domingo, 20 de junho de 2010

Artigo da Semana: o papel dos dossiês

O papel dos dossiês na política
Por RUDÁ RICCI

1. A mídia como fim político
Em 1967, Guy Debord vaticina que havíamos mergulhado na sociedade do espetáculo. Uma sociedade marcada pela tirania da imagem e submissão ao império da mídia. A vida havia se tornado representação. Luiz Felipe Miguel, em artigo publicado na revista de sociologia política de Curitiba de 2004, retoma esta tese para reforçar que a mídia havia se tornado o principal instrumento de contato entre a elite política e o cidadão comum. Os discursos políticos rapidamente se despersonalizaram para ganhar contornos midiáticos. Em outras palavras, todo político fala para uma massa sedenta de ações épicas, de ataques demolidores, da reconstrução da arena onde cristãos deveriam ser devorados.
O interessante desta tese é que sugere que os mecanismos tradicionais do convencimento político estariam com seus dias contados. Se a mídia monta a agenda política, a criação de fatos políticos espetaculares seria mais relevante que as propostas programáticas. Se a mídia é a mediação com o eleitor, a figura do cabo eleitoral seria desnecessária. Talvez ficassem os reprodutores de interpretação dos fatos, aqueles que transfiguram o que se viu para o bem de quem apóiam. Mas nada mais.

O fato é que os dossiês de um candidato contra outro e a acusação de que existiria um dossiê em fabricação passa a ser, em si, um fato. Marcos Coimbra, do Vox Populi, publicou a pouco uma análise em que destaca como os profissionais americanos da política costumam se orgulhar de “fabricar balas”.

Os dossiês desde o fim do regime militar foram arma preferencial de intimidação pública em nosso país. Antônio Carlos Magalhães recebeu, inclusive, a alcunha de “rei dos dossiês”. Bradava aos quatro ventos que possuía dossiês desabonadores em relação aos seus desafetos. A acusação gerava um efeito devastador. O dossiê, seu conteúdo e sua existência, pouco importavam. De suas mãos nasceu o “dossiê Chiarelli”, dossiê montado por ACM contra o então senador Carlos Chiarelli. ACM era o homem mais forte do governo pós-ditadura, ministro das comunicações. Destacado para desmontar a CPI da Corrupção (1988) contra o governo Sarney vazou repetidas notas na grande imprensa sobre a existência de dossiês contra os senadores da CPI. Seu alvo preferencial era seu inimigo Jutahy Magalhães. ACM acusava-o de fraude de 50 milhões de cruzeiros contra o Banco do Estado da Bahia. O dossiê Chiarelli nasceu neste momento. O pedido de crime de responsabilidade contra ACM foi arquivado em fevereiro de 1988.

Os casos de ataque a partir de dossiê pulularam a partir de então. Atingiram Roseana Sarney no início deste século. Agora ataques de um e outro lado envolvem um misterioso dossiê tendo como foco o candidato tucano, José Serra. Acusações de que se fabricava um dossiê com dados que envolviam lideranças tucanas e quebra de sigilo fiscal. De outro lado, os acusados de fabricarem tal dossiê afirmam que se trata de matéria requentada, pois tais dados já teriam sido produzidos por fogo amigo tucano na disputa pela indicação do candidato do PSDB à sucessão de Lula.

2. A espionagem como ingrediente político
A espionagem foi o centro da diplomacia internacional durante a guerra fria, tendo a KGB e a CIA como protagonistas. Ali se cristalizou a produção de casos e arregimentações sem qualquer escrúpulo. A amoralidade passou a significar astúcia justamente porque a mentira e omissão eram elementos fundamentais para a infiltração e desmoralização do adversário (nem sempre efetivamente inimigo como se pretendeu propagar).
Há registros de práticas políticas semelhantes entre os hititas (que habitaram, séculos atrás, o território que hoje é a Turquia). Egípcios e hebreus capturavam informações sobre seus inimigos. Há registros de uma ação organizada durante o governo de Luís XIV. Também estão registradas lições a respeito pela lavra de Sun-tzu. E no “Breviário dos Políticos”, de Cardeal Mazarin. Todos sugeriam técnicas de subversão e espionagem. Contudo, até o final da Primeira Guerra Mundial, os serviços secretos eram frágeis e se concentravam praticamente na Alemanha.
Mas foi a guerra fria que catapultou o realismo político e a amoralidade ao status de guardião da governança. A URSS desenvolveu o Comitê Contra Atos de Sabotagem e Revolução (CHEKIA), perseguindo movimentos oposicionistas, anticomunistas. Em 1922, esta estrutura ganhou nova denominação: administração política do Estado, GPU. A partir da década de 1930, passou a ser conhecido como Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKVD), que tinha como objetivo central a articulação de busca de informações e perseguição aos oposicionistas. Chegou a atuar fora da URSS, como na perseguição a Trotsky, no seu exílio no México. Finalmente, em 1954, após uma profunda disputa na NKVD, surgiu a KGB, atuando diretamente no interior do Estado e no serviço secreto de vários países do bloco soviético. Passou a atuar, também, junto a sindicatos e na censura e uso político da imprensa.

