quinta-feira, 3 de abril de 2014

Resenha de Bruno Cava do livro Nas Ruas

Entre estilos de vida e mobilização de base, o livro de Rudá Ricci e Patrick Arley
Resenha de Nas ruas; a outra política que emergiu em junho de 2013, de Rudá Ricci e Patrick Arley. Belo Horizonte: Letramento, 2014.
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O PT envelheceu, mas Rudá se manteve suficientemente jovem para abrir-se ao evento do levante de 2013. Seu blogue tem sido uma referência de reflexão política, diferenciado em relação às neuroses que piolham na cabeça da esquerda brasileira, quando o assunto é manifestação. Se boa parte dos comentadores, sentindo-se ameaçada em sua identidade, não perde uma chance de escandalizar-se com o risco de fascismo (retrocesso, caos, golpe etc), engrossando o coro de desqualificação e eventualmente criminalização das lutas; Rudá tomou o sentido oposto. Como tem de ser um pensamento que se coloque na margem esquerda e, por isso, se veja impelido a radicar-se no tempo histórico, naquele em que se vive intensamente, suas transformações, oportunidades e linhas de fuga.
Nas ruas, com fotos de Patrick Arley, resulta de uma pesquisa com as redes de organização do ciclo de protestos disparado em junho, concentrado em Belo Horizonte (“estudo de caso”). Parte do livro se dedica a mapear dinâmicas de encontro, debate, conjunção e formulação em BH, sob o rugido alucinante de passeatas, ocupações e eventos político-culturais daqueles dias. Rudá e Arley saíram de casa para pesquisar os germes de um movimento de novo tipo, que as forças eleitorais não conseguiram capitalizar. O que eles descobriram não está em nenhum manual de juventude partidária.
O livro não exalta os protestos. A delícia da manifestação, não poder ser dirigida, é também uma limitação. Se, por um lado, a horizontalidade reivindicada confere grande liberdade de participação, por outro, corre o risco de devorar a própria pauta ao fechar-se sobre si mesma, autofágica. Se, por um lado, a rejeição do campo institucional frustra as tentativas de captura por aparelhos partidários ou empresariais, por outro, corre o risco de ignorar chances de afetar e regenerar as instituições existentes. Rudá está preocupado seja com o fechamento institucional diante das manifestações, operado por uma esquerda antiprotesto cada vez mais terrorista, seja com o desprezo ou a incapacidade de provocar e aproveitar respostas institucionais, por parte dos ativistas.
Mas se o livro reconhece a capacidade de reorganização dos movimentos diante dos impasses, graças à vitalidade e aprendizado contínuo, essa avaliação não vale em relação à esquerda plantada no governo Dilma e no PT. Aí, Rudá é bem realista: os ativistas deveriam mesmo se precaver para o pior. Foram anos demais dando as costas às redes de militância, maceteado por um modelo operado desde cima, mediante pesquisas quantitativas, índices macroeconômicos e publicitários. O militante petista cedeu lugar ao gestor público; o desejo de libertação substituído pela reponsabilidade gerencial. Os congressos, núcleos e conferências  se tornaram rituais rigorosamente burocráticos, sem qualidade criativa. É a indigência de uma esquerda de empreendedores estatais, que incorporou à estrutura de estado o que deveria exprimir forças vivas de antagonismo e reinvenção.
O resultado disso é um déficit de representação cada vez maior, entre os poderes instituídos e a potência social. Enquanto as instâncias representativas seguem fundadas sobre  um esquema verticalizado, o “padrão societal” mudou, organizado mais horizontalmente, por meio de redes de liderança distribuída, onde todos passam a desfrutar seu espaço próprio de autonomia e expressividade. Uma transformação, na verdade, que é global, porque repercute formas gerenciais do capitalismo no mundo todo. Mas que, aqui no Brasil, também está associada ao esgotamento de um modelo de inclusão social. Rudá está falando do “lulismo”, um pacto de governabilidade que, aliado ao capital, promove um aumento de renda e acesso ao consumo, mas vem desacompanhado de redistribuição do poder político, outros direitos, terras.
