V O T O
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO
Em 19 de agosto de 2007, em artigo intitulado “A igualdade é colorida”, publicado na Folha de São Paulo, destaquei o preconceito vivido pelos homossexuais. O índice de homicídios decorrentes da homofobia é revelador. Ao ressaltar a necessidade de atuação legislativa, disse, então, que são 18 milhões de cidadãos considerados de segunda categoria: pagam impostos, votam, sujeitam-se a normas legais, mas, ainda assim, são vítimas preferenciais de preconceitos, discriminações, insultos e chacotas, sem que lei específica a isso coíba. Em se tratando de homofobia, o Brasil ocupa o primeiro lugar, com mais de cem homicídios anuais cujas vítimas foram trucidadas apenas por serem homossexuais.
Há não mais de sessenta anos, na Inglaterra, foi intensamente discutido se as relações homossexuais deveriam ser legalizadas. As conclusões ficaram registradas no relatório Wolfenden, de 1957. Vejam que apenas seis décadas nos separam de leis que previam a absoluta criminalização da sodomia, isso no país considerado um dos mais liberais e avançados do mundo. Em lados opostos no debate, estavam o renomado professor L. A. Hart e o magistrado Lorde Patrick Devlin. O primeiro sustentava o respeito à individualidade e à autonomia privada e o segundo, a prevalência da moralidade coletiva, que à época repudiava relações sexuais entre pessoas de igual gênero. Em breve síntese, Devlin afirmou a necessidade de as leis refletirem o tecido básico de composição da sociedade, que é exatamente a moralidade comum. Sem a moralidade, asseverava, haveria a desintegração da sociedade, sendo tarefa do Direito impedir a produção desse resultado. Manifestou-se pela máxima liberdade possível na vida privada dos indivíduos, desde que os atos praticados não contrariassem esse preceito reputado singelo, de defesa do mínimo ético. Questionava a própria utilidade do direito à liberdade quando acionado para tomar decisões que eram sabidamente prejudiciais ao indivíduo e à sociedade. Não se furtava a dizer que ninguém via na homossexualidade um bom projeto de vida – de fato, essa era a opinião comum. Interrogado sobre o que deveria ser considerado moralidade, recorreu ao juízo de uma pessoa.
Segundo Hart, tais visões imputadas à moralidade comum não passavam de preconceito resultante da ignorância, do medo e da incompreensão, sentimentos incompatíveis com a racionalidade que deve ser inerente à ciência jurídica. Apontou quatro razões para refutar a posição de Devlin. Primeira: punir alguém é lhe causar mal, e, se a atitude do ofensor não causou mal a ninguém, carece de sentido a punição. Em outras palavras, as condutas particulares que não afetam direitos de terceiros devem ser reputadas dentro da esfera da autonomia privada, livres de ingerência pública. Segunda razão: o livre arbítrio também é um valor moral relevante. Terceira: a liberdade possibilita o
aprendizado decorrente da experimentação. Quarta: as leis que afetam a sexualidade individual acarretam mal aos indivíduos a ela submetidos, com gravíssimas consequências emocionais.
Já se concluiu que o Direito sem a moral pode legitimar atrocidades impronunciáveis, como comprovam as Leis de Nuremberg, capitaneadas pelo Partido Nazista, que resultaram na exclusão dos judeus da vida alemã2. A ciência do Direito moralmente asséptica almejada por Hans Kelsen – a denominada teoria pura do Direito – desaguou na obediência cega à lei injusta, e a história já revelou o risco de tal enfoque. O Direito, por ser fruto da cultura humana, não pode buscar a pureza das ciências naturais, embora caiba perseguir a objetividade e a racionalidade possíveis.
Por outro lado, o Direito absolutamente submetido à moral prestou serviços à perseguição e à injustiça, como demonstram episódios da Idade Média, quando uma religião específica capturou o discurso jurídico para se manter hegemônica. Como se sabe, as condenações dos Tribunais da Santa Inquisição eram cumpridas por agentes do próprio Estado – que também condenava os homossexuais, acusados de praticar a sodomia ou o “pecado nefando” que resultou, para alguns, na destruição divina da cidade de Sodoma, conforme é interpretada a narrativa bíblica. O jurista espanhol Gregório Peces-Barba Martínez (Curso de Derechos Fundamentales: teoría general, 1991, p. 32)
assinala que a separação entre Direito e moral constitui uma das grandes conquistas do Iluminismo, restaurando-se a racionalidade sobre o discurso jurídico, antes tomado pelo obscurantismo e imiscuído com a moral religiosa.
