Revista AMAE Educando:
1- Por que o senhor afirma que estamos assistindo um empobrecimento do ímpeto de inovação educacional que marcou as últimas duas décadas do séc. XX?
R: Porque nas últimas duas décadas do século passado tivemos um movimento importante, envolvendo principalmente países latinos, de reformas educacionais progressistas, que focaram na lógica do desenvolvimento humano, que nunca é padronizado. Piaget e Vygotsky foram relidos e muitas teorias da área da neurologia foram incorporadas (como Antonio Damásio, Howard Gardner e até Oliver Sachs). Começamos a avançar neste campo, abrindo uma leitura ampla, que casou leitura sociológica, neurológica, psicológica e pedagógica. De repente, com a pressão internacional para se utilizar indicadores de resultado, de inspiração empresarial, começamos a retroceder. O foco passou a ser o próprio resultado e não mais o processo de aprendizagem. O ser humano sumiu da preocupação central das políticas públicas educacionais. O número e o ranking (como no IDEB, Simave ou Saresp) voltaram a ser mais importantes. Ora, quando o ser humano é substituído pelo ranking, o gestor deixa de se responsabilizar por articular políticas sociais e olhar o ser humano e descarrega a responsabilidade no professor e nos métodos de ensino. O problema é que todos dados indicam que o problema do desempenho do aluno está na família e nas condições sociais de sua vida. O erro continua do gestor, mas para o público externo estamos vendendo esta história que professor não sabe educar ou não tem formação. Temos relatos de professores com doutorado que não conseguem dar aula porque o grau de tensão e agitação na sala de aula o impede até de fazer chamada. Para piorar, alguns gestores adotam esta excrescência que é a premiação por desempenho dos alunos. Já sabemos quem terá melhor performance: o professor das regiões mais abastadas do país. Voltamos aos anos 1970.
2- Por que as reformas educacionais brasileiras realizadas nessa época fizeram com que dialogássemos com teorias conflitantes?
R: Porque iniciamos as inovações na área pedagógica (ENEM, PCNs e outras iniciativas), mas não prosseguimos e repercutimos na área da gestão. Fomos esquizofrênicos nas políticas educacionais. Veja a sala de aula. Continua com a lógica disciplinadora, racional, taylorista. Até mesmo a Escola Parque proposta por Anísio Teixeira é utopia hoje, tal a pobreza desta lógica escolar. Os professores ainda ganham por módulo-aula, que é um obstáculo para currículos que estejam focados em projetos ou dificuldades específicas de alunos. Em determinado momento, posso fazer uma viagem com alunos. Em outro, um breve filme. O módulo-aula é absolutamente ultrapassado. A arquitetura escolar é uma espécie de panopticon do século XIX. O centro de tudo é o corredor das salas de aula e não a biblioteca e a pesquisa. As salas são separadas entre si e a escola é separada das ruas. Uma instituição fechada, alimentada pela lógica da higienização social. As ruas, os problemas reais dos bairros dificilmente entram no currículo. Não formamos lideranças sociais, embora estejamos assumindo a liderança no mundo. Um contra-senso.
3- A motivação política foi preponderante em relação aos objetivos educacionais durante a implementação dessas reformas?
R: Sim. No caso brasileiro foi evidente. Todo movimento de professorado, incluindo as greves lideradas por sindicatos de professores, articulou questões de gestão, valorização profissional, articulação com sociedade civil e currículo (aqui, com forte influência das elaborações de Paulo Freire). Respirávamos as possibilidades da redemocratização do país. Infelizmente, grande parte do discurso sindical do setor foi se reduzindo à questão salarial. Muitos sindicatos de professores se partidarizaram nitidamente.
4- Qual é o item mais polêmico das reformas?
R: É o controle social e o currículo. A escola não chega às ruas. Atualmente, assessoro a Constituinte Escolar de Ipatinga. Fizemos duas rodadas de pesquisas com pais, alunos, diretores, lideranças sociais, funcionários de escolas e professores. Tudo está disponível no site www.constituinteescolar.com.br . É impressionante como a sociedade se sente divorciada de todo sistema educacional e escolar. A educação é, ainda, uma caixa preta para os pais e líderes sociais. O segundo problema é o currículo. Estamos naturalizando os conteúdos necessários, sem discussão pública. Por qual motivo se diz que matemática e português são básicos? De onde se tirou isto? Desde quando linguagem se limita à língua pátria? Desta maneira, um analfabeto não teria como se relacionar no mundo. E sabemos que isto não ocorre. Esta é uma versão das mais simplificadoras do que seria estímulo à autonomia e inteligência humanas. Inteligência significa de decidir e não quantidade de informações adquiridas. Desta naturalização nascem as avaliações sistêmicas. E ficamos discutindo números do IDEB como se ao atingir o índice 6 estivéssemos no Olimpo. Fico estarrecido com esta infantilização. A ponta do iceberg fica sendo a tal promoção automática. Mas sem discutir currículo não há motivos para se discutir avaliação. Afinal, avaliamos o que desejamos alcançar. E o que desejamos alcançar neste século XXI?
