terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Ainda sobre Battisti


O argumento central para a não extradição de Cesare Battisti é que correria risco de vida se retornasse à Itália. O argumento parece fantasioso, com toque de teoria da conspiração. Mas uma entrevista de Daniele Ganser, professor de história contemporânea na universidade de Basileia e presidente da ASPO-Suíça, sugere que o argumento não é tão absurdo como parece. Ganser publicou um livro sobre os "Exércitos secretos da NATO" . Segundo ele os Estados Unidos organizaram na Europa Ocidental durante 50 anos atentados que atribuíram mentirosamente à esquerda e à extrema esquerda para as desacreditar aos olhos dos eleitores. Abaixo, reproduzo a parte inicial de uma entrevista que concedeu à Silvia Catttori. A entrevista completa pode ser acessada no site http://voltairenet.org/.

Silvia Cattori: A sua obra consagrada aos exércitos secretos da NATO explica o que é a estratégia da tensão e o grande perigo dos terrorismos bandeira-falsa. O livro mostra-nos como a NATO durante a Guerra Fria – em coordenação com os serviços de informação dos países europeus ocidentais e com o Pentágono – serviu-se de exércitos secretos, recrutou espiões nos meios da extrema direita e organizou actos terroristas que foram atribuídos à extrema esquerda. Sabendo isso, podemo-nos interrogar sobre o que se possa passar hoje em dia sem nós o sabermos.
Daniele Ganser: É muito importante compreender o que a estratégia da tensão realmente é e como funcionou durante esse período. Isso poder-nos-á ajudar a esclarecer o presente e a ver melhor em que medida ela está hoje em dia ainda em funcionamento. Pouca gente sabe o que a expressão estratégia da tensão significa. Por isso é importante falar dela e explicar o que significa. É uma táctica que consiste em cometer atentados criminosos com as próprias mãos e atribuí-los a um outro qualquer. A palavra tensão refere-se à tensão emocional, àquilo que cria um sentimento de medo. A palavra estratégia refere-se ao que alimenta o medo das pessoas em relação a um certo grupo. As estruturas secretas da NATO eram equipadas, financiadas e treinadas pela CIA, em coordenação com o MI6 (os serviços secretos britânicos) para combater as forças armadas da União Soviética em caso de guerra, mas também, segundo as informações de que hoje se dispõe, para cometer atentados terroristas em diversos países. Foi assim que, nos anos 70, os serviços secretos italianos utilizaram exércitos secretos para cometerem atentados terroristas com o fim de provocar o medo na população e depois acusar os comunistas de terem sido os autores. Foi isto numa altura em que o Partido Comunista tinha um poder legislativo importante no Parlamento. A estratégia de tensão tivera por fim desacreditá-lo e enfraquecê-lo, para impedí-lo de poder chegar ao poder executivo.

Silvia Cattori: Saber o que significa é uma coisa. Mas continua a ser difícil acreditar que os nossos governos tenham podido deixar a NATO, os serviços de informação europeus ocidentais e a CIA ameaçar a segurança dos seus próprios cidadãos!
Daniele Ganser: A NATO estava no coração dessa rede clandestina ligada ao terror; o Clandestine Planning Committee (CPC) e o Allied Clandestine Committee (ACC), que estão hoje perfeitamente identificados, eram subestruturas clandestinas da Aliança Atlântica. Agora, ainda que tudo isso seja já bem conhecido, continua a ser difícil saber quem fazia o quê. Não há documentos que mostrem quem comandava, quem organizava a estratégia da tensão, como a NATO, os serviços de informação europeus ocidentais, a CIA, o MI6 e os terroristas recrutados nos meios da extrema direita distribuíam os papéis. A única certeza que temos é que havia, no interior dessas estruturas clandestinas, elementos que utilizaram a estratégia da tensão. Os terroristas de extrema direita explicaram nas suas deposições que foram os serviços secretos e a NATO que os haviam apoiado nessa guerra clandestina. Mas quando se pede explicações a membros da CIA ou da NATO - coisa que fiz durante vários anos - limitam-se a dizer que talvez possa ter havido alguns elementos criminosos que tenham escapado ao seu controlo.

Silvia Cattori: Esses exércitos secretos estavam activos em todos os países europeus ocidentais?
Daniel Ganser: Com as minhas pesquisas consegui provar que esses exércitos secretos existiam, não apenas em Itália, mas em toda a Europa Ocidental: na França, na Bélgica, nos Países Baixos, na Noruega, na Dinamarca, na Suécia, na Finlândia, na Turquia, na Espanha, em Portugal, na Áustria, no Luxemburgo, na Alemanha. Ao princípio pensava-se que houvesse uma estrutura de guerrilha única e que, portanto, todos esses exércitos tivessem participado na estratégia de tensão, logo em atentados terroristas. Ora, é importante saber que nem todos esses exércitos secretos participaram em atentados e compreender o que os diferenciava, porque eles tinham duas actividades distintas. O que parece hoje claro é que as estruturas clandestinas da NATO, no conjunto chamadas Stay Behind, estavam concebidas à partida para levar a cabo guerrilhas em caso de ocupação da Europa Ocidental por parte da União Soviética. Os Estados Unidos diziam que essas redes de guerrilha eram necessárias para colmatar a impreparação em que se encontraram os países invadidos pela Alemanha.
Um certo número de países que sofreram a ocupação alemã, como a Noruega, queriam tirar lições da sua incapacidade demonstrada de resistir ao ocupante e disseram a si próprios que, em caso de nova ocupação, deveriam estar mais bem preparados e ter um exército secreto como segunda opção, se porventura o exército clássico ficasse desfeito. Havia nesses exércitos secretos gente honesta, patriotas sinceros que queriam simplesmente defender o seu país em caso de ocupação.

