domingo, 1 de dezembro de 2013

A involução dos partidos políticos

Logo cedo me deparei com o texto que reproduzo abaixo, escrito pelo sociólogo espanhol, Juan Carlos Martínez (fiz uma tradução livre e alguns pequenos cortes). Ele é longo, mas vale a pena. O autor apresenta muita informação com humor e termina com certa melancolia que parece afetar cada vez mais cientistas políticos que se deparam com o profundo divórcio entre as teorias sobre partidos e a prática concreta dos mesmos.
Publiquei, tempos atrás, um artigo na Folha cujo título é "O ocaso dos Partidos". Estou convicto que estas estruturas do século XIX não conseguem mais nos representar. Nem ao menos representam seus filiados. Representam porcamente sua direção. Na verdade, a cada ano, representam mesmo o jogo de interesses dos seus parlamentares e seu ataque aos cofres dirigidos por governantes eleitos, nem sempre filiados aos seus partidos. O cidadão pouco compreende - e nada apoia - este jogo em que o candidato não nasce de sua vontade, o eleito não possui a liberdade para fazer o que prometeu e desejava, e o parlamentar sabota a seu favor, numa eterna negociação entre pares, como que se praticasse uma dancinha de passos curtos e sorrisos largos.
Os partidos, na atual conjuntura, são instrumentos absolutamente conservadores. Não desejam e não podem mudar uma vírgula. Daí se assustarem com as ruas. São dinâmicas e instáveis em demasia e podem descolar retinas sensíveis de quem se acostumou a não olhar muito além dos seus pés.

La Evolución de los Partidos Políticos
Juan Carlos Barajas Martínez

O primeiro país a criar um sistema partidário foi o Reino Unido. No final do século XVII foram criados dois grupos políticos, ainda muito longe da ideia que temos de uma organização partidária nos dias de hoje, os "Whigs” e os "Tories”, que mais tarde ficariam conhecidos como o Partido Liberal e o Partido Conservador, respectivamente. Ambos os termos, Whig e Tory , eram uma derivação depreciativa de Whig - que vem do gaélico escocês - significa ladrão e Tory - derivado do gaélico irlandês – que significa bandido Como vemos, a identificação de ladrões com políticos, tão popular hoje em dia, é longa.

Os Whigs eram mais progressistas, à esquerda, e os Tories, mais à direita e ficaram assim identificados numa votação ocorrida em 11 de setembro de 1789 que decidiu sobre o veto da Coroa sobre leis emanadas da futura Legislatura. Aqueles que eram contra, e, portanto, apoiavam a soberania popular sobre a Autoridade Real, foram colocados à esquerda do presidente. Já os partidários do rei, considerado soberano na sua plenitude, ficaram à direita. Assim, o termo "esquerda" foi associado com as opções políticas pela mudança política e o termo "direita" aos grupos conservadores que se opõem à mudança. 

Muito tem sido dito e escrito sobre o futuro do sistema partidário, a sua possível morte e o declínio dos partidos. Muitos se sentem excluídos das decisões políticas, e percebem os partidos como estruturas que servem aos interesses dos grandes grupos de pressão. Destacam a necessidade de utilizar as novas tecnologias para promover formas de democracia direta. Outros acham que os grupos sociais e ação coletiva seriam o substituto ideal para os atuais agentes de representação. 

Vamos definir o que é um partido político e definir uma metodologia para a análise de sua evolução. Em ambos os casos não vamos inventar nada, mas vamos utilizar o que a ciência política desde muito cedo tem dito sobre estas questões.

Para Edmund Burke, que, aliás, era "Whig", um partido é um corpo de homens unidos para promover, a partir de sua visão, o interesse nacional. Para o cientista político britânico Alan Ware um partido político é uma instituição que busca influência no interior do Estado, representando diversos interesses sociais. 

Em geral, a maior parte dos tipos ou classificações de sistemas partidários se baseia no espectro ideológico. Eu gosto da definição de Richard Katz e Peter Mair que adotam três variáveis: os militantes, a organização central do partido e cargos públicos. 

O primeiro tipo de partidos surgiu nos séculos XVIII e XIX, o que significava na prática que só tinha o direito de votar uma parcela da população que agregava uma série de exigências econômicas, sociais e educacionais e, claro, de gênero. Estes partidos não tinham organização central, as funções normalmente eram as realizadas no parlamento, ou seja, vinculadas a um cargo público. Não havia funcionários do partido. Os militantes eram grupos sociais locais, pessoas de meios e influência, com direito a voto que deram o seu apoio ao candidato e que deveria representar os seus interesses, se eleito. Essa era a idade de ouro da representação porque se assentava num claro contrato entre eleitor e eleito. 

A passagem do sufrágio censitário para o sufrágio universal afetou este modelo. A mudança foi gradual como foi a extensão do voto. A necessidade de mobilizar novos eleitores, aumentando a complexidade das campanhas eleitorais, aumentando os custos e os recursos de todos os tipos para que um candidato fosse eleito exigiu o estabelecimento de uma organização central e a existência de uma base militante. A organização estabeleceu uma ideologia e uma estrutura mais ou menos hierarquizada em que os militantes foram integrados. Estruturas típicas do século XX.

