Quando saiu o filme de Tintim fui soterrado por emails que me perguntavam se Hergé não era de direita. Confesso que fiquei meio nocauteado. Eu gosto muito de ler Tintim.
Mas é verdade que logo no início das publicações de Tintim, Hergé pendeu para subordinar as histórias à um discurso conservador e até mesmo racista.
Na publicação de 1929 sobre a URSS, quando Hergé tinha 22 anos e quando Tintim aparece pela primeira vez, o ataque ao sistema soviético chegou às raias da irresponsabilidade. Quando li a história, engoli seco. Um texto daqueles cheio de clichês anticomunistas. Só faltou a máxima que comunista comia criancinha. No mais...
Veja este quadrinho que aparece à página 107 da edição brasileira (Quadrinhos na Cia., 2008). Retrata bem o clima de uma época obscura.
A segunda publicação foi sobre o Congo, quando o país ainda era uma colônia belga. A reação a esta publicação foi bem significativa.
Fiquei pensando nesta relação entre arte (e entretenimento) e ideologia. E lembrei de um texto famoso que Trotsky escreveu em 1938 em parceria com André Breton. O texto levou o título de "Manifesto por uma Arte Revolucionário Independente". A ideia central era a defesa da arte independente (não subordinada ao capitalismo, mas também não subordinada ao stalinismo). Mário Pedrosa se jogou de cabeça nestas teses de um bolchevique e um surrealista.
Não se tratava de defesa de uma arte pura. Embora engajados na revolução, os autores sugeriam que o artista só pode servir à luta emancipadora quando faz passar por seus sentidos o drama da luta social e quando procura livremente dar encarnação ao seu mundo interior. Interessante, não?
Mas, o que tem a ver Tintim com Trotsky e Breton?
É que, de um lado, minha decepção é perceber que, de fato, Hergé, subordinava seu HQ à ideologia, ao europocentrismo e às clichês radicais que efetivamente deturparam a verdade.
Por outro lado, qual deve ser a relação do leitor com situações como esta?
Tenho alguns amigos iranianos que não bebem Coca-Cola. Não entendo bem o que pretendem, na medida em que se trata de um ato solitário e também não visam o bem estar de sua saúde. É quase um fetiche político. Como a direita torcendo o nariz para o uso de boinas ao estilo Che Guevara ou os franceses impedindo mulheres muçulmanas utilizarem seus véus. Uma bobagem sem tamanho. Uma espécie de passagem ao purgatório ideológico. Não se faz luta política assim.
Então, retornemos ao Tintim (obviamente que há relação com a censura ao livro de Monteiro Lobato, acusado de racista).
Eu continuo gostando de ler Tintim como entretenimento. O que significa que ele me agrada e me alegra. Algo como assistir ao último filme de Tom Hanks, "Capitão Phillips". O filme é uma ode à eficiência militar norte-americana. Trata com certa compaixão os piratas somalianos, como explicação de suas opções equivocadas. Mas, ao final, levam chumbo grosso, sem dó.
A partir daí, um apreciador engajado, de esquerda, deveria boicotar o filme? Ou o debate de ideias é o melhor caminho, justamente porque assim se foge de certo niilismo solitário que não move nem mesmo o nosso vizinho da sua poltrona?
A tensão crescente de "Capitão Phillps" é sensacional e a interpretação (principalmente na parte final do filme) de Hanks é de encher os olhos. Se não tivesse assistido ao filme, como teria condições de analisá-lo?
Como construir - aí entra o diálogo com o texto de Trotsky e Betron - uma leitura do mundo se não dialogamos com ele e não construímos uma ponte com nosso mundo interior (aliás, esta sugestão é muito próxima da que Santo Agostinho propôs)?
Fiquei decepcionado com Hergé, é verdade.
Mas vou continuar lendo Tintim. Para meu deleite, é certo. Para continuar alerta e não fazer leituras ingênuas, possivelmente. Mas também porque a nossa jornada pessoal não se faz pela autocensura ou pela eliminação das partes do mundo que não gostamos. É no diálogo aberto com os diferentes que ajudamos a construir uma leitura coletiva, uma comunidade global. Tal como sugeria Hannah Arendt, quando afirmava que não nascemos humanos. Somente ao mergulharmos nas desventuras da nossa espécie, nos registros e intenções múltiplas inscritas na linguagem, nesta memória mundial é que nos tornamos, aos poucos, humanos. Eliminar o que o outro produziu é o caminho mais rápido para o fascismo.
Um comentário:
É célebre o quadrinho em que Tintim mostra o mapa da Bélgica para alunos congoleses e diz: "Sua pátria". Também gosto de Tintim, gostei antes de ter opinião política sobre ele. E o seriado na tv também é legal. Por que diverte, é bem feito. Isso é arte, independentemente da convicção política do autor. Exatamente isso, o diálogo dos diferentes. Não importa o que o autor pensa, importa o que ele mostra sem ter pretensão de mostrar. É por aí. A comparação da coca-cola com a boina do Che não tem nada a ver. Coca-cola não é só um símbolo, é um veneno. Conheço mais gente que não toma por isso do que por ser "a água suja do imperialismo", nas palavras de um poeta mineiro. Se fosse uma maravilha tecnológica que possibilita o progresso da humanidade não faria sentido boicotar, mas boicotar veneno faz sentido.
Postar um comentário