sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Por que comentei tanto sobre os rolezinhos? (2)

Prometi, em outra nota, comentar outro aspecto dos rolezinhos que me chama a atenção: a relação deles com a dinâmica nas escolas públicas brasileiras.
Há inúmeros relatos de situações em sala de aula que, se lidos e ouvidos pela imprensa e classe média tradicional, evitariam a histeria discriminatória que fomos obrigados a presenciar nos últimos dias por conta da "invasão" dos meninos dos rolezinhos.
Para não ser enfadonho, destaco um excerto da famosa carta de uma professora da rede municipal de ensino de Belo Horizonte (uma das mais conceituadas do país) quando do seu retorno à escola que lecionava, após o término de seu doutorado em Letras:

Hoje, dia 19 de março de 2009, vou mais um dia para a escola, desanimada e certa de que as aulas que preparei para os alunos do 3º ciclo, 1º turno, não serão dadas. Mas busco entusiasmo não sei onde, entro para a sala de aula (sala 10, 6ª série) e inicio repetindo o que tenho falado com os alunos desde o primeiro dia de aula: coloquem o caderno, a agenda, o lápis, caneta, borracha, régua, tesoura sobre a mesa e guardem a mochila debaixo da carteira ou dependurada no encosto da cadeira (muitos se deitam, durante a aula, na mochila para dormir ou se escondem atrás dela para dar gritos ensurdecedores sem motivo algum ou para atirar bolinhas de papel enfiadas no corpo das canetas esferográficas).Essa atividade demanda mais ou menos uns 20 min, pois metade da sala não ouve, ou finge que não ouve, continua a correr pela sala, está virada para trás conversando, está subindo nas bancadas sobre as janelas e de lá pulando de cadeira em cadeira e outros tantos estão a olhar no vazio, sem nada fazer.Quando estão todos assentados, mais dez minutos para que escutem a proposta de trabalho para o dia.

Ver carta completa clicando AQUI .

Pois bem, a agitação (correria e gritaria) que tanto foi explorada pela imprensa sensacionalista (felizmente, não envolvendo toda imprensa tupiniquim) nos últimos dias já é realidade há anos nas redes públicas de ensino.
O que ocorreu nas redes públicas?
A resposta é: se tornaram realmente públicas e, portanto, brasileiras.
Eu mesmo, filho de classe média e parte da elite social e política do pequeno município paulista onde vivi até os 16 anos, estudei em escolas públicas que eram dominadas pela elite econômica e política daquela localidade. Algo que se reproduzia, até os anos 1980, por todo país. Caso do Instituto de Educação aqui em Belo Horizonte, ocupada pela elite, embora pública.
A partir dos anos 1980, mas principalmente, a partir dos anos 1990, o dado de cobertura do ensino fundamental, ou seja, o percentual de crianças brasileiras em idade escolar que efetivamente estavam nas escolas públicas, foi crescendo sem parar.
Vejamos uma primeira tabela oficial:


Aqui você percebe a maravilha da evolução das matrículas do ensino fundamental, por região do país, de 1991 até 2001.
Vamos ver, agora, mais de perto:



Veja como, a partir dos anos 1990, o dado de cobertura das séries iniciais chegou a 96%, (em 1997). Perto da saturação, o salto foi ainda maior nas áreas rurais.
Enfim, as escolas públicas se tornaram mais brasileiras a partir daí.
Paralelamente a esta situação, verificamos uma mudança na composição familiar e em sua própria dinâmica interna. A média de filhos por mulher caiu abaixo de 2, atingindo rapidamente índices europeus. O fator principal foi o ingresso massivo de mulheres no mercado de trabalho e sua ascensão na hierarquia das empresas.
Vários estudos relatam que o tempo de convívio familiar dos pais com filhos acima de 15 anos de idade reduziu-se à média de 1h30 por dia. Este é um fenômeno mundial, em especial, na porção ocidental do Planeta. Moto contínuo, o resultado imediato foi a formação de "grupos de pares", ou seja, grupos de crianças e adolescentes da mesma idade que passaram a constituir uma comunidade própria, por onde nossos jovens passaram a aprender a se vestir, falar, a construir valores coletivos. Não foi um fenômeno apenas brasileiro e muito menos definido por clivagem de classe. Um fenômeno, portanto, universal.
Esta é uma das explicações para o perfil da Geração Y, arredia a qualquer hierarquia ou autoridade.
Os pais, cada vez mais distantes, alimentam um forte sentimento de culpa, o que impulsiona, de um lado, o estímulo ao consumo desde a tenra infância, como uma espécie de compensação pela ausência. Mas há outro fator, mais pernicioso, pouco comentado: a agressividade e violência dos pais para com diretores e professores das escolas de seus filhos. A cada repreensão ou punição aos seus alunos, afluem pais enfurecidos, dispostos a recuperar a "honra" de seus filhos. Minha equipe do Instituto Cultiva vem colhendo a evolução gradativa de atos de agressão e violência em escolas públicas, cujos autores são pais de alunos.
Destaco, a seguir, a página do Retrato da Rede 2013, publicação que socializa o levantamento anual das condições de trabalho em todas escolas municipais paulistanas, sob coordenação do SINESP (sindicato dos especialistas em educação do ensino público municipal de São Paulo), a partir da consultoria do Instituto Cultiva.