Em síntese, (...) o Direito não está integralmente contido na moral, e vice-versa, mas há pontos de contato e aproximação. É fácil notar a influência da moral no Direito, por exemplo, em institutos como o casamento – no direito de família – e em tipos penais, como eram muitos dos denominados “crimes contra os costumes”, os quais têm origem comum em sentimentos morais e religiosos. A afirmação peremptória de que o discurso jurídico não pode, sob nenhuma condição, incorporar razões morais para justificar proibições, permissões ou formatar instituições mostra-se equivocada, caso contrário a própria referência constitucional ao princípio da moralidade, presente no artigo 37, cabeça, da Carta Federal, haveria de ser tachada de ilegítima. Essa constatação, porém, não afasta outra: é incorreta a prevalência, em todas as esferas, de razões morais ou religiosas. Especificamente quanto à religião, não podem a fé e as orientações morais dela decorrentes ser impostas a quem quer que seja e por quem quer que seja. As garantias de liberdade religiosa e do Estado Laico impedem que concepções morais religiosas guiem o tratamento estatal dispensado a direitos fundamentais, tais como o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à autodeterminação, o direito à privacidade e o direito à liberdade de orientação sexual.
O reconhecimento de efeitos jurídicos às uniões estáveis representa a superação dos costumes e convenções sociais que, por muito tempo, embalaram o Direito Civil, notadamente o direito de família. A união de pessoas com o fim e procriação, auxílio mútuo e compartilhamento de destino é um fato da natureza, encontra-se mesmo em outras espécies. A família, por outro lado, é uma construção cultural. Como esclarece Maria Berenice Dias (Manual de direito das famílias, 2010, p. 28), no passado, as famílias formavam-se para fins exclusivos de procriação, considerada a necessidade do maior número possível de pessoas para trabalhar em campos rurais.
Em detrimento do patrimônio, elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os membros como elementos centrais de caracterização da entidade familiar. Alterou-se a visão tradicional sobre a família, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a existir para que os respectivos membros possam ter uma vida plena comum. Abandonou-se o conceito de família enquanto “instituição-fim em si mesmo”, para identificar nela a qualidade de instrumento a serviço da dignidade de cada partícipe, como defende Guilherme Calmon Nogueira da Gama (Direito de família e o novo Código Civil, p. 93, citado por Maria Berenice Dias, Manual de direito das famílias, 2010, p. 43).
Se o reconhecimento da entidade familiar depende apenas da opção livre e responsável de constituição de vida comum para promover a dignidade dos partícipes, regida pelo afeto existente entre eles, então não parece haver dúvida de que a Constituição Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva admitida como tal. Essa é a leitura normativa que faço da Carta e dos valores por ela consagrados, em especial das cláusulas contidas nos artigos 1º, inciso III, 3º, incisos II e IV, e 5º, cabeça e inciso I. Percebam que a transformação operada pela atual Constituição não se resumiu ao direito de família. A partir de 1988, ocorreu a ressignificação do ordenamento jurídico. Como é cediço, compete aos intérpretes efetuar a filtragem constitucional dos institutos previstos na legislação infraconstitucional.
Esse ramo do Direito voltou-se à tutela das situações jurídico-existenciais e, apenas em caráter secundário, às situações jurídico-patrimoniais. O Direito Civil é possivelmente o ramo da ciência jurídica mais afetado pela inserção do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, porquanto estampa diretamente os costumes e os valores da sociedade, razão pela qual tantas vezes o Código Civil é rotulado como “a Constituição do homem comum”. (...) O Direito Civil, na expressão empregada por Luiz Edson Fachin, sofreu uma “virada de Copérnico”, foi constitucionalizado e, por consequência, desvinculado do patrimônio e socializado. A propriedade e o proprietário perderam o papel de centralidade nesse ramo da ciência jurídica, dando lugar principal à pessoa. É o direito do “ser”, da personalidade, da existência.
A homoafetividade é um fenômeno que se encontra fortemente visível na sociedade. Como salientado pelo requerente, inexiste consenso quanto à causa da atração pelo mesmo sexo, se genética ou se social, mas não se trata de mera escolha. A afetividade direcionada a outrem de gênero igual compõe a individualidade da pessoa, de modo que se torna impossível, sem destruir o ser, exigir o contrário. Insisto: se duas pessoas de igual sexo se unem para a vida afetiva comum, o ato não pode ser lançado a categoria jurídica imprópria. A tutela da situação patrimonial é insuficiente. Impõe-se a proteção jurídica integral, qual seja, o reconhecimento do regime familiar. Caso contrário, conforme alerta Daniel Sarmento, estar-se-á a transmitir a mensagem de que o afeto entre elas é reprovável e não merece o respeito da sociedade, tampouco a tutela do Estado, o que viola a dignidade dessas pessoas, que apenas buscam o amor, a felicidade, a realização. Se as decisões judiciais que permitiram o reconhecimento das sociedades de fato entre pessoas do mesmo sexo representaram inegável avanço quando foram proferidas, atualmente elas apenas reproduzem o preconceito e trazem à
balha o desprezo à dignidade da pessoa humana. Igualmente, os primeiros pronunciamentos que reconheceram aos heterossexuais não casados direitos sucessórios com fundamento na sociedade de fato foram celebrados como inovações jurídicas. Nos dias de hoje, esses atos judiciais estariam em franca incompatibilidade com a Constituição e mesmo com a moralidade comum. O princípio da dignidade da pessoa humana ostenta a qualidade de fundamento maior da República. É também mencionado no artigo 226, § 7º, onde figura como princípio inerente ao planejamento familiar, e nos artigos 227 e 230, quando da referência ao dever da família, da comunidade e do Estado de assegurarem, respectivamente, a dignidade da criança e do idoso. As opiniões doutrinárias asseveram tratar-se do “valor dos valores”, do “ponto de
Arquimedes no Estado constitucional” (Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa
humana e direitos fundamentais, 2002, p. 81), de modo que a importância enquanto
fonte autônoma de obrigações e direitos não pode ser negligenciada.