Desde 2003, o pacto lulista, embora tenha massificado alguma renda e consumo, não enfrentou as estruturas classistas e racistas que historicamente reproduzem a tremenda desigualdade no Brasil. Isto significa que, apesar da inclusão social, o governo se distanciou das transformações do “padrão societal”. E como não há vazio de poder, a lacuna é gradualmente preenchida por modos mais diretos de organizar e agir políticos, “por fora” dos esquemas da representação. Até explodir em junho de 2013, “fora e contra”, contagiado pela peste global de movimentos antirrepresentativos.
Em contrapartida, Rudá enxerga elementos negativos da transformação do “padrão societal” nos grupos e sujeitos que também estão nas ruas. Atualizando uma crítica antiga aos movimentos sesseitoitistas, o problema estaria no caráter excessivamente “intimista”. Em vez do trabalho racional de construção política, ganham prioridade um culto à expressividade como fim em si mesmo, à estética, ao hedonismo, ao cultivo de “estilos de vida” — práticas apenas aparentemente subversivas, porém facilmente acomodáveis na cultura consumista que, para o autor, marca a condição pós-moderna. Disseminada em larga escala, a tendência intimista conduz a manifestações em que tudo é expresso, onde todos têm voz e podem desaguar imediatamente suas indignações e particularidades. Porém, nada acaba sendo verdadeiramente construído, como legado duradouro e sólido, legado coletivo e coletivamente trabalhado. Nessa tendência intimista, o protesto se resolve num “surto catártico”, numa imagem macbethiana: cheia de barulho e de fúria, mas sem significar nada.
Some-se a isso, segundo Rudá, o ressentimento da velha classe média brasileira diante da invasão de seus lugares de status (universidade, aeroportos, shoppings), bem como o aumento do “conservadorismo popular”, por culpa do próprio lulismo. Tudo computado, está comprometida a construção racional de uma força política alternativa ao esquemão dominante das instituições.
O que talvez possa ser virado do avesso, nessa reconstrução das razões sociais do levante de 2013, seja o ponto de vista. Rudá parece tomar alguns processos históricos e políticos com uma primazia pelo lado da negatividade, vendo primeiro de tudo a captura das potencialidades, conforme novos esquemas de controle e desmobilização política.
Os movimentos de 1968, é verdade, foram parcialmente recuperados pelo capitalismo global, ao longo das décadas de 1970 e 1980. Veja-se, por exemplo, o misto de análise cultural e narrativa socio-histórica de Luc Boltanski e Ève Chiapello, no clássico O novo espírito do capitalismo. Não é novidade que o marketing de empresas “2.0″ esteja capitalizando a energia de lutas e desejos políticos, as chamadas “externalidades positivas”: o que a empresa não gera, mas sabe parasitar, agregando valor simbólico às próprias marcas. Além disso, não há dúvida, o lulismo serve à expansão da franja capitalista no Brasil, tendo conseguido subsumir enorme fração da população aos circuitos de trabalho e consumo, dinamizando a economia, e produzindo ainda maiores extratos de valor para o capital.
Contudo, embora tudo isso esteja correto, os mesmos processos com efeito de escala estão atravessados por contradições e múltiplas valências. Habemus resistência, “dentro e contra” o avanço do capital. Se, com efeito, os movimentos sessentoitistas (que o livro, pensando BH, chama do tipo “estilo de vida”) foram recuperados e tornados brands, a mudança no padrão societal também exprime uma vitória dessas lutas. A substituição do modelo verticalizado de cúpulas e patrões, pela gestão em redes horizontais de liderança distribuída foi, do ponto de vista do trabalhador, uma vitória. Uma vitória cujo sentido, obviamente, é reposto à disputa no momento seguinte às transformações. No entanto, uma vitória ainda. A classe capitalista não precisava mudar a forma de governança não tivesse sido forçada a adaptar-se aos novos tempos, pelos movimentos e lutas daquela época. Não se pode jogar fora o bebê com a água, como se as transformações, inclusive comportamentais, criadas pelas lutas ao redor de 1968 não tivessem seu lado positivo — o movimento negro ou LGBT, a descolonização, o feminismo, a revolução sexual, a cultura como trincheira da luta de classe.
