quinta-feira, 24 de julho de 2008

Causo 02: "As cobras negras e gigantes"


Este segundo causo ocorreu anos depois do primeiro, recém formado e assumindo uma consultoria pelo CNEC (Camargo Correa) para a COPEL/Paraná. Fazia parte da equipe que estava elaborando o Relatório de Impacto do Meio Ambiente (RIMA) para construção da hidrelétrica de Segredo, divisa do Paraná com Santa Catarina. Num dia, o engenheiro chefe da COPEL liga desesperado porque uma comunidade, de 500 pessoas, havia parado de trabalhar e a reserva só estaria cheia um ano depois. Temia por problemas de saúde que pudessem surgir. Dizia que os comunicólogos da empresa não conseguiam entender ou convencer as famílias de agricultores. Elaboramos uma pesquisa em profundidade, tendo como eixo a trajetória das famílias, ou seja, o projeto familiar que possivelmente teria sido interrompido pela construção da barragem. Era uma hipótese de pesquisa. Fiquei encarregado de entrevistar uma liderança tradicional, um senhor polonês que me recebeu com chimarrão na mão. Sentamos num tronco, na parte de trás da casa e começamos a prosear. No segundo dia de prosa ele, de repente, me diz que tudo aquilo que estava ocorrendo já havia sido previsto por Zé Maria. Lembrei da Guerra do Contestado, cujo líder tinha sido um ex-militar de nome Zé Maria (na verdade, foram dois com o mesmo nome). Achei que havia algo naquela conversa e puxei pelo assunto, perguntando o que Zé Maria havia previsto. E o líder comunitário disse: "Zé Maria, um dia, debaixo daquela árvore disse que o mundo ia acabar num dilúvio. Mas antes, todos receberiam um aviso. O chão ficaria cheio de cobras negras gigantes e o céu ficaria coberto por teias de aranhas gigantes". Achei tudo muito estranho e perguntei onde estavam as cobras e as aranhas. E ele respondeu, olhando com cara de desdém para o urbano ignorante: "o senhor não tá vendo o alfalto que estão puxando? São as cobras negras gigantes. E os fios que estão puxando dos postes? São as teias. A barragem, que os omi do governo acham que só vai cobrir nossas terras vai ser um dilúvio. Vai acabar o mundo prá todos." Daí o motivo de pararem de trabalhar. Uma prova de como o imaginário social é concreto e tem impacto no cotidiano. E como o conhecimento técnico não consegue compreender esta linguagem (ou o desconsidera).

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