Por que comentei tanto os rolezinhos? (1)
Rudá Ricci
Chegou um momento que muitos
internautas começaram a postar mensagens pedindo para mudar de assunto. Alguns
citando diretamente para este que, novamente, escreve sobre o tema. Talvez não
tenham sido tantos. Mas deu para notar.
A questão é que os rolezinhos
tiveram dois importantes significados para mim. Vou citar um deles e, em outro
momento, cito o segundo (que, adianto, trata-se da expressão de jovens que os
professores de escolas públicas brasileiras já vivenciam desde os anos 1990).
Um dos significados do rolezinho
é a revelação de mais uma face social deste país-mosaico.
Em pouco mais de um semestre,
quatro faces escondidas nos fundões do país vieram à tona. A primeira, dos
jovens universitários com algumas notas de espírito libertário. Muito marmanjo
de esquerda desejava ver um novo Zé Dirceu ou um sósia do Luís Travassos.
Talvez, um Wladimir Palmeira. Algo assim. Surgiram milhares, sem nome. Ninguém
subindo num carro ou muro para discursar. Muitos cartazes. Os marmanjos de
direita, bem, a direita é sempre meio velha, meio paranoica, meio passadista.
Jovem definitivamente não combina com a direita. Existem, é verdade, jovens de
direita, mas convenhamos que se trata de uma contradição em termos. Cuja
síntese é sempre um velho. Alma de velho.
Em julho, a elite sindical deu
sinal de vida. Era 11 de julho. . As centrais sindicais CSP-Conlutas, Força Sindical,
CUT, CTB, UGT, NCST, CGTB, CSB definiram o dia como de greves, paralisações e
manifestações de rua. Além dos carros de som, gente uniformizada, faixas feitas
com esmero em gráficas, faltou povo e empolgação. Greve e manifestação de rua
que é bom, só nos livros de história.
Balanço realizado pelos
organizadores constatou que a maioria dos trabalhadores não foi para a rua, mas
milhares de trabalhadores (não precisaram o número) aderiram às manifestações e
ficaram em casa. Paulo Pereira da Silva, então Presidente da Força Sindical,
concluiu: “por isso, até, a quantidade de pessoas que tinha na rua era menor do
que o que vimos em manifestações anteriores”. O dia de manifestação programada
pela elite sindical não empolgou porque há tempos as centrais sindicais se
incorporaram à lógica estatal naquilo que Phillipe Schimitter denominou de
neocorporativismo , ou seja, a tomada de assento da elite sindical nas arenas
de decisão da agenda estatal.
Nos meses seguintes, os índices
de popularidade perdidos em junho e julho foram sendo recuperados pelos
governantes, em especial, pela Presidente Dilma. Pesquisa daqui e dali e logo
surgiu o evidente: as classes menos abastadas, os assalariados e os que ganham
bolsa família seguraram o rojão. No pior momento de desilusão dos brasileiros
com o governo federal, nordeste e os que recebem bolsa família mantiveram o
apoio ao lulismo.
Com efeito, na pesquisa Datafolha
realizada entre 29 e 29 de novembro de 2013, a aprovação ao governo da
presidente Dilma Rousseff subiu e chegou a 41%. Mas entre os beneficiários do
Bolsa Família atingiu 53%. A aprovação de Dilma entre os que recebem o Bolsa
Família é maior que os 47% do ex-presidente Lula nesse mesmo grupo de eleitores
em fevereiro de 2006, ano em que ele foi reeleito. No início de 2010, quando
Dilma Rousseff enfrentava sua primeira eleição, outra pesquisa Datafolha
indicava que entre os beneficiários do Bolsa Família, 40% declaravam voto da
pouco conhecida candidata lulista. A mesma pesquisa revelava que entre os
beneficiários do programa habitacional federal “Minha Casa, Minha Vida”, era o
candidato oposicionista, José Serra (PSDB), que saía à frente, com 35% das
intenções de voto. O impacto
politico-eleitoral do Bolsa Família, como se percebe, é significativo, desde
sua criação.
Contudo, o que parecia constituir
uma forte tendência neoclientelista, se revelou algo mais fluido na medida em
que novas pesquisas com beneficiários foram surgindo no país. A pesquisa mais
completa e reveladora foi publicada no livro “Vozes do Bolsa Família”, elaborado
por Walquíria Leão Rego e Alessandro Pinzani. Entre 2006 e 2011, os autores
entrevistaram mais de 150 mulheres cadastradas no Bolsa Família, residentes no Vale
do Jequitinhonha (MG), sertão e litoral de Alagoas, interior do Piauí e do
Maranhão, periferias de São Luís e do Recife. Cada mulher foi entrevistada mais
de uma vez, de modo que foi possível verificar as mudanças que experimentaram
durante o período.
O estudo coloca por terra a noção
simplória e linear do clientelismo, marcada pela relação alienante entre o
beneficiado que é tutelado pelo seu protetor. As beneficiárias não sentem,
assim como os “meninos de junho”, atração pela política oficial e pelos partidos políticos.
Segundo os autores uma maioria relevante
das entrevistadas (cerca de 75%) afirmou que a bolsa é um favor do governo ou
uma ação derivada do fato de o presidente Lula ter sido pobre e, portanto,
conhecer melhor a situação dos pobres do que seus predecessores. Pouco mais da
metade das entrevistadas afirmou votar somente por obrigação, mas quase todas
reconheceram que os fatos de ter votado em Lula nas últimas eleições e de ele
ter sido eleito à Presidência, mudaram sua vida. Contudo, não fica claro se e
em que medida estabelecem uma ligação direta entre o fato de participar das
eleições e o de o governo Lula (neste caso) ter ganhado e adotado políticas
públicas de combate à pobreza que as afetam diretamente.
