sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Quércia foi um moderno coronel paulista


O falecimento de Quércia pode significar uma página virada na política paulista. Quércia foi um típico coronel de uma fase mais moderna, de um Estado que teve Adhemar de Barros, Jânio Quadros e Maluf como expoentes desta tipologia de políticos que fizeram da proteção e alimentação dos currais eleitorais seu modus operandi. Já contei neste blog uma passagem emblemática que presenciei, quando ele afirmou, em reunião na Assembléia Legislativa de São Paulo (durante a organização da campanha das diretas, que o PMDB cozinhava em fogo brando) que adorava trabalhar com a esquerda porque trabalhavam muito sem pedir nada em troca.
Também vivi um momento em que ele revelou menos, digamos, humor. Foi quando eu coordenava a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) em São Paulo. Foi o momento em que articulamos um comitê paulista pela reforma agrária e José Rainha Jr. iniciou a ofensiva no Pontal do Paranapanema. Nossos dados indicavam que haviam 400 mil hectares de terras devolutas por lá (um hectare equivale ao tamanho de um campo de futebol e terra devoluta é terra sem proprietário porque não há origem dominial a partir da lei de 1850). Quércia aproveitou a pressão que fazíamos e conseguiu apresentar uma proposta das mais, digamos, espertas. Propôs que os latifundiários invasores de terras devolutas entregassem 25% de suas terras ao Estado em troca da legalização do restante. Uma beleza da ética política! Uma espécie de grilagem oficial. Explico: antes da Lei de Terras de 1850, não havia propriedade da terra. O que havia era posse e partilha da posse (com origem no sistema de sesmarias). A partilha de uma posse era registrada pelo pároco local. A partir de 1850, este registro na paróquia ou o registro de compra e venda é que definiam efetivamente a propriedade. A grilagem chama-se assim porque alguns aproveitadores forjavam um documento paroquial que teria concedido uma posse a uma pessoa que, por sua vez, teria o direito familiar a partir da linha dominial iniciada com o documento forjado. O documento era depositado numa gaveta cheia de grilos (daí a palavra grilagem) que comiam e devoravam parte do papel, além de o deixar com cor que se aproximava de um papel envelhecido, fruto da ação de seus excrementos. Depois, era só registrar o documento falso em cartório. Nascia uma terra grilada.
Quércia oficializava a história toda: o latifundiário invasor assumia o erro e cedia parte de sua "ocupação" ao Estado e, em troca, era premiado com o título definitivo. Tenho todos documentos e propostas arquivados até hoje. Assim Quércia entrava no oeste paulista e forjava seu curral eleitoral. A relação era direta com prefeitos e latifundiários locais. A premiação do atraso duplo, político e econômico. A cereja do bolo era o movimento "municipalista". Sabia navegar como ninguém. Tanto que ganhou o apoio de parte dos grandes expoentes da economia da Unicamp. Eles conferiam este traço de produção intelectual moderna ao expoente do coronelismo moderno paulista.
Sua última demonstração de força foi nas eleições presidenciais passadas. Como estampava a manchete da revista Veja, Quércia "peitou" Michel Temer. O presidente nacional do PMDB e vice na chapa da candidata à Presidência Dilma Rousseff defendeu o apoio do partido ao então candidato a governador, Aloizio Mercadante. Quércia, naquele momento, dizia: "Vamos descer o sarrafo", ao citar a candidata Dilma Rousseff. O PMDB paulista fazia parte da aliança em torno da candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB) a partir de costura de seu presidente estadual, também conhecido como Orestes Quércia.
Assim se fez (ou se faz) política em São Paulo.

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