De maneira similar, a inclusão social do lulismo não pode ser entendida apenas como absorção pela “sociedade de consumo”, que tudo despolitiza. O consumo não se reduz a consumismo, porque ao fim e ao cabo alguém consome sem ser consumido. Quem consome é agente. O âmbito do consumo pode ser reapropriado como ferramenta de luta. No âmbito do consumo, também está embutida na relação de produção que cada um estabelece com o mundo.
Por exemplo: a massificação do acesso à internet e telefonia, bem como a popularização de celulares, wi fi e hardware, nos últimos 15 anos, também explicam a velocidade e a difusão dos protestos de 2013. As redes sociais, celulares e streamings estão tão incorporados ao cotidiano de relacionamentos, amizades, trabalhos e autoprodução como pessoa que, — uma vez iniciado um processo político de indignação e mobilização, — passam imediatamente a servir como armas de resistência. Inclusive, se for o caso, contra aquele modelo de inclusão social, consumo ou trabalho que viabilizaram a posse das ferramentas em primeiro lugar.
O novo “padrão societal” não pode ser limitado a novas técnicas de gestão, ao estado da arte da dominação do capitalismo contemporâneo. Trata-se, na realidade, de uma mutação do modo como as pessoas se organizam e cooperam na vida, o que tem uma dimensão positiva, uma vitória parcial. Por isso, não é correto, politicamente, enxergar como antagonismo a diferença entre movimentos sessentoitistas (“estilo de vida”) e “mobilização de base”. A resistência de Parque Gezi, na Turquia, une desde a cultura ecumênica antiautoritária dos anarquistas até grupos ecologistas, passando por uma vasta cartografia de cores militantes. A Praça Tahrir, no Egito, propiciou uma coalizão improvável de lutas campesinas, feministas, ativistas digitais, sindicatos e islamistas como os da Fraternidade Muçulmana. Nas ocupas brasileiras, em 2011, se misturaram moradores de rua e arte-ativistas, anarquistas mais tradicionais e coletivos ligados à “pedagogia do oprimido”, e assim por diante. É claro que as muitas clivagens e diferenciações internas — inclusive entre artista e política, entre amor e disputa, entre classe e raça etc — se tornam um problema de organização, de construção de novos platôs de linguagem e ação comum, na medida em que as diferenças dobram e se redobram entre si. Mas o maior antagonismo, e isso fica claro no momento da repressão, continua sendo entre o movimento e o estado. Ou seja, entre a teia complexa de alternativas e um organismo fechado e engessado de gestão, acesso e propriedade, verticalizado, e no que as pessoas cada vez mais não se sentem representadas.
O ponto que eu questiono reside na concepção demasiado moderna esposada por Rudá, para sua leitura dos protestos. O que incide sobre o problema da auto-organização do movimento. Para ele, a política ainda é o espaço do universal. Existe ainda aí um modelo vertical que aparece nos próprios conceitos e métodos. A política almeja pelo público e precisa integrar os interesses privados, o múltiplo das expressões particulares ou individuais. A razão pública se forma pela elevação da esfera do privado. E quando vivenciamos épocas em que o público está ocupado pelo interesse privado, o problema passa a ser que o público ainda não é “público” o suficiente. Nessa lógica, sempre haverá alguma instância superior que deva ser desinteressada o bastante para enunciar o Uno, diante das contradições irresolúveis do Múltiplo. O ideal regulador continua sendo uma visão de política como resultado da sucessiva integração dos interesses particulares em interesse geral, o seguro patamar de crítica da maturidade de uma luta. Noutras palavras, as lutas sociais precisam perseguir a estratégia para fazer a luta política. Daí que Rudá pode acusar de conservadorismo as classes médias, porque defendem sempre seu próprio umbigo, mas também o “conservadorismo popular”, porque com o lulismo os pobres estariam mais debruçados em sucesso no capitalismo, cultivar laços familiares e consumir, do que em ocupar e disputar a esfera pública.