Silvia Cattori: Se bem compreendo, esses Stay Behind cujo objectivo inicial era preparar-se para a eventualidade duma invasão soviética foram desviados dele para combater a esquerda. Custa a perceber porque razão os partidos de esquerda não investigaram, não denunciaram esses desvios mais cedo?
Daniele Ganser: Se se tomar o caso da Itália, parece que, de cada vez que o Partido Comunista interpelou o governo pedindo explicações sobre o exército secreto que operava no país com o nome de código Gladio, nunca teve resposta sob o pretexto de secredo de Estado. Não é senão em 1990 que Giulio Andreotti reconheceu a existência do Gladio e das suas ligações com a NATO, a CIA e o MI6. É nessa época também que o juiz Felice Casson conseguiu provar que o verdadeiro autor do atentado de Peteano em 1972, que abalou toda a Itália e que fora até então atribuído a militantes da extrema esquerda, era de facto Vincenzo Vinciguerra, próximo do Ordine Nuovo, um grupo de extrema direita. Vinciguerra confessou haver cometido o atentado de Peteano com a ajuda dos serviços secretos italianos. Vinciguerra falou também da existência desse exército secreto Gladio e explicou como, durante a Guerra Fria, esses atentados clandestinos causaram a morte de mulheres e crianças. Afirmou também que esse exército secreto, controlado pela NATO, tinha ramificações por toda a Europa. Quando apareceu essa informação houve uma crise política em Itália. E é graças às investigações do juiz Felice Casson que se tem hoje conhecimento dos exércitos secretos da NATO. Na Alemanha quando os socialistas do SPD souberam, em 1990, que existia no seu país - como em todos os outros países europeus - um exército secreto, e que essa estrutura estava ligada aos serviços secretos alemães, bradaram escândalo aos quatro ventos e acusaram o partido democrata-cristão (CDU). Este reagiu dizendo: se nos acusais, vamos a público dizer como vós também, com Willy Brandt, participastes na conspiração. Coincidiu isto com as primeiras eleições na Alemanha reunificada, que o SPD esperava ganhar. Os dirigentes do SPD compreenderam que isso não seria um bom tema eleitoral e acabaram por dar a entender que, no fim de contas, esses exércitos secretos eram justificáveis. No Parlamento Europeu, em Novembro de 1990, levantaram-se vozes dizendo que não se podia tolerar a existência de exércitos clandestinos, nem deixar por explicar os actos de terror cuja verdadeira origem não era clara e que era necessário investigar. O Parlamento Europeu protestou na altura por escrito junto da NATO e do presidente George Bush senior. Mas nada foi feito. Só na Itália, Suíça e Bélgica foram levados a cabo inquéritos públicos, e só nestes países se pôs um pouco de ordem neste assunto e se publicou relatórios sobre os exércitos secretos.

Silvia Cattori: E hoje em dia? Esses exércitos clandestinos estarão ainda activos? Haverá estruturas nacionais secretas que escapem ao controlo dos Estados?
Daniele Ganser: Para um historiador é difícil de responder a essa questão. Não se dispõe dum relatório oficial país por país. Nas minhas obras analiso factos que posso provar. Em relação à Itália, existe um relatório que afirma que o exército secreto Gladio foi suprimido. Sobre a existência do exército secreto P26 na Suíça, houve, em Novembro de 1990, semelhante relatório do Parlamento. Assim, os exércitos clandestinos que armazenaram explosivos em esconderijos um pouco por toda a Suiça foram dissolvidos. Mas nos outros países não se fez nada. Em França quando o presidente François Mitterrand afirmou que tudo isso pertencia ao passado, soube-se logo a seguir que essas estruturas secretas continuavam activas com a afirmação de Giulio Andreotti que o presidente francês mentia: "Diz o senhor que os exércitos secretos já não existem; ora, aquando da reunião secreta no Outono de 1990, vós também franceses estáveis presentes; não diga portanto que já não existem". Mitterrand ficou bastante zangado com Andreotti pois, após esta revelação, foi obrigado a rectificar a sua declaração. Mais tarde, o antigo chefe dos serviços secretos franceses, o almirante Pierre Lacoste, confirmou que esses exércitos secretos existiam também em França e que a França estivera também implicada em atentados terroristas. É portanto difícil dizer se tudo isso está acabado. E, ainda que as estruturas Gladio tenham sido dissolvidas, pode-se sem dúvida ter criado outras, continuando-se a servir desta técnica da estratégia da tensão e das bandeiras-falsas.

2 comentários:

ROBERTO FONSECA disse...

E Lula, certamente, tem conhecimento de tudo isso. Ah! Por que não se assume a afinidade ideológica entre o PT e Batisti e pronto?

Thiago Quintella de Mattos disse...

Aos poucos, professor Rudá, o mundo vai percebendo a Ideologia liberal-capitalista sendo desconstruída. O contraponto extremo, podemos dizer, o comunismo, baseado no tomismo, naquela de amigo x inimigo, do bem x mal (fortalecida durante a Idade Moderna e o Iluminismo) era uma resistência "facilmente" desarmada. Não havendo tantos inimigos rotulados, a coisa se inverte, ou vai se invertendo; surgem as faces, agora sem o cinismo aparente, dos verdadeiros atores do mal, as verdadeiras ameaças. Emergem os comportamentos totalitaristas de todas as grandes democracias do século XX. CAi o mito do mocinho, que podia facilmente matar um companheiro seu, por uma flecha cheyenne ou apache ao lado do corpo e dizer: "Estes selvagens, covardes!"