O
DIREITO À VIDA PÚBLICA
Rudá
Ricci, para o CRESS/MG
Um dos autores
liberais mais festejados nos últimos anos foi o economista indiano Amartya Sen.
Sua tese fundamental é que o desenvolvimento de um país está vinculado às
oportunidades que ele oferece à população de fazer escolhas e exercer a sua
cidadania, o que inclui a garantia dos direitos sociais básicos, como saúde e
educação, como também segurança, liberdades básicas, habitação e cultura. Sen
vincula de maneira original a noção de liberdade ao conceito de desenvolvimento
como sendo, simultaneamente, um processo e uma oportunidade. Introduz a noção
de cidadão como “agente” e define a pobreza e o desemprego como “privação de
capacidades básicas”[1].
O autor indiano é, até
hoje, referência para organismos internacionais. Sua definição cabe como uma
luva para compreendermos como, mesmo para aqueles que se apoiam no liberalismo
e, portanto, na defesa da propriedade privada e da liberdade de mercado, o que
se passa nas cidades brasileiras é amplamente reprovável, como privação das
capacidades básicas da vida humana.
O modelo de
desenvolvimento em curso, de forte inspiração rooseveltiana promoveu nos
últimos anos a nacionalização de políticas de infraestrutura repetindo os erros
do passado. Crescemos sem planejamento, ao bel prazer dos gestores locais que
acessavam convênios para demonstrar influência e capacidade gestora. Com 65% do
orçamento público concentrado na União, é fato que os municípios deixaram de
ter capacidade de investimento autônomo e se transformaram em gerentes de
programas federais. Contudo, a lógica de implantação dos programas de
desenvolvimento urbano foram, desde o início, excludentes e promoveram uma
ciranda que movimentou grandes empreiteiras e especuladores imobiliários. Segundo
Ermínia Maricato[2],
em 2009, a partir do lançamento do PAC II e do programa habitacional Minha
Casa, Minha Vida, teve início um boom
imobiliário de fortes impactos na dinâmica das cidades brasileiras. Em 2010, o
PIB brasileiro atingiu o impressionante patamar de crescimento de 7,5%. Ocorre
que o PIB do setor imobiliário foi de 11,7%. O investimento de capitais
privados no mercado residencial cresceu 45 vezes, passando de 1,8 bilhão de
reais em 2002 para 79,9 bilhões de reais em 2011. Os subsídios governamentais
foram generosos, atingindo 5,3 bilhões de reais em 2011. Com tal pujança e
bonança, todo esboço da reforma urbana que se expressava no Estatuto da Cidade
foi engavetado. O preço do imóvel disparou nos grandes centros urbanos: 153% em
São Paulo (entre 2009 e 2012) e 184% no Rio de Janeiro (no mesmo período).
Praças da Juventude e
tantos outros equipamentos urbanos e sociais foram se multiplicando ao longo
das cidades brasileiras sem observar qualquer preocupação com a reorganização
da ocupação do solo ou alteração dos custos de locomoção ou mesmo necessidade
de reestruturar a oferta de serviços públicos. Os prefeitos não pensaram no
futuro muito distante da próxima eleição.
A alegria contagiante
que envolveu empreiteiras e todo setor da construção civil motivou o que muitos
autores denominaram de “gentrificação” dos centros urbanos[3]. O termo, oriundo do
inglês (gentrification), traduziria a
intervenção em bairros, em especial centrais, modernizando velhas construções
urbanas para ocupação de empresas e população de alta renda. Tal modernização
arquitetônica e funcional desses territórios expulsou rapidamente a população
de baixa renda, de maneira direta ou mesmo em função da disparada dos custos
dos imóveis ou dos bens e serviços oferecidos naquelas localidades.
