas, estáveis e legitimadas. Evidentemente que a transição brasileira não é provocada por uma crise destrutiva. Mas se fazem sentir as dores do crescimento. Um crescimento que pode emperrar a qualquer momento, que não é, ainda, sustentável. O que só complica o cenário. Enfim, uma tese a ser considerada, embora a transição brasileira seja, ainda, morna, cujo impacto é significativo mas o abalo afeta parcialmente as instituições de representação social e política. A racionalidade burocrática somada às massas passivas gera o que Simon Schwartzman denominou de regimes patrimoniais burocráticos modernos. Em situações de ascensão social pujante, como ocorre neste início de século XXI no Brasil, Tocqueville temia que os sistemas políticos baseados em normas estritas entrassem em risco, obrigando os governantes a repensar a lógica do processo decisório a partir de pactos sociais mais amplos, introduzindo demandas emergentes. Haveria, assim, uma tendência à emergência de elementos carismáticos do governante para conduzir tais massas desorganizadas.
A hipótese 02 é mais sólida e uma derivação da anterior. Um país com dimensões continentais e profundamente desigual dificilmente se revelaria homogêneo. Principalmente em função da maneira como nos constituímos como nação ou superamos uma organização política e social por outra (da monarquia para república, do agrarismo para o urbanismo ou mesmo a superação de regimes ditatoriais). Os momentos decisivos da política nacional foram marcados por acordos entre elites, o que faz de nossa população espectadora – crítica – da constituição política. Mesmo em relação às organizações mais populares, houve um tempo de democracia deliberativa que foi cedendo à tentação de se conformar ao verticalismo das estruturas políticas tupiniquins. Do tenentismo ao centralismo do getulismo e mesmo do prestismo; das Ligas Camponesas à disputa de cúpula entre organizações de esquerda (não teria sido um acaso que foram deslocando seu eixo para o castrismo e, mais adiante, para o maoísmo), das mobilizações pelas reformas de base para o foquismo, dos movimentos sociais libertários dos anos 1980 para o molde das organizações e a disputa pelo financiamento público, da campanha das diretas para a dispersão, da mobilização pelo impeachment à reabilitação de Collor, do petismo de base ao lulismo da tutela social. As ilustrações são muitas e parecem reforçar a tese deste movimento pendular em que os cidadãos saem às ruas, mas delas não conseguem se projetar na construção de uma nova institucionalidade pública, dando lugar às velhas práticas de novas elites. O rodízio de elites não consegue conformar um processo decisório mais arejado, mais poroso. O que dizer de um processo de reforma política conduzido justamente por aqueles que foram eleitos pelos procedimentos que a sociedade questiona? Como esperar representação de uma sociedade multifacetada por um sistema uniforme, centralizado e burocratizado? Sindicatos, partidos, igrejas, nossos modelos de organização e representação formal são pouco afetos à nossa conformação social. O Senado é o exemplo mais nítido de uma estrutura que deveria representar as peculiaridades territoriais e acaba por representar as oligarquias regionais tão identificadas entre si.
A Hipótese 03, que se articula com a anterior é que nossa sociedade é gelatinosa e conforma uma cultura ambivalente. O conceito de sociedade civil gelatinosa é de Gramsci, que diferenciou a sociedade moderna das auto-organizações privadas das sociedades orientais, mais atrasadas e com representação social mais opaca. Na primeira situação haveria um equilíbrio maior entre o que denominava sociedade política e a sociedade civil e o consenso social é forjado no embate de interesses. No segundo caso, a sociedade civil se revela dependente do Estado, não consegue se expressar de maneira autônoma. Se a sociedade civil é a fonte de energia moral de toda organização social e se ela não consegue se expressar com autonomia, temos um ciclo vicioso que coloca em xeque a legitimação das instituições. A situação parece mais aguda quando nos deparamos com o que Nestor Canclini denominou de cultura híbrida das sociedades latino-americanas, que não consegue romper com os laços das culturas sociais rurais, arcaicas, mas já mergulha na lógica do mundo moderno. Ora, tal hibridismo não gera um conflito de pequenas dimensões. Porque a modernidade contemporânea é mais que isto, como sugere Gilles Lipovetsky, a sociedade contemporânea é hipermoderna:
(...) rápida expansão do consumo e da comunicação de massa, enfraquecimento das normas autoritárias e disciplinares, surto de individualização, consagração do hedonismo e do psicologismo, perda de fé no futuro revolucionário, descontentamento com as paixões políticas e as militâncias (...) (LIPOVETSKY, Gilles & CHARLES, Sebastién, Os Tempos Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004)
Ora, pela descrição acima, as tensões que a cultura híbrida provoca entre tradições e crenças e a lógica hiperindividualizada dos tempos atuais são intensas e desnorteadoras. No limite, a persistência das tradições cria um lastro, uma espécie de inércia de representação de instituições pretéritas quase sem vida, que se vinculam à sociedade por um fio de costume, um “habitus” sem viço, pouco animador, que gera identidade, mas que não consegue projetar com segurança as expectativas sociais do momento. Tal descompasso não gera uma crise profunda. Antes, alimenta o cinismo político, em que a escolha de representantes se transforma num ato protocolar com pouca correspondência com a vida cotidiana.
A hipótese 04 se atém ao impacto do lulismo. O lulismo, enquanto fordismo tupiniquim, reforçou a imagem do Estado-Pai que se inscreve como demiurgo nas sociedades gelatinosas. Dialogou com o inconsciente coletivo nacional e fortaleceu a tutela. Por este motivo não enveredou pelos caminhos do controle social ou reforço de organizações civis com autonomia. As arenas de negociação - que um dia Tarso Genro identificou como espaços públicos não-estatais – se limitou a espaços de consulta governamental, nunca se projetando sobre os processos decisórios efetivos. Porque seria uma contradição em termos e o lulismo, antes de tudo, procura ser uma expressão popular, em toda dimensão contraditória que nossa cultura política está mergulhada. Assim, o lulismo acelerou a esclerose (ou deu visibilidade a ela) de nosso sistema partidário e parte das instituições de representação política e social. Porque temos um sistema partidário que não reflete a dinâmica social (mística, pragmática, cínica e familiar). Nosso sistema de representação formal tende para o modelo norte-americano (burocratizado, vinculado ao mundo do espetáculo e do marketing, sem programa político definido), se distanciando do modelo europeu (vinculado ao mundo do trabalho e poroso à dinâmica associativa) que chegou a animar a formação de partidos de tipo novo no início do processo de redemocratização do país.
O que faz do discurso liberal uma vertigem em terras brasileiras. Porque não somos uma sociedade liberal. Somos uma sociedade híbrida, gelatinosa. Que se movimenta em contradições e gera sinais desalinhados, ora parecendo moderna e exigindo autonomia e transparência, ora se revelando dependente e solicitando o auxílio do pai-ídolo. O que dificulta entendermos como o fundamentalismo moral que se expressou no final do primeiro turno das eleições presidenciais de 2010 se relaciona com a eleição de uma candidata petista que foi guerrilheira. Pelos caminhos da racionalidade, acabamos por interpretar como oposições, como grupos que se enfrentaram no processo eleitoral. Minha aposta é que é algo mais complexo: são expressões de uma mesma cultura híbrida que sugere um país em permanente transe.
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