5- Por que, no século XXI, o papel social das escolas alterou-se profundamente?
R: Porque as famílias perderam importância no processo de formação de crianças e, principalmente, adolescentes. Aumenta o número de famílias monoparentais, onde apenas a mãe reside com os filhos. E esta mãe trabalha e chega esgotada em casa. As escolas, sem perceber, jogam uma bomba no colo dessas mães com os “para casa” ou “tarefas” para os alunos desenvolverem em casa. Muitas vezes, a mãe nem sabe como ajudar. Em outras, a mãe responde pelos filhos para liquidar a fatura. Além deste problema central, e que é desconsiderado nos planejamentos escolares, temos outros da mesma natureza. Com o sentimento de abandono social, nossos alunos passam a disputar seu espaço na escola. O intervalo de aula é o maior laboratório de formação (ou deformação) moral de nossos estudantes. E não temos projeto pedagógico para este momento. Novo abandono, desta vez, na própria escola. Todos nós sabemos que nos intervalos ocorrem humilhações, paqueras, bullying e toda sorte de ações e confrontos entre tribos. Teríamos que criar educadores sociais para trabalhar nestes espaços. Temos que pensar atividades sociais e culturais. São Bernardo do Campo adotou, por exemplo, kits de esportes radicais e visitas de médicos para conversar sobre sexualidade e saúde com adolescentes. Pistas de skate, escaladas adaptadas, tablados para apresentação de grupos de dança e teatro, palcos improvisados para apresentação de bandas de jovens, uma infinidade de atividades culturais visitam as escolas a cada semana. Lembremos que são ações culturais e de lazer que oferecem os melhores resultados no combate à violência juvenil e uso de drogas. Há exemplos em todo mundo a respeito deste tema. A escola tem que ser vista como centro cultural e social. Não como instituição fechada. A questão é ainda mais aguda quando nos tornamos o segundo PIB da América. Somos uma potência em nosso continente. E já somos o 7º PIB mundial. Em cinco anos seremos o quinto mercado consumidor do mundo (atrás, apenas, da China, EUA, Alemanha e Japão). E o que estamos fazendo para formar uma geração de líderes que pensem e se responsabilizem pelo mundo? Nada. Só pensamos em dar dicas para o sucesso individual.
6- Qual a característica principal da atual política educacional brasileira?
R: Foco no resultado. Com eleições a cada dois anos, os gestores só pensam em apresentar resultados concretos. Deixaram de pensar em políticas estratégicas, de longo prazo. Querem dados para dizer que melhoraram o IDEB. E pressionam os professores. A premiação de professores por resultado é uma humilhação para a categoria. É como se dissessem que professor só faz bem se recebe mais dinheiro. A maior empresa de estudos de desempenho do mundo, a HAY, desmente tal versão. Eficiência e desempenho não dependem de salário. Obviamente que há uma base de dignidade e respeito público inserido no salário que se paga a um profissional. Mas os professores simplesmente não têm condições para desenvolver um trabalho adequado. As rotinas e exigências burocráticas são absurdas. Em pesquisas que coordeno junto à rede de ensino da cidade de São Paulo, os gestores de escolas ilustram rotinas absurdas, que os desviam da direção pedagógica. Todos profissionais das escolas vivem índices muito altos de estresse e depressão e outros sintomas da Síndrome de Burnout. E continuamos não pensando no concreto. Nossa política educacional paira sobre o real. É uma imensa abstração pensada em gabinetes.
7- Quais as iniciativas em curso com maiores chances de êxito?
