domingo, 28 de agosto de 2011

Coluna de Fernando Dantas sobre Antônio Barros de Castro


O artigo é grande, mas vale a pena. A melhor homenagem a este economista que foi presidente do BNDES no período da gestão Itamar Franco e que faleceu na semana passada, de maneira abrupta:

Castro, muito além do conflito ideológico
25 de agosto de 2011
Fernando Dantas

Tive o privilégio e o prazer, ao longo dos últimos dez anos, de fazer uma série de longas entrevistas para o Estado de São Paulo com Antônio Barros de Castro, professor emérito da UFRJ e ex-presidente do BNDES (1992/1993), falecido de forma inesperada no último domingo. Na grande maioria dessas ocasiões, eu estava acompanhado de Suely Caldas, colunista do Estado, ex-diretora da sucursal do Rio do Grupo Estado e grande admiradora do trabalho de Castro.
Ontem (terça-feira), ainda sob o choque da notícia, puxei nos arquivos do jornal e reli todas aquelas entrevistas. E esse panorama retrospectivo só reforçou a minha visão positiva sobre o legado intelectual do professor, e me fez notar também o seu grande poder de antevisão.
O pensamento mais recente de Castro poderia ser resumido como o de alguém que considera a estabilidade macroeconômica e o choque de abertura da economia brasileira nos anos 90 condições necessárias, mas não suficientes para o desenvolvimento do País. Nas suas palavras, em entrevista de 2005: “Políticas macroeconômicas severas, particularmente na parte fiscal, são comuns tanto na Coreia e China quanto em países que vegetam décadas na estagnação, como Portugal de Salazar. Sempre fui a favor do rigor fiscal, e contra o ‘pau na máquina’. Mas isto só não basta.”
O economista achava que um dos complementos fundamentais era uma política industrial, mas a concebia de forma muito distinta da defendida pela grande maioria dos desenvolvimentistas.
Defensor do período Geisel, de intervenção pesada e montagem de um parque industrial de insumos básicos e bens de capital, Castro considerava que esta era uma etapa encerrada da estratégia industrial brasileira. A nova política, ele costumava dizer, não era para preencher lacunas, e não deveria reeditar o antigo enfoque setorial.
Já em dezembro de 2001, Castro dizia que o Brasil era um país “onde a cultura industrial encontra-se assimilada, disseminada, dominada”. Dessa forma, a nova política industrial não era mais “para criar empresas e levantar fábricas (embora ele ainda admitisse uma exceção para a eletrônica)”. Para ele, o novo foco era o de “estimular a criatividade, apoiar inovações, socializar riscos, promover parcerias – uma política mais fina e leve”. E, quando falava de inovação, o economista tinha uma conceituação ampla, que ia desde alta tecnologia até processos produtivos, design, marketing, desenvolvimento de marca, etc.
A sua nova visão de política industrial foi, aos poucos, mesclando-se a sua interpretação da emergência da China na economia global. Tanto num caso como no outro foram diagnósticos precoces, da primeira metade da década passada ou talvez até antes.
Em 2003, ele afirmava que “a visão setorial não capta o dinamismo econômico que o Estado deve incentivar; o que importa nesta nova realidade é ter projetos, processos e produtos inovadores, voltados ao mercado externo, que pela diferenciação alcancem o ‘preço-prêmio’, e escapem da brutal competição de custos de chineses, centro-americanos e vietnamitas”.

Efeito China
Em 2007, ele falava do “efeito China” em termos mais amplos, e com percepção clara da questão, hoje intensamente discutida, do crescimento puxado pelas commodities encarecidas pela demanda chinesa: “Há a pressão competitiva sobre as economias maduras, que transferem suas unidades industriais menos sofisticadas para a China, e a aceleração do crescimento de países bem dotados de recursos naturais. Isto explica por que tantos países, incluindo África e América Latina, estão tendo desempenho tão bom. É o crescimento no vácuo da China, com sua demanda explosiva por commodities básicas”. Nessa mesma entrevista, Castro demonstrava preocupação com a doença holandesa, definida por ele como a situação na qual “o câmbio valorizado, provocado pelo boom de exportações ligadas aos recursos naturais, reduz ou anula os retornos dos segmentos não beneficiados pelo mesmo efeito”. A sua resposta ao problema, porém, não era a da defesa e da proteção, mas sim “partir do impulso da China e ir muito além dele”.
Assim, uma das saídas era a de “dar mais complexidade às atividades voltadas aos recursos naturais, criando um sistema de desenvolvimento de tecnologias em torno da exploração daqueles produtos primários”. O problema, evidentemente, era como fazê-lo.
Em 2006, com Lei da Inovação recém-regulamentada, Castro dizia que “o Brasil está constituindo um sistema nacional de inovação, que ainda está pouco articulado, mas aponta na direção correta”. Em maio de 2009, na sua última longa entrevista ao Estado, o professor explicava de forma mais detalhada o que tinha em mente: “O Estado brasileiro está bem equipado, mas é preciso entender que a sua função não é atender a demandas de empresas, mas induzir cooperações. O Estado não deve ser um balcão. Ele está sendo muito demandado pelas empresas, mas são demandas essencialmente de defesa, de proteção, mesmo que razoáveis”.
Não que o economista tivesse renunciado totalmente à ideia de proteção. Em 2006, ele alertava que “se partirmos para importar maciçamente o mais barato, vamos desfazer as cadeias locais, e o País tem um sistema industrial que não deveria ser desmontado”.
Feita essa ressalva, porém, fica claro na entrevista de 2009 que a essência da sua estratégia não era a defesa, mas sim olhar para frente: “Cabe aos poderes públicos ajudar a encaminhar soluções não para a sustentação do passado, mas sim para o futuro, levando em conta que, na flexibilidade tecnológica atual, é absolutamente impossível explorar todas as possibilidades – a seletividade é o xis da questão.” Assim, continuava, “no médio e longo prazos, a verdadeira proteção vem do avanço”.