Os funcionários públicos passaram a se envolver num perigoso conflito. De um lado estavam investidos de poder público, portanto, deveriam seguir certa ética e lealdade para com os interesses dos cidadãos e, por outro lado, eram funcionários do partido, com outra ética e outras lealdades. 
Durante a segunda metade do século XX as mudanças econômicas, culturais e tecnológicas foram acontecendo a um ritmo fenomenal e alteraram as demandas dos cidadãos. Aumentou a importância dos meios de comunicação e, especialmente, a televisão, o que alterou radicalmente a linguagem da propaganda política. As melhorias empregadas pelo Welfare State afetaram as condições gerais da população, uma nova classe média emergente surgiu e fronteiras difusas entre classes se insinuaram, solicitando estratégias eleitorais interclasse, na tentativa de capturar o maior número possível de eleitores em um ambiente muito competitivo entre as várias opções políticas. 

Todas essas mudanças têm influenciado as estruturas do partido, levando a uma nova classe que Otto Kirchheimer denominou de " catch-all " [algo similar a “balaio de gatos”]. 

No modelo original a estrutura básica era composta pela organização central e por militantes. No modelo Catch-all é difícil de determinar, na prática, como se dá a ordem dos relacionamentos internos, mas parece que a base da sociedade perde peso em favor da estrutura organizacional. Os funcionários públicos iniciam sua carreira dentro do partido. Não é tão importante que os militantes continuem colando cartazes eleitorais, participando nas decisões do partido. A ideologia também perde importância em favor do pragmatismo. As abordagens utópicas dão lugar - mais do que nunca - à arte do possível.

O financiamento se torna um problema, as grandes máquinas eleitorais são muito caras e os partidos buscam financiamento a partir de uma variedade de fontes, e não apenas a partir das contribuições dos militantes.

O clímax desse processo de "desmilitância" é o que Katz e Mair chamaram de partido cartel, também conhecido como partido de quadros ou partido eleitoral-profissional. 

Um cartel designa um acordo entre várias empresas semelhantes para evitar a concorrência mútua e regular os preços de produção e de venda. Para os autores do conceito, precisamente o que caracteriza este tipo de ação política é o objetivo é ocupar cargos públicos em todos os níveis do governo como base para se obter influência na tomada de decisão e no financiamento público. Os principais partidos formam uma classe política homogênea que impede a concorrência de novas formações, maximizando recursos e benefícios para os seus membros que acumulam o apoio do setor público, nem sempre apoio exclusivamente monetário. Este tipo de estrutura, afirmam os autores desta abordagem, promove o bipartidarismo.

Os políticos são políticos profissionais, muitos deles não conhecem o mundo dos negócios ou do mercado de trabalho. Os funcionários do partido são também profissionais e a organização central está recheada de diversos assessores de alto nível. Esta lógica de consultorias e conselhos é transferida para os governos e dirigentes responsáveis ​​pela contratação de vários assessores e experts, à custa da influência dos trabalhadores.

O modelo de sociedade não é mais discutido, não há diferenças ideológicas notáveis, embora a linguagem parlamentar e política continuem a ser muito mais radicais do que a prática. Tudo o que foi dito e o que é feito é pensado como show, como espetáculo. A preocupação com a imagem chega a obsessão enquanto as preocupações sobre o conteúdo se limitam a declarações vagas.

Tudo isso é definido pelos grupos parlamentares que votam com governos e a eles se subordinam, matando a separação de poderes.

Para Ware, os militantes se filiam aos partidos em virtude de três tipos de incentivos.
1. Os incentivos materiais. São, por exemplo, o pagamento de determinadas tarefas durante as campanhas, oferecendo postos de trabalho de importância variável, dependendo da importância do militante, em vários níveis da administração pública e, também, a oferta de contratos públicos em troca de contribuições para os cofres do partido.

2. Os incentivos de solidariedade; São intangíveis. Por exemplo, a realização de atividades em grupo, camaradagem e o sentimento de fazer algo eficaz para resolver problemas comuns. 

3. Os incentivos teleológicos. Se relacionam com a atração por um programa. Tais militantes são típicos dos partidos de massa.

No século XXI, em um ambiente em que o modelo de partido cartel parece ser a que melhor se adapta os jogos atuais, ainda há militantes que valorizam incentivos de solidariedade e teleológico?


Um domingo antes da última eleição andava por uma praça em Las Rozaa e vi um grupo com bandeiras vermelhas do Partido Socialista em uma esquina. Um deles me entregou um folheto e conversou comigo. Aquele homem dizia coisas que não estavam em consonância com a prática real de seu partido. Aquele homem não tinha nenhum cargo importante, não tinha seguranças, falava de peito aberto. Senti ternura por seu idealismo. Dei-lhe um leve tapa no braço e lhe disse: “você dá valor àquilo que está acabando!”, e fui embora. Pois é: ainda existem militantes idealistas. Ao menos um. 

Um comentário:

sergio ferreira disse...

Prezado Rudá,

acredito que muito da melancolia, tristeza, seja lá qual seja o sentimento relativo ao declínio dos partidos,se deve ao fato de os estudiosos, sociólogos entre eles, não admitirem que isso é um sintoma;

o problema real, eu acho e sei que não estou sozinho, é que a democracia é um mito irrealizável para o conjunto da sociedade, para as multidões

é trágico, mas é um fato

qualquer modelo de democracia está fadado ao fracasso

o "fracasso" do modelo atual, estado multidão com democracia representativa, é apenas uma das manifestações dessa realidade

o "fracasso" dos partidos é o "fracasso" da sociologia

surgiram juntos e vão desaparecer juntos