A pesquisa revela que não há interesse
dos beneficiários pela política, nem processo eleitoral. Tampouco há
alinhamento ou fidelização eleitoral dos beneficiários com partidos ou
lideranças políticas. Votam por ser uma obrigação. E, em diversas passagens, os
autores destacam que os beneficiários consideram ser justo receberem o
benefício em virtude dos políticos profissionais se apropriarem do dinheiro
público, muito acima do que seria seu direito, o que lhes dá direito para
receber a bolsa. O recurso recebido é identificado pela quase totalidade dos
entrevistados como insuficiente, o que as obriga a trabalhar em jornadas muito
extensas.
Enfim, o voto governista se dá
pela comparação com os programas e ações de outros partidos políticos e pelo
passado do ex-Presidente Lula.
O pragmatismo dos beneficiários
se revelou por completo quando do boato que se espalhou no país (em especial,
no nordeste), em maio de 2013, sobre o possível cancelamento do benefício. O
boato deu origem a 920 mil saques das contas dos beneficiários, em três dias,
revelando a percepção deste público a respeito da segurança e sustentabilidade
deste programa. Uma reação silenciosa daqueles que não haviam saíram às ruas no
mês seguinte.
Finalmente, do nada, surgiu a
quarta face até então escondida nas periferias das capitais do país: os meninos
do rolezinho. Trata-se de um fenômeno oriundo da inclusão pelo consumo. Há dez
anos, quando a geração anterior (parte parente direto desses pré-adolescente e
adolescentes) rompeu a barreira da história familiar de indigência, eles tinham
entre dois e sete anos de idade. Viveram sob o signo do consumo como validação
do prestígio social. Ao fenômeno da inclusão pelo consumo se cruzou outro, o da
transformação das redes sociais em principal fonte de comunicação entre jovens.
Algo que já havia sido verificado nas manifestações de junho, mas que revelou
seu potencial muito mais significativo e profundo nesses dias de rolezinhos.
Se a média de amigos virtuais no
mundo é de 195 pessoas por usuário, no Brasil este número atinge 365. Segundo o
IBOPE, mais de 80% dos internautas tem perfis em redes sociais. A participação
de jovens em redes sociais é igual em todas as classes sociais. Segundo a
Associação Brasileira de Internet, o acesso às redes pelas camadas menos
abastadas se dá através de smartphones, o que gerou, em especial no nordeste do
país, o fechamento de muitas lan house. Em nosso país, há 2,5 celulares por
pessoa.
O Facebook, desde 2012, é a
principal rede social utilizada pelos usuários brasileiros. Segundo a Experian
Hitwise . No final daquele ano, esta rede atingiu um índice de 54,99% de
participação no Brasil, frente os 18,24% registrados em 2011. O YouTube ficou
em segundo lugar na categoria, com 17,92%, seguido pelo Orkut, com 12,42%, que
registrou uma queda de 33,69 pontos percentuais em relação ao mesmo período de
2011. Mas como o mundo virtual é extremamente volátil e dinâmico, já no final
de 2013 registrava-se o aumento significativo do uso do Twitter e WathsApp no
mundo, superando o índice de crescimento do Facebook .
Os rolezinhos são encontros de
proprietários de fanpage instaladas no Facebook, com seus seguidores.
Pré-adolescentes e adolescentes do sexo masculino na faixa de 11 a 17 anos,
moradores e frequentadores de shoppings centers da periferia dos grandes
centros urbanos, chegam a administrar fanpages com 1.000, 5.000, 20.000 até
60.000 seguidores. São páginas de relacionamento e entretenimento de jovens que
trocam pequenos vídeos, gracejos, fotos, anúncios de eventos sociais, formando
uma comunidade ativa. Poucos anos atrás, ídolos e fãs (como se autodenominam
donos de fanpages e seguidores) começaram a agendar encontros para se
conhecerem. O local escolhido foram suas referências de consumo e diversão: os
shoppings centers das regiões periféricas das cidades. Os encontros foram
fartamente disseminados nas redes sociais que envolvem este perfil de jovem.
Nos encontros nos shoppings (inicialmente denominados de “encontros de fãs”)
seguidores presenteavam seus “ídolos” o que estimulou o surgimento de uma rede
ainda maior de fanpages e seguidores. As comunidades virtuais multiplicaram
seus membros o que aumentou o número de adolescentes que continuaram se
reunindo em shoppings, confirmando a presença nos convites virtuais que se
seguiram. Enfim, um fenômeno infanto-juvenil envolto na lógica do consumo como
prestígio social que se propagou pelas redes sociais.
A reação das classes médias,
administradores de shoppings e polícia militar foi discriminatória. Houve
tentativa de criminalização, disseminando a falsa informação que os rolezinhos
eram arrastões, promovendo furtos e agressões. Não houve registro e tanto a PM,
quanto administradores dos shoppings onde ocorreu o fenômeno negaram qualquer
situação anormal, além da correria e gritaria dos jovens que se reuniam em
alvoroço.
A intolerância revelou mais uma
faceta da transformação social porque passa o país. Talvez, o fenômeno dos
rolezinhos tenha sido dos mais reveladores e agudos sinais das mudanças sociais
e seus impactos sobre nossa propalada cultura da tolerância e convivência entre
diferentes.
Enfim, parte do Brasil escondido
mostrou a sua cara. Já é o suficiente para falarmos bastante deste assunto.