quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Minha entrevista ao Brasil de Fato


1) Qual é a principal marca que o governo Lula deixa na política brasileira e no aspecto social?
R: Na política ele cria um pacto desenvolvimentista que simplesmente dilacerou qualquer possibilidade de oposição e desmontou o já frágil sistema partidário. Trata-se de uma trama das mais inteligentes e bem sucedidas de nossa história republicana que rompe, entretanto, com o ideário dos anos 1980, focado na participação ativa da sociedade civil. Em outras palavras: a criatura se virou contra seu criador. No campo social, não há dúvidas, a principal marca foi a ascensão da nova classe média, voraz consumidora e conservadora nos princípios e valores. Somos um país de classe média, afinal. Vivemos a mesma efervescência dos EUA dos anos 1950. O que tem seu lado evidentemente positivo, mas também está formatando uma bolha de consumo. Algo como uma crise de crescimento.

2) Qual é a contribuição do governo Lula para o pensamento de esquerda no Brasil? Há uma reformulação do ideário de esquerda após a passagem do primeiro operário pela presidência do Brasil?
R: Há uma contribuição para se pensar a alma da política brasileira. Emergiu um líder visceral, tipicamente tupiniquim. Com o que há de pior e melhor do brasileiro, esta civilização ambivalente. A melhor expressão do Brasil é o carnaval, que transgride sem romper com a ordem. Lula expressa justamente isto: moderniza e conserva. Não rompe. Incorpora. Não é exatamente uma contribuição para a esquerda, mas para a política brasileira que desmontou a representação partidária conservadora - não o pensamento conservador - de nosso país e revelou a dificuldade da tradição de esquerda do nosso país em se tornar pública, projeto de massas. Finalmente, Lula é a expressão da nova classe média, é a expressão viva da ascensão social e sucesso dos pobres seculares do país. Sucesso na política, hoje, tem nome. E é justamente isto que a grande imprensa, que escreve para os antigos formadores de opinião, se recusa a entender. Nós, de esquerda, teremos que nos repensar. O lulismo não é um projeto de esquerda, mas coloca questões fundamentais para nós.

3) Bandeiras como a erradicação da miséria e os direitos sociais (sobretudo em programas como o Bolsa Família, Luz para Todos etc.) pareceram quase unânimes nas últimas eleições, esta é uma conquista deste governo?
R: Sim. Arriscaria a dizer que é uma conquista internacional. O constrangimento internacional que a presença de Lula cria é cada vez mais evidente. Ao dizer que "Lula é o cara", Obama expressou este constrangimento. Como se soubesse o caminho. O que é mais interessante é que Lula criou um discurso que, na prática, se fez a partir da conciliação de interesses. Ouvi de Márcio Pochman, em recente seminário, que não é possível alguém ter quase 90% de aprovação nacional sem quebrar ovos. Lula é amigo de todos. A política de transferência de renda não afetou a concentração de renda nacional. Foi uma transferência entre assalariados. Mesmo assim, a aparêncisa foi de mágica ou engajamento. Não sei se foi realmente engajamento. Mas foi uma mágica política.

4) A persistência na aliança com oligarquias poderia ter sido evitada, na sua opinião? Em outras palavras, o governo perdeu a oportunidade de enterrar definitivamente nomes como Sarney e Renan Calheiros?
R: Se fosse um governo de esquerda, minimamente que fosse, é óbvio que poderia ser evitada. Mas aí estaríamos em outro terreno. Não adotaríamos a política de fomento, via BNDES, para grandes empreendimentos, não teríamos substituído a política de reforma agrária por desenvolvimento de territórios, não teríamos criado o Presidencialismo de Coalizão, não teríamos mantido a política tributária regressiva. Seria outro projeto. Os governos Lula foram progressistas do ponto de vista da tradição republicana brasileira, mas esteve anos-luz de um projeto de esquerda.

5) O que o senhor pensa sobre o chamado "lulismo". Se acredita neste fenômeno, acha que ele tende a determinar a política brasileira nos próximos anos?
R: O lulismo é um modelo de gerenciamento do Estado e das políticas públicas. Não é uma ideologia e não gera movimento social. É algo que se vincula à tradição aberta pelo getulismo. Diria que ele completa a modernização conservadora iniciada por Getúlio Vargas. Portanto, trata-se de um paradigma da política nacional e não um mero governo. Deste ponto de vista, penso ser um erro comparar estes últimos oito anos com os governos FHC, Itamar Franco, Collor ou Sarney. Estes foram apenas governos, alguns responsáveis e engajados no desenvolvimento do país, outros nem tanto. O lulismo é mais que um governo. É uma nova organização política, um pacto desenvolvimentista. A oposição tenta reduzir esta importância. Mas os fatos políticos dizem mais que discursos. Afinal, onde está a oposição ao lulismo? Assim como o getulismo foi uma sombra por mais de cinquenta anos, o lulismo o será no próximo período. Isto se a criatura não retornar em 2014.

Nenhum comentário: