POR Rudá Ricci
Recebo o anteprojeto de resolução da Conferência Nacional da
Democracia Socialista, possivelmente a tendência interna do PT com maior
capacidade de formulação política. Por este motivo, este documento orienta uma
leitura mais complexa dos cenários e estratégias (e até mesmo o ideário) do
partido que governo o Brasil há doze anos.
O que surpreende no texto é o fim da dialética como
orientação metodológica para análise da realidade para uma corrente fundada na
tradição marxista, mais precisamente, trotskista. A hipótese que parece mais
plausível para esta mudança interpretativa é o foco nas eleições e manutenção
do governo federal, o que subordina todas outras dimensões da vida social,
cultural e política a esta singela meta política. Para dar um tom épico a esta
disputa pelo voto, o documento procura valorizar um conceito frágil de “revolução
democrática”, algo que estaria em curso em nosso país desde a primeira vitória
de Lula.
O interessante é que ao longo do referido documento, toda
agenda sugerida como eixo central desta revolução em curso foi absolutamente
abandonada pelo governo Lula desde seu primeiro ano, em 2003. O documento se
revela, assim, um exercício de contorcionismo programático e interpretativo da
maior relevância porque sugere as dificuldades para militantes históricos e
sinceros do PT em se encontrar em meio à terceira via que se instalou no
governo federal.
O documento começa pela análise da conjuntura internacional.
Sustenta que o neoliberalismo ingressou, desde 2008, numa profunda crise,
embora a expressão concreta desta crise seja relativa em algumas regiões,
diferenciando-se ao longo do planeta. O significativo da análise feita nesta
primeira parte do documento é a constatação que tanto o movimento sindical como
os partidos de esquerda não conseguiram levantar resistências significativas ao
projeto conservador. Fica, contudo, a lacuna sobre os motivos para esta
ausência ou incapacidade das estruturas de representação clássicas. A lacuna é
extremamente relevante porque joga na penumbra o que poderia ser uma importante
crítica sobre a agenda ou até mesmo estrutura organizacional destas
instituições políticas. Não aprofundando, o documento abre espaço para a
proposição que fará mais adiante sobre o cenário nacional. Mas, ainda na
análise do cenário internacional, o documento da DS sugere que a América
Latina, “especialmente a do Sul”, continua sendo o território de avanços
alternativos ao neoliberalismo. Aqui começa a redução do mundo político às duas
possibilidades, transformando análise e disputa política numa expressão
raquítica da vida social. Não há uma linha sequer para diferenciar o campo
geopolítico do chavismo daquele que Lula tentou construir e que Dilma Rousseff
abandonou. Indiretamente o documento sugere uma linha de continuidade que
efetivamente não existiu. O lulismo disputou, efetivamente, a América Latina
com Chavez. Foram dois projetos distintos que traduziam trajetórias pessoais
antagônicas das duas lideranças: a militar e a sindical. Dilma, por seu turno,
optou pela orientação administrativista (ou gerencial), de natureza mais
técnica, nas ações diplomáticas o que, por sinal, se expressou na troca do
perfil do chanceler brasileiro.
Esta primeira parte do documento da DS termina sugerindo que
não há alternativa capitalista de superação da crise econômica. Porém, a
esquerda mundial encontra-se sob pressão do capital internacional. O que
poderia explicar a emergência de movimentos de contestação popular, de
inspiração neonazista ou anarquista, em grande parte da Europa. Mas o
documento, mais uma vez, se omite em relação às dificuldades da esquerda
clássica (tanto sindical, quanto partidária) em se apresentar como alternativa
ou mesmo como polo de reflexão sobre uma agenda de mudanças econômicas,
políticas e sociais. Daí, no item 14, o documento da DS tatear uma explicação
que começa assim: “talvez possa se falar em um cenário instável e polarizado
pela direita da crise do neoliberalismo”. Uma redação evidentemente insegura ou
excessivamente cautelosa que, nas entrelinhas, se apoia na inexistência do
protagonismo da esquerda clássica.
No item 16 do documento da DS, contudo, é apresentado um
esboço de estratégia ao sugerir os partidos institucionalizados aferrados às
regras do jogo, o que aponta para a alternativa da adoção de formas de
democracia direta e participativa e maior capilaridade dos partidos nos
movimentos sociais. Também sugere, no item seguinte, a “profunda erosão dos
valores e tradições socialistas e do mundo do trabalho”. Ora, esta poderia ser
a agenda para a esquerda brasileira, mas, como se verá adiante, é exatamente o
inverso do que o documento aponta efetivamente.
As dificuldades interpretativas, contudo, emergem quando o
documento se debruça sobre o cenário nacional. O primeiro erro grosseiro é
denominar o momento atual pelo que o Brasil passa de “revolução democrática”. O
conceito é impressionista e carece de qualquer profundidade analítica. Revolução,
tal como sustentou em inúmeros estudos por Florestan Fernandes, é processo de
transformação da ordem social. Ora, os governos lulistas criaram um potente
mercado consumidor interno e redefiniram o papel orientador do Estado nacional.
Mas, nem de longe, apontou uma mudança
na ordem social e política. Ao contrário, trata-se da adoção da agenda
rooseveltiana, tal como sugere André Singer num dos capítulos de seu “Os
Sentidos do Lulismo” e também desenvolvido em meu livro “Lulismo”. A melhor
tradução da agenda lulista é a formatação de um pacto desenvolvimentista, anos
luz de qualquer processo revolucionário. Um exagero semântico que a DS terá
dificuldades para justificar e emprega-lo na luta política concreta. Porque se
houve abortos nítidos que geraram defecções importantes nos dois governos de
Lula tiveram como motivação a política econômica focada no apoio ao grande
capital, na marginalização da agenda do desenvolvimento sustentável e reforma
agrária e, principalmente, na rejeição a qualquer mecanismo concreto de
controle social sobre o Estado. A agenda rooseveltiana é conservadora do ponto
de vista político, mas progressista em termos de ganhos sociais, além de
orientada para a hipertrofia do Estado. Não há nada, contudo, que quebre a lógica
sistêmica da ordem vigente.
Tal conceito, afoito ou desprovido de fundamento real,
traveste a polarização eleitoral em polarização ideológica. O que faz de toda
manifestação de contestação uma reação conservadora ou irresponsável. Na melhor
das hipóteses, um infantilismo esquerdista ou autoreferenciado.
Há dois momentos em que o documento aponta para uma agenda
do que seria tal revolução democrática. No item 21, indica:
Esta dinâmica de revolução
democrática abre um novo período de mudanças estruturais no país, centralizadas
por uma democratização qualitativa dos centros de poder. A democratização dos
centros de poder do Estado – conjugando um novo quadro institucional das formas
de representação e democracia participativa, de democratização do processo de
formação da opinião pública, de fim da corrupção sistêmica, de avanços na
Justiça de Transição e de superação das dimensões conservadoras das políticas
de segurança pública – se associaria a um novo patamar de planejamento público
e de políticas macroeconômicas, abrindo um período de universalização das
políticas sociais e de desmercantilização dos bens necessários à reprodução da
vida social formando um Estado alicerçado nos valores da solidariedade, do
feminismo e da multi-etnicidade.
Mais adiante, no item 40, sugere:
É preciso pois disputar
abertamente a legitimidade democrática do sentido e do aprofundamento das
políticas econômicas anti-neoliberais que se afirmaram mais claramente a partir
do fim do primeiro mandato do presidente Lula. A afirmação do planejamento
democrático, da função decisiva do setor público como financiador, produtor e
regulador, das medidas de combate aos poderes financeiros, das iniciativas de
defesa dos direitos do trabalho e a ampliação das políticas sociais, da defesa
da soberania nacional diante da pressão rentista internacional, da agricultura
familiar e da reforma agrária são fundamentais para inverter um panorama
político e comunicativo defensivo. Em terceiro lugar, há uma nítida diferença
entre o sentido programático da reeleição de Dilma e a opção preferencial pela
aliança com o PMDB, que no Congresso Nacional tem evidenciado e até aprofundado
o seu atrelamento a posturas e interesses conservadores. Neste quadro, será decisivo
a nitidez programática imprimida pelo PT e pelo PC do B e pelos setores mais
progressistas da coalizão à candidatura Dilma Roussef, preparando inclusive um
esforço de uma nova convergência política e social nos próximos anos.
Ora, uma leitura mais rigorosa daria conta para compreender
que esta agenda é antagônica à entabulada pelo lulismo. Os dados são oficiais e
demonstram nitidamente que a reforma agrária foi debelada como política pública
estratégica em função da implantação do bolsa família. Já havia, anteriormente,
a intenção de substituir esta agenda clássica da esquerda brasileira por territórios
da cidadania. O fato é que as teses de José Graziano da Silva, ex-dirigente do
programa Fome Zero e hoje comandante da FAO, tão disseminadas em meados dos
anos 1980 sobre o anacronismo da reforma agrária como reforma econômica, deitaram
raízes no programa lulista.
O planejamento democrático simplesmente não existiu nos últimos
dez anos. Ao contrário, a participação de entidades de representação social em
arenas oficiais desmantelaram as mediações destas organizações com as ruas.
Convênios que terceirizaram serviços sociais públicos para ONGs, administração
de fundos de pensão com o nítido foco em ganhos de dividendos (como aquisição
de ações de indústria bélica e grandes bancos), participação de sindicalistas
(com pagamentos de jetons pessoais) em conselhos de empresas estatais sem
consulta às bases sindicais sobre pautas e prioridades, baixo impacto das
dezenas de conferências nacionais de direitos, aborto do sistema de controle
social sobre o Bolsa Família elaborado por Frei Betto e Ivo Poletto, assim como
aborto do controle popular sobre a implantação do PPA federal (que foi
timidamente esboçado em audiências públicas nas capitais durante 2003) são
algumas situações que indicam os rumos concretos do processo de decisão
governamental.
Por confundir intenção com gesto, o documento da DS incorre
em passagens ufanistas, como se estivéssemos vivenciando no Brasil uma mudança
de proporções regionais ou até mundiais. Um exagero que reforça a noção da
disputa eleitoral ser mais importante que as demandas sociais expostas em
conflitos de rua. A hipérbole literária pode ser verificada no item 20 do
referido documento:
2002 marcou o início de um novo
ciclo político do país, com a vitória de Lula em um quadro de forte chantagem
dos capitais financeiros internacionais e das forças políticas neoliberais;
2006 foi fundamental para marcar a conquista de um segundo mandato Lula, após a
grave crise de 2005, consolidando e legitimando uma inflexão à esquerda
importante da legitimidade da luta contra os fundamentos neoliberais (nova
orientação da política econômica desde o final de 2005, nova política do
salário-mínimo, denúncia das privatizações no segundo turno, consolidação da
legitimidade das novas políticas de inclusão social); 2010 foi uma clara
manifestação do apoio à continuidade e aprofundamento das mudanças conquistadas
nos governos Lula, a partir das respostas à esquerda diante dos novos desafios
da crise econômica internacional de 2008, com a construção da liderança
política de Dilma Roussef em meio a um quadro de forte acirramento da luta de
classes a partir de uma contra-ofensiva político-midiático neoliberal e
conservadora promovida pela candidatura Serra, principalmente a partir do final
do primeiro turno.
Uma passagem do excerto destacado acima já possibilita
desmontar a tese ufanista. Afinal, o que teria gerado “a grave crise de 2005”?
Foi a ofensiva anti-lulista que procurava surfar na reação popular aos casos de
corrupção instalados na Casa Civil. Lembremos que o caso cunhado como “mensalão”
é posterior à crise iniciada com as movimentações de um assessor do ministro da
Casa Civil. O fato é que Lula decidiu, a partir dali, reorientar suas políticas,
até então desarticuladas, num formato clássico rooseveltiano. O eleitorado
petista se altera desde então, como demonstram diversos estudos de análise
eleitoral. Passou a se confundir com o eleitorado do PMDB, com menor renda e
instrução. A ruptura com o Fome Zero, segundo o que Frei Betto registrou em
livros, revelou um movimento do lulismo para acordos com a Ordem institucionalizada.
Do controle social do programa através dos Talheres (denominação dada pelo Fome
Zero às estruturas de gestão participativa), Lula optou pelo controle pelas
prefeituras, o que foi duramente criticado por várias pastorais sociais envolvidas
na criação da rede social de gestão participativa.
A política econômica também se radicalizou e a orientação
para focalização das políticas sociais, tal como preconizava a Secretaria
Nacional de Política Econômica do Ministério da Fazenda, passou a ser discurso único.
A partir daí, a aliança com o PMDB e a formação de um amplo arco de acordos que
forjou de vez a coalizão presidencialista feriu de morte o programa petista. Este
que o documento da DS procura recuperar em parte.
Daí a necessidade de redigir frases de efeito como a que
abre o item 19 do referido documento: “as eleições de 2014 devem ser analisadas
como parte do longo ciclo de luta contra o neoliberalismo, que teve início em 1989”.
O próprio documento já havia indicado que o neoliberalismo já não é mais hegemônico.
Mas que a esquerda não consegue apresentar uma alternativa popular. E, ainda,
que emergem daí, mobilizações de massa que trilham caminhos alternativos, do
neofascismo europeu ao anarquismo ou autonomismo encontrados no Occupy
norte-americano, nos Indignados espanhóis, na Revolução das Panelas da Islândia
e até mesmo nas Assembleias Populares argentinas.
As eleições, enfim, se tornaram o último campo de batalha
para uma esquerda acuada, sem musculatura, que vive às sombras de um governo de
coalizão onde seu peso é quase imperceptível.
Como bem demonstra o final do documento, as alternativas
eleitorais à Dilma Rousseff são insignificantes. Até o momento, a reeleição
pode ocorrer no primeiro turno. Mas não é aí que está o risco ao lulismo. Está
nas ruas. Algo que o documento da DS não consegue analisar profundamente.
Porque seu foco é o campo institucional, a eleição e a tentativa de influência
de um governo que se pauta pela reação, pela ausência de projeto estratégico nítido.
O Mais Médicos surgiu como reação às ruas. A aliança com o PMDB como reação à
ofensiva oposicionista em 2005. A proposta de plebiscito da reforma política
como reação às manifestações de junho. Assim como a esdrúxula proposta de lei
antiterror e leis que procuram coibir protestos de rua sob o pretexto de ameaça
à ordem nacional.
O documento da DS peca porque não sabe como fazer ponte
entre o governo que participa e as ruas, órfãs nos últimos dez anos.
O lugar da esquerda sempre foi as ruas. Mas a DS parece
procurar uma outra via.
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