Comunidade e famílias dos alunos são responsáveis por 49% dos casos de agressão que profissionais da educação das escolas municipais sofreram no último ano na rede municipal de ensino da maior capital do país.
O leitor desta nota já deve ter percebido onde quero chegar.
O que estou querendo fundamentar é a constatação que o que estamos presenciando com os rolezinhos pode ser exagero, mas não é absolutamente nada distinto do que ocorre nas escolas públicas (e grande parte das particulares, cujos casos não são publicizados) do país há mais de dez anos.
Em segundo lugar, adultos são responsáveis pelo comportamento exagerado e, mais raro, agressivo dos jovens estudantes brasileiros. São eles, os adultos, os protagonistas dos atos de agressão contra professores e diretores de escolas, criando a referência para o comportamento de seus filhos e quebra de autoridade dos educadores.
Mas algo é ainda mais grave. São os adultos que promovem ações violentas contra crianças e adolescentes e não o inverso. Aliás, este também é um fenômeno que envolve grande parte do nosso continente.
Dados oficiais dos EUA revelam que são registrados 1,5 milhão de casos de maus-tratos contra crianças e adolescentes naquele país, na sua própria família. Mais de 300 mil crianças e adolescentes norte-americanas sofrem abusos sexuais, sendo 4 mil tendo como autores os pais de meninas. Estima-se que a cada 20 casos de violência, somente um é notificado. Envolve famílias de todas classes sociais.
Vejamos a conclusão de uma pesquisa realizada pela Universidade Popular da Baixada, patrocinada pelo Ministério da Justiça, que analisou 2.217 casos de processos relativos à violências e maus-tratos nos dez maiores municípios do Rio de Janeiro, em 1997:

O maior número de processos, 1.221, foi encontrado no Rio; seguido de Campos, com 219; Nova Iguaçu, com 186; São Gonçalo, com 130 e Duque de Caxias, com 97. A lamentar, o fato de que, dos 2.217 processos, só 19,8% estavam finalizados com sentença. Quanto à decisão judicial em relação ao agressor, em 49% dos casos não houve sentença e, em 23,6%, não houve registro (sic). Apenas em 15,1% houve punição para o agressor, que foi desde uma simples advertência até a suspensão ou destituição do pátrio poder. Especificamente em relação ao abuso sexual, houve 257 processos, sendo 143 do município do Rio de Janeiro. Também no município do Rio, no item Decisão judicial em relação ao agressor, em 46,7% dos casos não houve sentença (sic) e em 26,8% não houve registro (sic). Só houve algum tipo de punição, também de advertência até a perda do pátrio poder, em apenas 8,9% dos casos.

Enfim, a histeria contra os rolezinhos por parte da imprensa e classes médias é absolutamente infundada, intolerante e caolha, porque não consegue perceber a mudança de comportamento de seus próprios filhos, omissão dos adultos e, em especial, o exemplo familiar de comportamento agressivo.
Efetivamente, os rolezinhos não são fenômenos inscritos na lógica criminal ou marginal. Reproduzem, em escala maior, o comportamento cotidiano dos nossos jovens brasileiros.
Por acolherem os brasileiros indistintamente, as escolas públicas são palco, há anos, deste tipo de comportamento social hiper excitado, excessivo, até. Mas nada que coloque a vida social em perigo.
Pelo contrário, é nossa omissão e nosso comportamento, enquanto adultos, que alimentam ou orientam tais comportamentos coletivos excessivos.
A histeria só alimenta ainda mais esta lógica.
Enfim, como disse uma vez um importante psicólogo brasileiro, cada vez mais os adultos somos "adultescentes". Mesmo errando, costumamos jogar a culpa no Outro.

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