A nova dinâmica
desenvolvimentista foi potencializada com os megaeventos esportivos programados
para ocorrerem no Brasil a partir de 2013. Estudo do arquiteto Lucas Faulhaber,
da Universidade Federal Fluminense (UFF), estima que 64 mil famílias foram alvo
de remoções por obras de infraestrutura somente no Rio de Janeiro somente como
preparação da Copa das Confederações. Os doze Comitês Populares da Copa estimam
que 170 mil pessoas serão desalojadas em todo o país para a realização de
grandes projetos urbanos no contexto dos megaeventos esportivos. De acordo com Raquel Rolnik, relatora especial
da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Moradia Adequada e urbanista da
Universidade de São Paulo (USP), a primeira violação está no direito à
informação já que entidades de representação social têm dificuldade no acesso aos
planos de ações governamentais. As indenizações e realojamentos propostos
também podem ser vistos como violações já que o reassentamento em locais com
menor disponibilidade de serviços e emprego viola o direito de moradia
adequada, que inclui o acesso aos demais direitos humanos educação, saúde,
trabalho. Roknik também atenta para a falta de reconhecimento ao direito de
posse, assegurado pela legislação brasileira e por acordos internacionais
firmados pelo Brasil.
Na esteira desta
lógica desenvolvimentista desordenada, a opção pelos veículos individuais
agravou a vida urbana. Em 2011, o número de automóveis em doze metrópoles
brasileiras era de 11,5 milhões. Em 2011 quase dobrou, atingindo 20,5 milhões.
Maricato denuncia, por
seu turno, a acomodação de entidades e lideranças que até então lideravam o
movimento de reforma urbana em nosso país.
E é aqui que foco
minha atenção neste artigo.
Nas últimas duas
décadas, vivemos a implantação de um programa rooseveltiano, apoiado num pacto
desenvolvimentista que tem num vértice o Estado orientador e concentrador de
recursos públicos para investimento e que se desmembra em outros dois vértices:
a formação de um potente mercado consumidor (via aumento real de salário
mínimo, crédito subsidiado e programas de transferência de renda) e regulação e
orientação para investimentos privados (através da “carta de investimentos”
inscritos no PAC e empréstimos do BNDES).
Mas o programa
roosveltiano brasileiro acrescenta duas novidades em relação ao modelo original:
o financiamento de organizações populares e de representação de massas, como
organizações não governamentais, articulações por direitos civis e sociais e
centrais sindicais. Aqui está a origem para o que Maricato indica como
acomodação de lideranças sociais.
O programa
rooseveltiano também consolida uma antiga pretensão de governantes anteriores:
a coalizão presidencialista, que cria uma forte intimidade governista e
governamental entre Executivo e Legislativo. Mas, neste artigo, me concentro na
análise da absorção das entidades de representação social no interior do
aparelho de Estado.
No mundo sindical, o
movimento foi o mesmo que o observado na Europa e que recebeu a denominação de
neocorporativismo. O conceito sugere o ingresso das estruturas sindicais em
arenas e fóruns estatais que definem a agenda e prioridades governamentais. Na
prática, onde este fenômeno se instalou, ao invés de gerar real controle social
– ou participação – da base sindical, acabou por gerar distanciamento da cúpula
sindical em relação às suas bases. No Brasil, este fenômeno segue a passos
largos. Em 2012, as centrais sindicais receberam repasses federais da ordem de
160 milhões de reais referentes ao imposto sindical, o dobro das transferências
ocorridas em 2008, quando iniciaram os repasses. A maior parte dos recursos
fica com as duas maiores centrais do País, a Central Única dos Trabalhadores
(CUT) e a Força Sindical. Neste ano, a CUT recebeu R$ 44,5 milhões até outubro,
e a Força ficou com R$ 40 milhões. Os recursos representam entre 60% e 80% do
orçamento total das centrais. Destaca-se, ainda, a regulamentação, no mesmo
período, da participação de dirigentes sindicais nos conselhos de empresas
estatais federais. O jeton pago a cada conselheiro chega a 8 mil reais, caso da
Petrobrás. Há registros de jetons que variam de 3 mil reais (suplente do
conselho da Breasilprev) a 15 mil reais (conselho da Funpresp). Há, ainda, a
inversão do ideário sindical observado na gestão dos fundos de pensão que
passaram a adquirir ações de bancos privados e até mesmo indústria bélica.
