quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A introdução do ensaio sobre o fordismo lulista

Venho publicando partes de um ensaio que estou redigindo sobre o fordismo lulista. Já publiquei os dois primeiros capítulos e hoje publico a apresentação do ensaio. Aguardo críticas, sugestões e, principalmente, elogios.


1. A motivação deste ensaio


Este ensaio procura aprofundar o impacto político e social do lulismo no Brasil, em especial, após 2006, quando se estrutura um modelo de gestão e de organização social que aqui é compreendido como uma modalidade do fordismo. O fordismo como organização social a partir do Estado central como vértice do pacto de desenvolvimento foi formulado originalmente pela Escola da Regulação francesa.
Vários autores demonstraram que esta formulação original, inaugurada pelo New Deal rooseveltiano, sofreu adaptações na Europa e até mesmo no Japão. O fordismo brasileiro é tardio e, como tal, articula várias formas de organização social e política que aparentemente são contraditórias entre si, atualizando práticas e estruturas patrimonialista e clientelistas, mas também se insinuando sobre a cultura política cínica e intimista que emerge com a consolidação de um potente mercado consumidor de massas, baseado nas classes menos abastadas e trabalhadoras. Nestor Canclini já havia sugerido esta cultura de Fênix em que as tradições permanecem ao lado de um acelerado processo de modernização da América Latina, processo eternamente inacabado[1].
O peculiar é que o fordismo tardio brasileiro forjou-se sob a liderança política emergente dos anos 1980, que sustentava um vigoroso discurso inovador, confrontando com as práticas clientelistas. Os anos 1980, com efeito, são hoje, a partir do olhar em perspectiva das últimas três décadas, um interregno na lógica política e social do país.
Movimentos sociais, sindicatos e organizações não governamentais foram paulatinamente convergindo e se submetendo ao estatismo-desenvolvimentismo da lógica fordista.
O fordismo tardio brasileiro constrói assim, uma ponte entre o velho clientelismo e um arranjo de elites que moderniza de maneira muito particular o Estado, agora altamente centralizado, na contramão do desejado federalismo que inspirou nossa última Constituição Federal.
Nasce daí uma sociedade política dual, conceito que diz respeito ao sistema de funcionamento de legitimação ou sobrevivência das lideranças políticas e não necessariamente à logica societal. Utilizo aqui esta muleta conceitual inspirado nas análises gramscianas que distinguem esferas de organização da sociedade moderna. A sociedade civil brasileira é, hoje, nesta perspectiva, fragmentada em múltiplos interesses cuja origem é familiar (tema que será analisado mais adiante). Já a sociedade política brasileira se divide entre estruturas superiores, altamente centralizadas, que participam dos arranjos e arenas de formulação de políticas públicas estatais; e estruturas regionais e/ou locais, onde os parlamentares se sobressaem no atendimento de tipo cartorial às localidades, comunidades e arranjos familiares. Nesta segunda esfera, o atendimento pulverizado adota contornos nitidamente clientelistas. Contudo, a intersecção entre as duas esferas se dá nos gabinetes dos deputados federais e, em alguns casos, deputados estaduais. Nesses gabinetes ocorrem as filtragens de demandas locais, ou processo seletivo de adensamento de demandas que são remetidas aos ministérios ou secretarias estaduais de governo, traduzindo-as em programas previamente confeccionados. Como as demandas locais nem sempre são plenamente ajustadas aos programas intermediados pelos deputados, os parlamentares municipais passam a assumir um importante papel de acabamento: atendem famílias e entidades cuja jurisdição é circunscrita a pequenos territórios, se inserindo numa sociabilidade territorial muitas vezes envolvida com troca de favores nem sempre legítimos. O neoclientelismo que emerge desta trama tem na relação entre vereadores e deputados seu centro nevrálgico, criando uma poderosa rede de lealdades.
O fordismo tardio brasileiro é, assim, uma formulação (ou formatação) original. E se assenta numa sociedade civil pulverizada em múltiplos interesses comunitários e familiares que tomam consciência política a partir das políticas de transferência de renda e crédito popular. A “nova Classe C”, que efetivamente não é uma classe, mas a melhoria de renda das classes trabalhadoras[2], é resultado da “inclusão pelo consumo”, o reflexo invertido da propalada “inclusão pelos direitos” que se tornou base do discurso das lideranças sociais dos anos 1980.
Se a inclusão pelos direitos vinha acompanhada da noção de ação coletiva autônoma, a inclusão pelo consumo alimentou um ideário justamente oposto: a crença no esforço pessoal, no consumo de produtos top de linha como demonstração de sucesso, na gratidão à família e núcleo de relacionamento íntimo (por estarem juntos nos momentos de penúria que marcaram toda sua trajetória familiar), no pragmatismo e cinismo político, na desconfiança da política como espaço de profissionais da artimanha e não da representação social.
Os emergentes do consumo de massas são conservadores. Dentre tantas demonstrações do ideário conservador que se consolida no país a partir do fordismo tardio brasileiro, reproduzo nesta apresentação a pesquisa recente elaborada pelo DATAFOLHA que indica a leitura autoindulgente da maioria dos brasileiros nesta quadra da vida nacional. A maioria dos brasileiros (a FGV-RJ sustenta que 54% da população brasileira é, hoje, Classe C) sugere que a pobreza é fruto da falta de oportunidades iguais. A partir daí, a agenda de direitos civis é claramente abandonada: punição severa aos adolescentes que cometem crimes, proibição do uso de drogas, ensino religioso para tornar “as pessoas melhores”. Quase metade dos entrevistados (46%) sugerem que os sindicatos fazem mais política que defender trabalhadores.

