Dos Partidos ao Projeto de Esquerda
Rudá Ricci
Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, Coordenador do Instituto Cultiva e membro do Comitê Executivo Nacional do Fórum Brasil do Orçamento. E-mail: ruda@inet.com.br . Site: www.cultiva.org.br .
Houve uma vez um verão
Os partidos políticos modernos nasceram no século XIX. Eram, no início, partidos operários, funcionavam além do período eleitoral, eram compostos por um corpo de militância estável e possuíam um programa político para toda a sociedade. Eles vieram para superar o que a literatura especializada denominou de Partidos de Notáveis, que emergiram no século XVIII como clubes de lideranças burguesas que faziam uma breve campanha para que fosse definido um representante no processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Os partidos de notáveis desmontavam assim que o representante era escolhido.
Os partidos de esquerda, que no final do século XIX e início do XX, se conformaram a partir da tradição marxista, tiveram sua referência na organização militarizada que ficou desenhada por Lênin em Que Fazer? Mas, mesmo Lênin não elaborou a mesma proposta organizativa ao longo de sua vida. Em seu primeiro texto a respeito, de 1895 (Projeto e Explicação do Programa do Partido Social-Democrata), o líder bolchevique sugeria que o papel do partido político seria o de articular e unificar as lutas sociais, que seriam a verdadeira escola política das massas. Quatro anos depois, começava a esboçar uma concepção vanguardista do papel do partido. Sustentou que a luta pelo socialismo e a luta operária estariam divorciadas no cotidiano. Finalmente, em 1902, quando publica Que Fazer?, Lênin indica a premissa da construção de uma importante burocracia partidária, profissionalizada, criando uma lógica etapista da luta e formação política, que passaria da luta sindical, de caráter econômico, à luta política. Entretanto, a compreensão política do mundo não seria fruto de uma evolução natural. Surge uma relação direta entre o cotidiano operário e a alienação, de um lado; e a consciência política e a teoria revolucionária e o profissionalismo partidário, de outro. Em seu último texto (Vale quanto Pesa), contudo, Lênin reconhece que sua suposição estava equivocada. Num mea culpa duríssimo, lamenta que a relação que teria estimulado entre partido, Estado e governo teria gerado uma burocracia que se distanciava perigosamente do dia-a-dia da vida social concreta.
Este tema foi um dilema fundamental para toda a trajetória das esquerdas no século XX. Desde o debate sobre a determinação essencial do poder capitalista, se centrado no desenvolvimento das forças produtivas ou nas relações de produção, até o difícil aprofundamento sobre o caráter da alienação do trabalho. Não por outro motivo, uma das passagens mais instigantes e apaixonadas do jovem Marx trata das relações de equivalência. Embora esta passagem seja dedicada, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos às trocas mediadas pelo dinheiro, Marx avança surpreendentemente sobre a equivalência nas relações humanas. No Terceiro Manifesto vaticina:
Suponhamos que o homem seja homem e que sua relação com o mundo seja humana. Então, o amor só poderá ser trocado por amor, confiança, por confiança, etc. Se se desejar apreciar a arte, será preciso ser uma pessoa artisticamente educada; se se quiser influenciar outras pessoas, será mister se ser uma pessoa que realmente exerça efeito estimulante e encorajador sobre as outras. Todas as nossas relações com o homem e com a natureza terão de ser uma expressão específica, correspondente ao objeto de nossa escolha, de nossa vida individual real. Se você amar sem atrair amor em troca, i. é, se você não for capaz, pela manifestação de você mesmo como uma pessoa amável, fazer-se amado, então seu amor será impotente, uma desgraça.
Um dilema que pode ser transposto, num exercício de analogia, para a representação política. Se o líder não se fizer refletido nos liderados, se o representante não se fizer legitimado nos representados, então esta relação política será impotente, uma desgraça.
Tantos outros autores, de todas as filiações que se ramificaram a partir das teorias de Marx, procuraram responder e aprofundar este dilema. Quase todos foram devorados por ele. Trotsky, no exílio mexicano, escreveu copiosamente a respeito; Gramsci, na prisão fascista, ampliou o conceito de hegemonia como cimento, ou capacidade de escuta, interpretação e fusão dos interesses difusos de vários agrupamentos sociais; Erich Fromm retomou os estudos sobre alienação; recentemente, o tema ressurgiu no seio das esquerdas a partir do debate sobre a democracia como valor universal, sem adjetivos. Mas foi nos anos 90 que, a partir da força inovadora dos movimentos sociais e conquista de espaços no interior da estrutura de Estado (principalmente na América Latina) que o cruzamento entre sociedade civil e sociedade política se cruzou e se complexificou definitivamente. Antes de entendermos com mais detalhes esta novidade dos últimos quinze anos, é importante demarcar que a crise de legitimidade dos partidos enquanto estruturas de organização de interesses e representação política nunca foi tão profunda como agora, em que a sociedade civil se fragmentou e parte de suas organizações acabou por invadir o Estado, em forma de conselhos de gestão, de participação direta na condução de orçamentos públicos, de sistemas e estruturas de monitoramento e controle social sobre políticas públicas. Não chega a ser uma mudança definitiva na política, mas revela um esboço de tendência ou tensão política.
Durante o século XX esta organização de representação política (o partido político) foi se desgastando gradativamente. Robert Michells foi o mais conhecido crítico da estrutura partidária moderna, fundamentando sua crítica a partir da teoria da Lei de Ferro da Oligarquização, que sugere a formação de oligarquias políticas e burocratização interna na tomada de decisão.
No final do século XX, ficou patente o desencanto e ressentimento generalizado com as lideranças e estruturas partidárias: desde a formação de ligas regionais na Europa, que quebraram a unidade nacional dos partidos; até mesmo a criação de estruturas em rede, envolvendo movimentos sociais e ongs, modelo adotado pelo Fórum Social Mundial.
Pesquisas recentes revelam o que parece um paradoxo entre o aumento de mecanismos de controle social e participação cidadã na gestão pública e o afastamento progressivo do interesse e participação do cidadão comum. Este paradoxo vem estimulando estudos importantes desde a década de 70 do século passado. Richard Sennett, em seu livro O Declínio do Homem Público, sugere que a representação pública se distanciou de tal magnitude da vida cotidiana comum que se espraiou um forte sentimento de ressentimento sobre todo espaço e institucionalidade pública. O ressentimento, por sua vez, gera um profundo acanhamento do homem simples, sem poder político decisivo, que o impele a ser transparente e afetivo apenas em seu restrito círculo de confiança, no espaço íntimo, privado. Em público, desenvolveria um ameaçador cinismo político, que nega qualquer compromisso com tudo o que é público. Alain Touraine, em seu livro Poderemos Viver Juntos? sustenta que o mundo globalizado apartou a dimensão cultural (dos valores e tradições sociais) da dimensão política e econômica. A política estaria a serviço da economia globalizada, tendo como principal objetivo a criação de um ambiente de segurança para os investimentos privados, do alto capital lastreado pelo sistema financeiro. Manuel Castells sugeriu, recentemente, que o Estado teria como função primordial no mundo globalizado o de facilitador do fluxo de capital.
O mundo da política (e, com ele, os partidos políticos) se descolou do cotidiano social e vinculou-se à dinâmica econômica. Paradoxalmente, o que a tradição leninista procurava distinguir (a dimensão econômica da dimensão política) acabou desmanchando no ar. Os partidos políticos (incluindo os de esquerda) conformaram, desde a década de 80, um poderoso mercado de votos. As esquerdas não conseguiram, desde então, criar um projeto alternativo, inovador e progressista, de ampliação da representação e participação do cidadão na definição das decisões políticas. Pelo contrário, capitularam ao mercado de votos. Nas exceções, disseminaram um discurso estranho aos que pretende representar. Enfim, se enredou em lógicas estranhas à representação política.
Neste final da primeira década do século XXI o sonho de uma noite de verão se dissipou. Como dizia Puck, pela pena de Shakespeare, se tudo causou enfado, que o melhor é pensar que foi sonho, uma visão (ou uma teoria que não se revelou fértil). Mas haveria uma chance, como prediz a última fala de Oberon. Marx, ao analisar a equilvalência, retomou a busca frenética pelo amor que ser revelava no enredo infernal de Shakespeare, em que todos se amam e os amores são trocados, até que, na manhã seguinte, tudo se resolve e ocorre um casamento triplo.
2. Reatando a política com o cotidiano dos cidadãos
O fato é que o Brasil seguiu a passos rápidos o que acontece a décadas na Europa e EUA, e já se manifesta em parte da Ásia: os partidos transformaram-se em imensas máquinas de tipo empresarial em busca do voto.
Não por outro motivo, grande parte dos brasileiros que assistiu os depoimentos de dirigentes partidários envolvidos diretamente nos inúmeros casos de corrupção que assolou a política nacional, nunca havia sequer visto de relance as figuras de administradores que, de fato, movimentam fortunas, articulam negociações e acordos, definem e conduzem empresas de marketing político, comandam o cotidiano partidário.
Os partidos se transmutaram em empresas. Possuem a lógica e a estrutura de uma empresa do século XX. Seus líderes estão absolutamente descolados da vida dos militantes, justamente porque um corpo administrativo poderoso se transformou numa parede de isolamento e proteção. Típico de qualquer estrutura burocrática. O que é mais significativo é que o corpo administrativo passa a ser a face real, do poder real, dos partidos. É ele quem faz acordos e efetiva alianças, quem coordena o marketing, quem seleciona e traduz a elaboração dos técnicos e especialistas, quem define as estratégias gerais, quem comanda o cotidiano das contas e pagamentos, quem planta as notícias na grande imprensa, quem promove as tramas e intrigas, quem organiza os encontros e congressos partidários, quem estabelece as rotinas e compromissos com sindicatos e outras estruturas de representação social, quem organiza as relações entre filiados e eleitos. Secretário geral, tesoureiro, secretário de formação ou de organização, secretário de comunicação dos partidos políticos possuem um poder inimaginável para o eleitor. Constituem um poder que quase não possui ônus pessoal e quase sempre são portadores de imensos bônus. Não se expõem à luz do dia como os líderes que são chamados pela imprensa e que se arriscam nas eleições. Sua ascensão se faz pelos acordos internos, na penumbra dos corredores e salas de gabinete. É raro prestarem contas publicamente. Não se expressam bem, justamente porque não exercitam a comunicação. Acostumam-se ao discurso executivo, sumário, de quem manda.
As esquerdas, por uma trajetória tortuosa e estranha aos seus objetivos finais, foi vítima desta tentação burocrática porque ela facilita o acesso ao poder, mas destrói os laços de confiança e o diálogo entre representantes e representados. Enfim, os partidos políticos, incluindo os de esquerda, abandonaram seu papel pedagógico.
Os partidos políticos em todo o mundo e mais profundamente no Brasil não representam mais o cotidiano do homem simples, justamente porque seu cotidiano é outro, definido por este corpo administrativo partidário, escondido nos escaninhos absolutamente ignorados até mesmo da grande imprensa. Como são os administradores que dirigem o cotidiano partidário, o militante vai se tornando uma figura folclórica, saudosista. Os militantes, cada vez mais raros porque imbuídos pelo espírito voluntário, não conseguem fazer frente a esta espetacular estrutura de poder burocrática. Não são profissionalizados, não possuem os recursos materiais e políticos dos administradores. São convocados pela emoção e não pela razão. São a antítese do corpo administrativo, que considera paixões e emoções algo rasteiro e primário, ineficaz. O militante é um crente, alimentado pela utopia ou pela guerra. Mas, pouco a pouco, não entende o motivo para seu empenho não ser reconhecido no período entre eleições. Sente-se alarmado pelas notícias que lê nos jornais, envolvendo administradores em tramas que nunca havia pensado. E, gradativamente, começa a sentir o mesmo ressentimento dos homens simples, não militantes, não filiados. A crítica à alienação e passividade, que faz o militante ser militante, dificulta o divórcio total com o partido, mas fica a dúvida e certa angústia. Angústia porque o militante sente que a estrutura burocrática que domina o partido é a promessa de sociedade que será construída a partir das vitórias eleitorais. Mesmo porque ninguém ensina o que não sabe. Mas o discurso do líder, por sua vez, carregado de paixão e utopia, cria o consolo e faz a roda da militância girar. O desgaste progressivo parece natural.
Nesta engenharia política, aumenta a Corte: técnicos de marketing, institutos de pesquisa e elaboradores de programas de governo tratam diretamente com os administradores partidários e criam um staff que tem seus dias de glória nos três ou quatro meses que antecedem o dia das eleições. Não é incomum, a partir deste cenário, que os programas de campanha raramente sejam executados depois que o candidato se elege. Também não é incomum que os coordenadores de áreas programáticas das campanhas não atinjam cargos de destaque nos governos que logo se formam após a vitória. Chegam, no máximo, à equipe de transição.