No campo da ONGs, a
crise de financiamento externo aberto na segunda metade dos anos 1990 também
gerou uma inflexão política. No século XXI espraiou-se como solução à
sobrevivência dessas entidades da sociedade civil a assinatura de convênios com
órgãos estatais. Na prática, os convênios terceirizaram para muitas organizações
não-governamentais os serviços assistenciais antes executados pelo Estado.
Tal inversão foi
programada pelo governo federal. No início da primeira gestão Lula, o
participacionismo teve lugar certo. O programa Fome Zero foi entregue a
lideranças católicas, expoentes da Teologia da Libertação nos anos 1980. A
estrutura de gerenciamento do programa adotou a lógica da cogestão e foi
compreendida como escola de formação de cidadãos para o controle de políticas
públicas. O conceito de empoderamento foi fartamente utilizado neste período,
que significaria ação coletiva ou participação coletiva em espaços
privilegiados de decisões, ampliando o conceito de direito político. Assim, se
orientaria pela superação de qualquer dependência social e dominação política.
Era, obviamente, um discurso que confrontava o Estado patrimonialista. Contudo,
já no final do primeiro ano de gestão já era visível a mudança de foco do
núcleo dirigente. O programa foi entregue à gestão dos prefeitos, o que
provocou profundo descontentamento em Frei Betto e Ivo Poletto que logo pediram
afastamento das funções que assumiram no gerenciamento deste programa. As
razões do afastamento não deixam dúvidas nos livros que os dois protagonistas
publicaram meses depois de se afastarem do governo federal.
Outra iniciativa governamental
foi a instalação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), um
amplo conselho consultivo, composto por empresários e representação da
sociedade civil para análise e proposição da agenda nacional. As entidades da
sociedade civil foram unânimes em criticar a pouca efetividade de suas
sugestões e a escuta privilegiada que o governo fazia das proposições
empresariais.
Finalmente, esboçou-se
um frágil mecanismo de participação no controle do orçamento federal e
políticas sociais com a criação de Comitês Estaduais de elaboração do Plano
Plurianual (PPA) federal e apoio para realização de conferências nacionais
envolvendo uma ampla agenda temática. Foi a primeira e única tentativa,
abortada no segundo ano de gestão, do governo federal criar mecanismos de
controle social sobre a execução do seu orçamento.
Finalmente, o lugar
dos conselhos de gestão pública (setoriais ou de direitos) e as conferências
nacionais de direitos. Foram mais de 70 realizadas nos elaborado por Ana Claudia
Chaves Teixeira, Clóvis Henrique Leite de Souza e Paula Pompeu Fiuza de Lima
revelou o movimento errático desta novidade na gestão pública que tinha por
objetivo introduzir elementos de cogestão na tomada de decisão das políticas sociais brasileiras[4]. Os autores realizaram um
balanço das 74 conferências nacionais realizadas entre 2003 e 201052. Na
maioria dos casos, este evidente esforço de mobilização social não recebeu
nenhuma informação devolutiva pelo Estado, não se sabendo se suas resoluções
foram incorporadas efetivamente nas ações ou estratégias de governo. Poucas
conferências estão instituídas em lei, sendo sua vinculação com conselhos de
gestão pública ou com processos de planejamento como o Plano Plurianual (PPA) é
quase inexistente. O que se observa é a realização de eventos desconectados dos
calendários de formulação governamental, dificultando a possibilidade de
influência das propostas nos planos de ação estatal.
Em suma, vivemos no
último período, no que tange à participação da cidadania no controle ou gestão
de políticas públicas federais um duplo fenômeno desagregador.