Com isso, Rudá vai questionar a cultura intimista, a autoexpressividade imediatista e o culto ao estético como despolitizadores, uma vez que não contribuem para a formulação integrada de pautas e sujeitos políticos. Por isso também vai criticar o conceito de comum, manejado pelo autonomismo marxista, para explicar o caráter constituinte do atual ciclo de lutas. O comum ainda cairia no vício da “cultura intimista”, agora com viés comunitário, autorreferencial, e insuficiente para forçar mudanças institucionais. Ocorre que o comum, em sua vertente neoliberal (geralmente declinado no plural, como “commons” ou bens comuns), já é uma aposta séria de institucionalidade, pelo menos do lado do capitalismo. O comum já está sendo institucionalizado pela policymaking de vários governos. Basta ver o trabalho extensivo e muito influente de Elinor Ostrom, a nobel da economia de 2009, apenas um numa sequência infindável de teorias e propostas, que aos poucos vão se tornando políticas públicas. O conceito de comum, na vertente de luta, admite que o capitalismo hoje já reconhece os bens comuns e a produção do comum, a sua enorme riqueza, exatamente para conseguir explorá-los melhor, para mantê-los sob controle. O comum é o terreno do conflito e não alguma panaceia redentora.
O problema, e aí eu concordo com Rudá, continua ser como derivar institucionalidades dos novos movimentos e lutas políticas. Para mim, é o problema de como derivar instituições do comum, que frustrem as formas de exploração, velhas ou modernas, horizontais ou verticais. E não simplesmente como obter respostas institucionais do estado, ascendendo à esfera pública. É preciso transformar a esfera pública e destituir o estado de seu monopólio. Me parece que todo o ciclo de lutas globais disparado em 2011 está mais voltado a recusar a representação como forma política, em vez de simplesmente criticar os conteúdos que estão preenchendo essa forma. Isto é, trata-se de ir além da modernidade e seus polos público x privado, elevação x bases, para não acabar dependendo de ainda outra figura do patrão, do pai, de Deus. É bem mais ousado.
Portanto, a meu ver, o que está em jogo é uma proposta construtiva de imanência onde os movimentos e lutas de novo tipo gerem, por si mesmos, as alternativas. Isso que está sendo tentado, num enorme esforço, por movimentos desde o norte da África, as acampadas espanholas, o Occupy norte-americano, Egito, Turquia, Brasil 2013. As lutas sociais aí são imediatamente políticas, porque não aspiram pela elevação a algum outro patamar, mas a construir elas próprias outros níveis, outros platôs, não necessariamente reduzidos ao que hoje entendemos por “esfera pública”. Como organizar essa imanência, sem perder de vista o antagonismo diante das explorações e opressões, me parece ser o problema real indicado por este ciclo. Obviamente, estou me apoiando em vários outros autores que vivem esses protestos; para citar um, Michael Hardt.
Em síntese, a crítica conceitual de Rudá é contra um pós-modernismo fraco, incapaz de se sustentar diante do modernismo forte que é o estado. Desse jeito, os manifestantes vão acabar esmagados e todo o seu esforço amargamente dissipado. O movimento corre o risco de comer a sua própria cauda, se não fizeralguma coisa para disputar de forma mais eficaz a esfera pública. E esse alguma coisa passa pela necessidade de lidar com o problema institucional. Apesar disso, Rudá sente que existe um excedente pouco visível, uma latência em tudo isso que escapa de sua visão aquilina, e que ele não consegue enquadrar na visão moderna. No meio da mata, ou talvez debaixo da terra, tem alguma coisa se mexendo. Alguma coisa grande.

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