A unidade de sentido do sistema de direitos fundamentais encontra-se no princípio da dignidade humana, porque aqueles existem exatamente em função da necessidade de garantir a dignidade do ser humano. A dificuldade de extrair o exato significado da expressão “dignidade humana” conduz à conclusão de que os órgãos investidos de legitimidade democrático-eleitoral devem ter papel destacado nesse mister, mas não impede o reconhecimento de uma “zona de certeza positiva” no tocante aos elementos essenciais do conceito.
A proibição de instrumentalização do ser humano compõe o núcleo do princípio, como bem enfatizado pelo requerente. Ninguém pode ser funcionalizado, instrumentalizado, com o objetivo de viabilizar o projeto de sociedade alheio, ainda mais quando fundado em visão coletiva preconceituosa ou em leitura de textos religiosos. A funcionalização é uma característica típica das sociedades totalitárias, nas quais o indivíduo serve à coletividade e ao Estado, e não o contrário. As concepções organicistas das relações entre indivíduo e sociedade, embora ainda possam ser encontradas aqui e acolá, são francamente incompatíveis com a consagração da dignidade da pessoa humana. Incumbe a cada indivíduo formular as escolhas de vida que levarão ao desenvolvimento pleno da personalidade. A Corte Interamericana de Direitos
Humanos há muito reconhece a proteção jurídica conferida ao projeto de vida (v. Loayza Tamayo versus Peru, Cantoral Benavides versus Peru), que indubitavelmente faz parte do conteúdo existencial da dignidade da pessoa humana. Sobre esse ponto, consignou Antônio Augusto Cançado Trindade no caso Gutiérrez Soler versus Colômbia, julgado em 12 de setembro de 2005:
" Todos vivemos no tempo, que termina por nos consumir. Precisamente por vivermos no tempo, cada um busca divisar seu projeto de vida. O vocábulo “projeto” encerra em si toda uma dimensão temporal. O projeto de vida tem, assim, um valor essencialmente existencial, atendo-se à ideia de realização pessoal integral. É dizer, no marco da transitoriedade da vida, a cada um cabe proceder às opções que lhe pareçam acertadas, no exercício da plena liberdade pessoal, para alcançar a realização de seus ideais. A busca da realização do projeto de vida desvenda, pois, um alto valor existencial, capaz de dar sentido à vida de cada um. (tradução livre)"
O Estado existe para auxiliar os indivíduos na realização dos respectivos projetos pessoais de vida, que traduzem o livre e pleno desenvolvimento da personalidade. O Supremo já assentou, numerosas vezes, a cobertura que a dignidade oferece às prestações de cunho material, reconhecendo obrigações públicas em matéria de medicamento e creche, mas não pode olvidar a dimensão existencial do princípio da dignidade da pessoa humana, pois uma vida digna não se resume à integridade física e à suficiência financeira. A dignidade da vida requer a possibilidade de concretização de metas e projetos. Daí se falar em dano existencial quando o Estado manieta o cidadão nesse aspecto. Vale dizer: ao Estado é vedado obstar que os indivíduos busquem a própria felicidade, a não ser em caso de violação ao direito de outrem, o que não ocorre na espécie. Certamente, o projeto de vida daqueles que têm atração pelo mesmo sexo resultaria prejudicado com a impossibilidade absoluta de formar família. Exigir-lhes a mudança na orientação sexual para que estejam aptos a alcançar tal situação jurídica demonstra menosprezo à dignidade. Esbarra ainda no óbice constitucional ao preconceito em razão da orientação sexual.
No mais, ressalto o caráter tipicamente contramajoritário dos direitos
fundamentais. De nada serviria a positivação de direitos na Constituição, se eles fossem lidos em conformidade com a opinião pública dominante. Ao assentar a prevalência de direitos, mesmo contra a visão da maioria, o Supremo afirma o papel crucial de guardião da Carta da República, como o fez no julgamento do Recurso Extraordinário nº 633.703, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, quando declarou a inconstitucionalidade da aplicação da “Lei da Ficha Limpa” às eleições de 2010, por desarmonia com o disposto no artigo 16 da Carta Federal. Assim já havia procedido em outras oportunidades, tal como na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.351/DF, de minha relatoria, relativamente aos pequenos partidos políticos, no célebre caso “Cláusula de Barreira”.
Com base nesses fundamentos, concluo que é obrigação constitucional do Estado reconhecer a condição familiar e atribuir efeitos jurídicos às uniões homoafetivas. Entendimento contrário discrepa, a mais não poder, das garantias e direitos fundamentais, dá eco a preconceitos ancestrais, amesquinha a personalidade do ser humano e, por fim, desdenha o fenômeno social, como se a vida comum com intenção de formar família entre pessoas de sexo igual não existisse ou fosse irrelevante para a sociedade.
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