De um lado, os canais
institucionais de participação perderam lugar no processo de tomada de decisão
e foram reduzidos à condição de meras formalidades burocráticas ou
administrativas da lógica de Estado. De outro, a absorção das entidades de
mediação social (estrutura sindical, organizações não-governamentais e
entidades confessionais) pelo aparelho de Estado interditou a mediação de
conflitos locais. Este era o papel fundamental desempenhado por tais entidades
desde a década de 1980. Dada sua capilaridade e multiplicidade de territórios e
segmentos sociais por elas atendidos, era possível criar um arranjo de demandas
das populações mais marginalizadas ou tomadas pelo sentimento de injustiça
social. Numa sociedade desigual como a brasileira, a coleta de demandas e
frustrações e transformação em pauta unificada é essencial para os órgãos
públicos orientarem sua agenda. Sem isto, as frustrações se multiplicam e se
fragmentam numa miríade de lamentações e tensões cotidianos (até mesmo
conflitos latentes).
Foi exatamente isto
que se percebe a partir de 2013.
O primeiro alerta
apareceu entre 18 e 19 de maio. Um boato dava conta da extinção do Programa
Bolsa Família. Em três dias, 920 mil beneficiários sacaram o saldo em suas
contas. A confiança nas pretensões do governo federal pareciam pouco sólidas.
Em seguida, em junho,
explodem os protestos de rua que em três semanas levaram milhões de brasileiros
a apresentarem um mosaico de demandas, pulverizadas e fragmentadas em cartazes
que expressavam desejos pessoais, no máximo grupais.
Os governantes se
assustaram. Não compreendiam o que se passava nas ruas. Compreensível.
Justamente porque as ruas expressaram, em síntese, o confronto entre o projeto
de Governo e os projetos de parte da sociedade que não possui canal de
expressão há pelo menos uma década.
As cidades tornam-se o
locus central deste descompasso.
Vivemos um projeto
desenvolvimentista executado à revelia das populações menos abastadas. Um
projeto conduzido por elites políticas e econômicas. Algo que remonta à
tradição política e conformação das políticas públicas de nosso país.
Os governantes se
assustaram – e ainda se assustam – com o grito polifônico das ruas. Não
entendem o que ocorreu após seus esforços para mudar o país e coloca-lo na
posição de potência econômica mundial. Não entendem porque, em última
instância, não estiveram nas ruas. Não dialogaram. E interditaram as
possibilidades de vida e projetos de família. Tutelaram sonhos.
Se ao menos tivessem
lido Amartya Sen......
[1] Cf.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade, São Paulo: Companhia das Letras,
2012. Páginas 34 e 36.
[2]
Cf. MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido!, In MARICATO, Ermínia et
al. Cidades Rebeldes. São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2013, p. 23 e seguintes.
[3]
O termo gentrification deriva de "gentry" e do francês arcaico
"genterise" que significa "de origem gentil, nobre". A
expressão da língua inglesa gentrification foi usada pela primeira vez pela
socióloga britânica Ruth Glass, em 1964, ao analisar as transformações
imobiliárias em determinados distritos londrinos. Outro autor que se tornou
referência nos estudos do fenômeno foi o geógrafo britânico Neil Smith, que
identificou os vários processos de gentrificação em curso nas décadas de 1980 e
1990.
[4]
Cf. TEIXEIRA, Ana Cláudia; SOUZA, Clóvis Henrique Leite & LIMA, Paula
Pompeu Fiuza. “Arquitetura da
Participação no Brasil: uma leitura das representações
políticas em espaços participativos nacionais”.
Texto para Discussão 1735,
Rio de Janeiro: IPEA, 2012. Originalmente apresentado no 35º Encontro Anual da
Associação Nacional de Pós‐graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs),
em Caxambu, em outubro de 2011, no Grupo de Trabalho (GT) Controles
Democráticos e Legitimidade.
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