Trata-se de ideário conservador[3] que se articula com o discurso hegemônico das igrejas evangélicas. Pesquisa encomendada pela Confederação Nacional das Indústrias[4] revela, significativamente, que a igreja é a principal instituição confiável para os brasileiros (66% das respostas), muito superior à televisão (26%), empresários (16%) e partidos políticos (8%). 57% dos brasileiros afirmaram não participar de qualquer organização social, sendo que este índice aumenta quando menor a renda, chegando a 63% no caso da Classe E. Nas classes menos abastadas, as organizações religiosas são as mais citadas (52%), dentre a exceção que afirmou que participa de organizações sociais, seguida por entidades estudantis (apenas 8%) e de bairro (outros 8%).
O fordismo tardio brasileiro é uma ponte entre dois mundos da estrutura de poder – um arranjo de elites na estrutura superior e um sistema de atendimento de demandas pulverizadas administradas por deputados e vereadores - que se encontram no atendimento desta ampla base social popular, voraz por consumir produtos de alta tecnologia, que usufruem da renda superior sustentada pelas políticas anticíclicas adotadas pelo governo central.
Estamos analisando, portanto, um sistema político que altera profundamente nosso sempre débil federalismo, aumentando sobremaneira o poder do governo central do país que sustenta um corpo de lealdades administrada por parlamentares. A independência entre executivos e legislativos torna-se uma ficção jurídica, assim como a autonomia dos municípios.
O fordismo tardio brasileiro atualiza o estatal patrimonialismo de sempre.


[1] Ver CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, São Paulo, Editora EDUSP, 1997.
[2] Ver POCHMANN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira, São Paulo, Editora Boitempo,2012. O autor critica o conceito de Classe C a partir do argumento que se confunde o conceito de classe social com o de estrato de renda. No caso, teria havido melhoria de renda da classe trabalhadora e não emergência de uma nova classe média. Pochamann sustenta que as ocupações formais cresceram fortemente durante a primeira década de 2000, especialmente nos setores que têm uma remuneração muito próxima ao salário mínimo: 94% das vagas criadas entre 2004 e 2010 foram de até 1,5 salário mínimo. Juntamente com as políticas de apoio às rendas na base da pirâmide social brasileira, como elevação do valor real do salário mínimo e massificação da transferência de renda, houve o fortalecimento das classes populares assentadas no trabalho. “O adicional de ocupados na base da pirâmide social reforçou o contingente da classe trabalhadora, equivocadamente identificada como uma nova classe média. Talvez não seja bem um mero equívoco conceitual, mas expressão da disputa que se instala em torno da concepção e condução das políticas públicas atuais”. O mercado consumidor de massas, apoiado nas classes trabalhadoras, estimula a aquisição de planos privados de saúde, educação, assistência e previdência, entre outros, como consequência de uma reorientação das políticas públicas para a perspectiva fundamentalmente mercantil.
[3] Há outros estudos que indicam o que Richard Sennett denominou de “ideologia da intimidade”, ou seja, a crença nos círculos íntimos de relacionamento e total desconfiança em todas ações públicas e órgãos de representação de interesses coletivos. Lamounier e Souza publicaram uma interessante análise que revela que 85% dos brasileiros confiam em sua família como principal organismo social e apenas 43% confiam em amigos, descartando instituições de representação social ampla. Ver LAMOUNIER, Bolívar & SOUZA, Amaury. A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade. Rio de Janeiro, Elsevier/Brasília, CNI, 2010, páginas 106 a 108.
[4] LAMOUNIER, Bolívar & SOUZA, Amaury. A Classe Média Brasileira, op. Cit. 

4 comentários:

AF Sturt Silva disse...

Introdução vem na frente dos capítulos? Não entendi por que ela só apareceu agora.

AF Sturt Silva disse...

Agora deu pra entender melhor do que vc está trantando no ensaio. Acho que isso deveria ser publicado antes daqueles outros dois capítulos.

Só uma pergunta: vc conhece o trabalho do Jessé de Souza?

Rudá Ricci disse...

Sim, Sturt. E acho muito frágil. Utiliza de maneira equivocada o conceito de classe social.

Rudá Ricci disse...

Estou escrevendo por partes. A introdução, normalmente, se escreve ao final do trabalho.