Mas, se as estruturas partidárias tornam-se elementos estranhos ao cotidiano, a política pública, paradoxalmente, parece se revitalizar, ainda que timidamente. Mais um paradoxo da vida real. A revitalização não passa pelos partidos políticos. No caso brasileiro, é algo similar ao que ocorreu com as estruturas confederativas do sistema sindical. A quase totalidade dos movimentos sociais formou-se à margem das federações e confederações sindicais. Surpreendentemente, foi comum, nos anos 80, encontrar líderes de movimentos sociais que eram simultaneamente dirigentes sindicais. Questionados porque o sindicato não liderava aquele movimento e o motivo de existirem duas estruturas paralelas de organização de uma mesma base social, as respostas eram lacônicas ou confusas. Mas o mais comum era o dirigente reclamar da burocratização sindical, da incapacidade de mobilizar massas, do vício das pautas formais.
Os movimentos políticos de cunho participacionista, que procuram ampliar o controle social sobre os governos, instalando instrumentos e mecanismos públicos de gestão no interior do Estado, não nascem ou se organizam a partir dos partidos políticos.
Não existem pesquisas que aprofundem o ideário dessas lideranças participacionistas, instalados em inúmeros fóruns, redes de movimentos sociais e ongs, articulações de organismos de base. São inúmeras siglas, como ASA (Articulação do Semi-Árido), FBO (Fórum Brasil do Orçamento), FNPP (Fórum Nacional de Participação Popular), Inter-redes.
Muitas estruturas híbridas, de representação direta da sociedade civil em instâncias de deliberação de políticas públicas instalados no interior do Estado já existem. Já somam 27 mil o número de conselhos de gestão pública (de direitos e setoriais) ao longo do país. Mais de 170 municípios adotam o orçamento participativo. Segundo o IBGE, 74% dos municípios brasileiros adotam algum tipo ou instrumento de gestão participativa na condução de políticas e orçamento públicos.
Já existem diversos municípios (como Montes Claros, em Minas Gerais; Rio das Ostras, no Rio de Janeiro; e Recife) que adotam o orçamento participativo mirim. Alguns deles (como a paranaense Maringá) que possui uma lei de responsabilidade social.
O Fórum Brasil do Orçamento apresentou à Câmara Federal uma proposta de Lei de Responsabilidade Fiscal e Social, que já tramita na Comissão de Legislação Participativa daquela Casa. A lei sugere a obrigatoriedade da inclusão de metas sociais objetivas em todo ciclo orçamentário (Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual) em todos entes federativos e institui Conselhos de Monitoramento em todos municípios brasileiros para avaliarem a execução das metas e elaborarem Balanços Sociais anuais. Uma seqüência de balanços negativos abriria o processo de responsabilização da autoridade pública.
Também têm início as tentativas de instalar mecanismos participacionistas nos parlamentos brasileiros. São diversas as casas legislativas que já instalaram comissões técnicas permanentes de participação popular. Está em curso a instalação, em Câmaras Municipais, de câmaras técnicas (parlamento juvenil, direitos da mulher, da terceira idade, do mundo rural) no seu interior; as audiências públicas (Câmara Itinerante), as audiências ordinárias com conselhos de gestão pública para compor o orçamento municipal. Enfim, a onda participacionista que atingiu os executivos, agora está se dirigindo aos legislativos.
Há, ainda, outros tantos exemplos que envolvem toda América Latina, principal seleiro dessas inovações. Este é o caso da Red de Solidariedad colombiana, Lei de Transparência da Informação Pública peruana, Lei Orgânica dos Municípios e conselhos comunais venezuelanos, parlamentos juvenis chilenos, comitês infantis argentinos. Europeus e asiáticos afluem à América Latina para compreender esta nova energia moral na política pública.
Exemplos como os citados acima oferecem uma pista do que poderia ser uma estrutura de representação política mais adequada ao mundo contemporâneo: organizações enraizadas nos locais de moradia, articuladas em rede e forte controle das políticas públicas. São estruturas mais representativas, também mais flexíveis, e altamente participativas. O cidadão se reconhece nessas novas estruturas.
É nossa senha para o século XXI. Talvez, a partir da sua compreensão, reformulemos o que no século XIX era o objetivo e a estrutura que fundaram os partidos políticos.
Talvez, essas novas práticas e estruturas criem as pistas para renovação dos partidos políticos. Esta é uma clara intenção das esquerdas. Se isto ocorrer, poderemos ainda denominar por muito tempo essas estruturas de representação de partidos. Mas, cá entre nós, não serão o mesmo que hoje. Muito menos o que foram no século XIX.
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