Na guerra fria surgiu outra grande estrutura de espionagem de Estado, o Mossad, o Instituto para Inteligência e Operações Especiais de Israel). O Mossad foi criado em 1949, vinculado desde o início ao Primeiro-Ministro. A peculiaridade é que não há envolvimento de comandos militares.
Em 1984, o governo português criou o SIS, Sistema de Informações da República Portuguesa, tendo como objetivos centrais a captura de informações para a segurança interna e combate à sabotagem e espionagem. Para sua criação, contou com apoio da CIA.
No Brasil, foi criada em 1999 a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Embora oficialmente tenha objetivos estratégicos para o desenvolvimento, a ABIN é frequentemente citada em casos de espionagem política. A atividade de espionagem brasileira teve início bem antes, em 1927. Em 1946 foi criado o Serviço Federal de Informações e Contra-Informações (SFICI), que no regime militar ganharia nova sigla (SNI, Serviço Nacional de Informações), sendo acusada de ser membro da Operação Condor, que disseminava a perseguição de lideranças oposicionistas aos regimes autoritários da América Latina.
Silvio Costa, professor da Universidade Católica de Goiás, em artigo intitulado “O Sistema Echelon de espionagem global ou a lei do vale tudo”, expõe como os modelos de espionagem se espraiaram pelo mundo político e empresarial. O Sistema Echelon possui 120 satélites Vortex que inteceptam qualquer comunicação eletrônica ou digital, incluindo fax e correio eletrônico, em todo planeta. Costa cita outros exemplos, como o que envolveu, em 1993, José Ignácio López de Arriortúa, diretor de nível superior da General Motors de Detroit. Cita, ainda, o caso de um antigo oficial superior do exército alemão, Erich Schmidt-Eenboom, hoje diretor do instituto alemão de estudos estratégicos, que denunciou as pressões do governo Clinton em relação ao projeto “Hortênsia III”, base norte-americana de Bad Aibling, situada na Baviera, organizada a partir de dois centros de escuta compostos por antenas parabólicas de trezentos metros de diâmetro e de cem metros de altura; instalações de doze andares abaixo da terra que capturam frases a partir de palavras-chave.
Enfim, o realismo político do pós-guerra criou toda uma lógica de ação política que procura esquadrinhar adversários políticos e disseminar informações que o desmoralizem. Há toda uma herança que profissionalizou esta prática a partir da ação de Estado. Saberes técnicos, metodologias e estrutura organizacional que são, hoje, operadas no interior dos partidos e dos comandos de campanha eleitoral.
O fato novo é, talvez, que os relatórios de informações, popularmente cunhados de dossiês, passaram a ser, por si, um elemento de campanha. Seu conteúdo é menos importante que o anúncio de sua existência. O próprio anúncio é um fato político relevante, para incriminar aqueles que o produzem ou para disseminar dúvidas sobre o caráter daquele que é investigado.
O que denota o foco não meramente para a intimidação, mas para manipulação da mídia. A novidade atualiza uma prática milenar da disputa política. Cardeal Mazarin, citado neste artigo, sugeria, já no século XVII, que seria necessário saber tudo, ouvir tudo, ter espiões por toda parte, mas sempre tomando prudência no uso das informações obtidas porque quem é vigiado odeia saber disto. Sustentava que o melhor seria espionar sem se fazer notar. Foi-se o século XVII e tal precaução. Ao contrário, hoje a versão é tão mais importante que o fato político. Aliás, nem mesmo a versão é tão importante. Basta disseminar a dúvida sobre algum dado aparentemente omitido pelo adversário. E a festa está feita. Com o apoio e interesse da grande imprensa.

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