R: Há iniciativas pulverizadas. No campo curricular, a educação fiscal e o orçamento participativo adolescente ou criança (OP Jovem, em Rio das Ostras/RJ; OPA, em Governador Valadares/MG; OP EDUCA, em São Carlos/SP, e assim por diante). Experiências de Constituinte Escolar envolvem toda comunidade escolar num pacto educacional muito importante. Há atividades e programas dispersos de formação técnica de professores. Cito, por exemplo, a UAB (universidade aberta do Brasil). No restante, estacionamos ou regredimos. Infelizmente.
8- Para os alunos, qual é o maior prejuízo quando as escolas se distanciam das ações sociais desenvolvidas pela comunidade?
R: Ela se aparta do mundo. Pior: cria um mundo próprio. Este é o problema do vestibular, o sistema de seleção para ingresso na universidade. O que se pergunta no vestibular, em grande medida, não tem importância alguma para a sociedade ou para a carreira do aluno. E exige memorização e não inteligência. Se adotarmos o ENEM como prova nacional e um processo de seleção seqüencial (provas no final de cada ano do ensino médio), além de introduzir outros elementos classificatórios que demonstrem engajamento social (como trabalho voluntário de candidatos), poderíamos alterar toda lógica de reflexo condicionado que hoje se adota nos terceiros anos de ensino médio e cursinhos preparatórios. Utilizamos, infelizmente, técnicas de Pavlol, do século XIX. E os pais incentivam tais técnicas. Os alunos as chamam de dicas. Um jogo de mercado dos mais anti-éticos, um jogo de toma lá, da cá. Isto não é educação. É adestramento.
9- O que têm feito os projetos educacionais contemporâneos para suprir a redução do convívio familiar?
R: A adoção da escola em tempo integral. Há arremedos, como a Escola Integrada, que é um shopping de atividades não conectadas pedagogicamente. Visam apenas a manutenção do aluno por mais tempo na escola ou atividades educacionais. Aí entra o projeto Segundo Tempo do Ministério dos Esportes. Bem intencionado, mas equivocado pedagogicamente. Porque o professor de referência é o que define a unidade do projeto pedagógico. Não os oficineiros. O programa Mais Educação, do MEC, dá um passo na direção certa. O importante é entender que a história mundial da educação sempre teve em aparelhos públicos a responsabilidade da formação social. Os kibutzim formam o exemplo clássico. Mas era assim na Grécia Antiga, na Roma Antiga. Basta ler os estudos de Philippe Áries para verificar que o papel educador da família só surgiu no século XVII. É esta tradição histórica que norteia a escola em tempo integral. Mas é preciso mais ousadia. E tirar o escorpião do bolso dos governos.
10- Como o senhor define uma educação de qualidade?
R: É aquela que constrói a autonomia dos estudantes e a socialização. Sempre cito Hannah Arendt que dizia que o papel da educação é humanizar os homens. Porque não nascemos humanos. Simplesmente porque a humanidade se constrói pela socialização de experiências, via linguagem. Somos cristãos ou budistas, muçulmanos ou marxistas, liberais ou anarquistas, sem termos conhecido Marx, Jesus, Buda, Maomé, Bakunin ou Locke. Convertemos-nos diariamente em função da leitura das experiências de outros. Ou por sentirmos e sermos informados pela música, pelas artes plásticas, pela dança, pelo teatro, enfim, pela linguagem. A escola, para humanizar, precisa nos abrir este cardápio de multiplicidade de experiências, desejos, frustrações, experiências plasmadas na linguagem. Este cardápio é que nos faz tolerantes e humildes. É ele que nos faz humanos. Fora disto, nos aproximamos dos animais irracionais. Mesmo que em nome da cultura e inteligência. Mesmo que em nome do resultado educacional.
Um comentário:
Meu caro e querido Rudá. Como sempre, só há o que aplaudir na sua fala sobre a situação educacional em nosso País. Continuo a aprender com vc. Preocupa-me, e muito, a transferência quase que total das responsabilidades das famílias para a escola, como acontece hoje. Não há mais nenhum entrosamento entre família/escola. Os nossos alunos, desde a Educação Básica até a Educação Superior, não trazem mais para a escola os princípios essenciais para uma boa convivência social, que deveriam ter recebido através da educação familiar. O que se vê, como consequência, é uma batalha pelo poder na sala de aula. Onde o professor, por ser detentor "apenas" do poder do conhecimento, é, muitas vezes, o derrotado. E, como sempre acontece, é o mais cobrado e o maior culpado por todo o fracasso escolar, independente do nível de ensino em que atue.Ah, tenho por costume levar os seus textos para discussão em minhas aulas. Abraços.
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