sábado, 13 de março de 2010

Meu artigo na Folha de SPaulo de hoje (Tendências & Debates)

A saída não é o isolamento
RUDÁ RICCI

O CASO recente em que a Justiça de Timóteo (MG) condenou pais que retiraram seus dois filhos adolescentes da escola para ensinar-lhes em casa, prática que nos EUA é conhecida como "homeschooling", abre um importante debate sobre o papel da educação brasileira ("Juiz condena pais por educar filhos em casa", Cotidiano, 6/3).
O juiz apoiou-se no artigo 55 do Estatuto da Criança e Adolescente, que obriga pais a matricular seus filhos na escola. Mas a questão não se atém à interpretação da lei. Ela é mais complexa e merece maior reflexão. Destaco quatro pontos que merecem maior aprofundamento:
1) Nossa cultura privilegia a responsabilidade da comunidade. É o oposto da cultura anglo-saxônica, que imputa ao indivíduo em qualquer idade a responsabilidade e a punição de seus atos julgados improcedentes. Em países latinos como o nosso, compreende-se que os adultos e a comunidade são responsáveis pela passagem da criança à vida adulta. Daí que um ato infracional de uma criança é depositado como responsabilidade de seus pais ou responsáveis. No caso dos adolescentes, a situação é mais complexa: considera-se que são responsáveis por seus atos, mas não imputáveis, justamente porque ainda transitam para a vida adulta. As medidas socioeducativas são ações de reeducação e socialização.
2) Esse desconhecimento atinge mais fortemente a classe média brasileira. Estudo recente de Amaury de Souza e Bolívar Lamounier apresenta um quadro estarrecedor, em que a família aparece como o mais importante agrupamento social confiável (para 85% dos pesquisados), superando em muito o segundo, de amigos (confiável para apenas 43%). A participação em organizações sociais é praticamente desconsiderada. Esse é um elemento cultural que compõe a "ideologia da intimidade", em que se desconsidera a solidariedade societária, as instituições e os espaços públicos. O caso de Timóteo reforça, na prática, a resolução de problemas com as políticas públicas pela própria família. No limite, estaríamos nos desgarrando socialmente, esgarçando a sociedade em ações individualistas.
3) Há outros exemplos que poderiam ter gerado inspiração nos pais no caso de Timóteo e que também são originários dos EUA, como é o caso da Charter School, escolas administradas por pais que são avaliadas periodicamente pelo Estado e até mesmo recebem subvenção pública. Mas essa opção não faz parte da cultura da classe média brasileira porque ela desconfia de tudo o que não é família.
4) O mais grave, contudo, é a banalização da educação como prática ao alcance de não profissionais. Tão grave quanto a situação da educação pública é a saúde e a segurança públicas. Mas não houve nenhum movimento de cidadãos para operar os filhos em suas próprias residências ou para perseguir bandidos com armas privadas. O que faz uma família acreditar que sabe educar seus filhos em suas casas, desconsiderando a formação de tantos profissionais da área, sem que tenham habilitação, estudo e experiência? Por que não criamos uma articulação de pais para lutar pela melhoria da educação? Por que não se pensa o futuro dos outros filhos, dos brasileiros desconhecidos por nós?
A educação é um ato solidário e de socialização. Autores reconhecidos, como Lev Vygotsky, comprovaram o quanto estímulos de turmas heterogêneas criam situações de desenvolvimento de muitas áreas da inteligência humana, além de desenvolver a tolerância diante do diferente. A educação restrita ao seu próprio lar é pobre e meramente instrumental.
Vivemos um período de banalização de tudo o que é público. Não percebemos o efeito bumerangue, que nos atinge em cheio, assim como atinge o futuro de nossos filhos. A saída isolada, de mero benefício aos membros de nossa família, a redução da educação ao sucesso individual é uma triste declaração de falência de nossa sociedade, da esperança de viver juntos, entre diferentes que se respeitam e que constroem soluções coletivas.
Talvez esses pais de Timóteo não merecessem punição em virtude de sua boa vontade e intenção. Mas eles erraram e não podem ser exemplo para nenhuma criança ou adolescente.

RUDÁ RICCI, 47, doutor em ciências sociais, é consultor educacional do SindUTE-MG (Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais) e do Sinesp (Sindicato dos Especialistas de Educação do Ensino Público Municipal de São Paulo).
rudaricci.blogspot.com

3 comentários:

jonaya disse...

Bom dia,
entendo que a socialização é muito importante, porém a ação desses pais é muito mais política e potente do que manter seus filhos nas escolas que temos hoje. Trabalhei por cinco anos numa escola publica da periferia de SP e posso te afirmar que um dos maiores problemas não é a ausência dos pais na escola, mas a ausência deles como mestres para seus filhos. A equação se forma nesse jogo de se ausentar do trabalho que é educar um ser humano. Todos temos a responsabilidades de educar.
abs,
Jonaya

Rudá Ricci disse...

Jonaya,
Não acho que seja uma ação política, pelo pouco que conversei com o pai. Acho que foi mais uma ação de quase desespero ou raiva. Se for ação política, vai enfrentar um ataque muito mais potente de todas entidades de defesa dos direitos da criança e adolescente. Pode ter certeza. E não sei se estará preparado. Em outras palavras, será um tiro que sai pela culatra.
Tenho a impressão que os dois fenômenos se articulam: os pais são ausentes, na escola e na educação dos filhos. Um dado para reforçar sua análise: a maioria dos casos de atos infracionais violentos cometidos por adolescentes é vinculada ao tráfico de drogas, em especial, o crack (uso ou comércio). Ao aprofundarmos o estudo sobre o perfil deste infrator, descobrimos que a entrada para o mundo do tráfico se deu pelo uso da cerveja. E quem foi o aliciador para beber cerveja entre 10 e 12 anos? O pai ou tio.
De qualquer maneira, o local da socialização humana é (e sempre foi) a escola. Não podemos jogar o bebê com a água do banho. Desde Roma e Grécia antiga, os adolescentes saíam do convívio familiar para estudarem em internatos.

Formiga disse...

Boa tarde,

Quando saí do Brasil em 1984 com meus tres filhos de 7,10, e 15 anos a bordo de um veleiro me tornei professora dos três.Imagine quantas críticas recebi ao agir dessa forma. Anos depois fiz a mesma coisa por minha filha Kat.
( que infelizmente faleceu aos 14 anos.
Numca me arrependi de te-los educado fora da escola, pois hoje meus filhos- os 3- sao pessoas de sucesso no que escolheram como profissao ou carreira e o mais importante sao felizes em suas vidas!!!

http://www.plenarinho.gov.br/educacao/Reportagens_publicadas/familia-schurmann-e-o-ensino-a-bordo-de-um-barco
O fundamental é nos preocuparmos em dar um ensino melhor para todos os brasileiro!
Obrigada,
Heloisa