Governo Lula: entusiasmo e críticas
A estratégia brasileira no mundo “chinocêntrico”, como costumava dizer, variava desde a exploração de produtos econômicos, mas de qualidade, para as classes populares ascendentes até “a pletora de oportunidades com que se defrontam as nossas empresas – o etanol ou, melhor dizendo, o canavial como coletor de energia solar; a tecnologia da informação; o software brasileiro; o núcleo eletromecânico; e muitas outras”.
Aliás, no quesito classes populares, vale um parêntese. Em entrevista de 2001, com formidável poder premonitório, Castro já afirmava que “o Brasil está a meio caminho da revolução de consumo das massas; em cada arranco da economia, aflora este mercadão ávido, moderno”.
O economista ficou muito entusiasmado com a eleição de Lula, pelo que percebeu como uma mistura de responsabilidade e prudência macroeconômica com uma “face agregadora insuspeitada”. Para ele, “Lula parece se encaixar muito bem neste novo padrão, no qual o Estado é um apoiador, difusor de informações, provocador, animador e, eventualmente, socializador de riscos”.
Ao longo do governo Lula, porém, o seu espírito crítico aguçado viria a prevalecer em diversas ocasiões. Em 2005, criticou o que via como a suposição “alojada no âmago da política econômica brasileira” de que o potencial de crescimento era de apenas 3% a 3,5%. Para ele, essa perspectiva de expansão era alcançada com “retoques, racionalizações, aprendizado e pequenos investimentos por parte das empresas”, mas não as levava a investir em novas fábricas. A crítica, evidentemente, era à política monetária, que Castro via como excessivamente conservadora naquele momento.
O tempo provou que ele estava correto no que diz respeito ao potencial de crescimento, que hoje é estimado em pelo menos 4% pela maioria dos economistas.
Aliás, desde a primeira das nossas entrevistas com Castro, em 2001, ele apostava na capacidade de crescimento mais veloz da economia brasileira. Embora tenha errado no varejo ao prever em dezembro de 2001 que o País superara a fase de “stop and go”, já que ainda haveria a derradeira e pior crise provocada pelo pânico eleitoral de 2002, Castro acertou no atacado ao prever que os “voos de galinha” estavam no fim.

Desafio do pré-sal
Mas a maior divergência do economista em relação aos governos petistas se deu justamente na sua principal área de interesse, a política industrial. Castro, que via méritos na política atual de inovação e tecnologia, conduziu essa discordância da forma discreta e elegante que lhe era característica. Manteve laços diplomáticos e de respeito mútuo com Luciano Coutinho, presidente do BNDES, que se tornou o principal mentor da política industrial a partir de 2007. Castro, inclusive, foi diretor de planejamento do BNDES entre 2005 e 2007, e assessor sênior posteriormente.
Para os que o conheciam, porém, estava claro que a política industrial de financiamento maciço a grandes grupos de setores tradicionais não era o que Castro tinha em mente. Com o advento do pré-sal, um tema que, junto com a China, dominou sua reflexão nos últimos anos, essa diferenciação tornou-se mais clara.
Na entrevista de 2009, o economista não poderia ter sido mais explícito ao criticar alguns dos objetivos complementares perseguidos pelo governo no âmbito da exploração do pré-sal: “Se formos meramente fazer estaleiros, produzindo com projetos e máquinas em grande parte importados, ou refinarias, que são um negócio quase fechado, e que já sabemos fazer (…) teremos, sim, problemas de sobrevalorização cambial, (…) tributários e fiscais”. Castro, na verdade, associava estas alternativas a um ritmo mais rápido de exploração do pré-sal, ditado pela demanda externa.
A sua preferência era a de “buscar os avanços que geram mais futuro, mais conectividade, no sentido de que vão espraiar efeitos positivos”. Neste caso, “o ritmo (de exploração do pré-sal) tem de ser encontrado em função de todas as oportunidades, acertando-se o passo com o conjunto de outras transformações simultâneas da economia”.
Ele citou, como exemplo de oportunidades do pré-sal, novos materiais (aços especiais), automação, software, motores, helicópteros e projetos de engenharia. Mas, para o economista, “tudo isso tem aprendizado, toma tempo. Então uma coisa é produzir 70 bilhões de barris suavemente distribuídos ao longo de 30 anos, outra coisa é ter um pico, uma explosão aí por 2020, e depois um abrupto declínio a partir de 2025″.
(...)

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