terça-feira, 17 de junho de 2008

Fome ou liberdade?


Esta questão sempre ressurge do nada, principalmente entre militantes de esquerda: primeiro resolve-se o básico (a fome, a saúde), depois, a liberdade. Penso, às vezes, que esta questão já está superada, mas ela retorna. Retorna no Brasil quando discutimos o Bolsa-Família. Dizer que há risco de ser um grande projeto clientelista gera a resposta imediata: "mas a fome é mais urgente". Vou responder pela boca de outro, mais qualificado: Amartya Sen, Prêmio Nobel da Economia, que escreveu "Desenvolvimento como Liberdade". Trata-se de uma passagem da sua participação no programa Roda Viva, em 2001 (ver http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/32/entrevistados/amartya_sen_2001.htm ):

"Na introdução do meu livro, eu citei uma experiência pessoal em minha vida, algo que vi durante as lutas entre hindus e muçulmanos, pouco antes da independência, em 1944 e 1945, quando hindus e muçulmanos estavam se matando, antes de o país ser dividido. Eu vi um operário muçulmano que havia sido esfaqueado, e que veio ao nosso jardim, onde eu brincava. Era uma região de maioria hindu. Ele fora esfaqueado por um hindu e eu tive de ajudá-lo, chamei meus pais, meu pai o levou ao hospital, onde ele morreu. Mas, quando eu conversei a sós com ele, eu tinha 10 anos, e estávamos indo de carro para o hospital, ele repetiu várias vezes que a esposa dele havia dito para ele não se envolver naquela situação, indo para uma região de maioria hindu no auge dos tumultos. Mas ele não tinha opção, pois era pobre. E, sendo pobre, ele tinha de ter alguma renda, e, para isso, ele foi lá, e pagou com a vida. E ficou claro para mim, naquele contexto que não ter liberdade econômica básica pode violar uma liberdade básica, a liberdade de não se colocar em uma situação perigosa. Assim como a falta de liberdade econômica afeta sua liberdade política, a falta de liberdade política também afeta sua liberdade econômica. (...) Qual a importância da liberdade? A resposta número um é: estar livre da fome já é uma liberdade. A liberdade não é apenas política. Ou seja, que a falta de liberdade econômica gera falta de liberdade política. É um tipo de não-liberdade levando a outro. Quem diz: "Por que falar de liberdade quando há fome"? Fome é não-liberdade. Falta de liberdade, liberdade básica. (...) O segundo ponto é que, mesmo quando a pessoa é muito pobre, muitas vezes, ela valoriza muito a liberdade política. No meu país, Índia, o primeiro uso real da força democrática do eleitorado não foi numa questão econômica. Foi nos anos 70, quando o governo da senhora Indira Gandhi aboliu os direitos fundamentais e aboliu o habeas corpus, e legalizou a prisão arbitrária, ao declarar estado de emergência, e isso foi posto em votação, e uma população pobre e analfabeta, por grande maioria, rejeitou o governo. É um caso em que uma das populações mais pobres do mundo mostrou sua sensibilidade à liberdade política. Aqueles que acham que pessoas relativamente pobres não se preocupam com a liberdade, julgam mal os pobres, julgam mal, na minha opinião, a humanidade."

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