quarta-feira, 27 de junho de 2007
Como planejar um curso em educação popular
Um curso apoiado nos princípios da educação popular parte, sempre, de um diagnóstico da cultura e dinâmica social dos educandos envolvidos na programação.
Lembremos os motivos para este primeiro passo. No prefácio à Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty sustenta um processo de envolvimento com o mundo a partir da visão e experiência pessoal do mundo:
Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda.
A ciência é a segunda expressão do mundo. A primeira é a experiência vivida, que forma a visão de mundo de quem a vive. Merleau-Ponty aprofunda ainda mais esta sensação do mundo, enquanto choque, instantâneo o pontual, mas nunca neutro, porque o que eu percebo é imediatamente interpretado pela experiência passada. Não existe impressão pura. O sensível não é um efeito imediato de um estímulo externo, mas uma interação entre o que vejo e como eu interpreto o que vejo.
Esta noção é fundamental para entendermos que ninguém não sabe nada sobre o mundo ou sobre tudo. Ao contrário, tudo é refletido, repensado, percebido a partir do seu passado e de sua experiência concreta de vida. As imagens são recriadas a cada geração.
Qualquer curso ou interelação pedagógica, educativa, se não interage com esta reflexão inicial sobre o mundo e sobre a próprio curso que inicia, cria um impacto autoritário, que distancia o educador do educando. Por outro lado, ao iniciar pela busca da percepção do educando, cria uma trilha de diálogo, um processo por onde as duas partes interagem e podem construir conhecimento sobre um tema ou um problema.
Neste caso, o caminho correto seria definir o tema em questão (o tema do curso) após a problematização com os educandos ou com as estruturas de representação sociais dos educandos (sindicatos, conselhos, associações, entre outros). O tema é criado a partir de interesses concretos, de dinâmicas sociais e valores construídos pela experiência pessoal e coletiva.
Esquematicamente, a partir do diagnóstico inicial e escolha do tema, os passos de organização de um curso são:
Planejamento de um curso
Estudo sobre o Público-Alvo
Definição do tema central
Definição da Ementa (breve resumo sobre os objetivos e sub-temas que envolvem aquele curso)
Definição da duração do curso
Definição dos módulos (ou subtemas a serem desenvolvidos)
Definição do método e instrumentos: grupos, discussão de vídeos, aulas expositivas, debates, seminários, aula dialogada, oficinas
Definição dos instrumentos de avaliação
Bibliografia ou recursos pedagógicos e de consulta e aprofundamento
Detalhemos cada um desses passos.
O Estudo sobre o público ou educandos envolvidos no curso é fundamental pelo exposto anteriormente. Infelizmente, nunca é possível garantir informações precisas sobre os educandos ou mesmo um tempo inicial para dialogarmos com eles. O tempo é cada vez mais escasso, mesmo na educação . Daí esta primeira etapa nem sempre ser possível ser produzida antes do início do curso. Mas, mesmo numa situação não ideal, é importante que a programação do curso parta de um mínimo de informações sobre o perfil dos educandos, procurando estabelecer uma relação direta, um atalho, entre os seus interesses e os desafios que o curso estará propondo.
Ainda assim, é fundamental que se pense um momento ou uma dinâmica inicial do curso onde a proposta seja cotejada pela opinião e interesses do grupo de educandos. Daí a necessidade de um curso evitar exposições, de caráter unilateral. Antes, é fundamental pensar numa provocação, num dilema ou polêmica, num processo de discussão em grupos ou cochichos entre vizinhos de cadeira na sala onde se realiza o curso. A programação, assim, vai se ajustando pouco a pouco.
Definido o tema, é importante que os educadores elaborem uma breve ementa do curso. Esta ementa, como apontado anteriormente, será submetida aos educandos-cursistas e poderá sofrer ajustes. Mas um bom diálogo tem início com proposições objetivas e concretas. Não se responde uma questão que é dúbia, confusa, mal formulada. A ementa auxilia a formular com clareza a proposta do curso.
Uma ementa é objetiva e concisa. Vejamos um exemplo:
EMENTA DE UM CURSO UNIVERSITÁRIO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO: Seminário em Filosofia Moderna. O ensaio sobre Entendimento Humano de Locke.
EMENTA:
Através de uma leitura do Ensaio de Locke, especialmente dos livros I, II e IV, buscaremos examinar alguns dos principais temas da epistemologia de Locke, tais como, seu caráter normativo, a natureza e alcance de sua crítica à existência de idéias inatas, sua teoria das idéias, a distinção entre ciência e opinião, sua concepção de probabilidade, e seu posicionamento face ao ceticismo e ao cartesianismo.
A ementa acima faz uma promessa ao educando, indica o tema e as fontes (livros I, II e IV) de estudo, além de seu objetivo (examinar alguns dos principais temas da epistemologia de Locke). Os educandos saberão pela ementa se este curso lhes interessa e avaliarão o seu resultado a partir da promessa que a ementa encerra.
O público de educandos envolvidos deve, novamente, orientar a organização do tempo, a duração, seqüência de temas. Um exemplo claro é o do primeiro curso de formação de conselheiros de Maringá. Grande parte dos cursistas trabalha em horário comercial (principalmente os não governamentais). Ao consultá-los, a demanda foi que o curso básico fosse realizado entre 16h e 18h, durante a semana. Toda a programação foi estruturada a partir desta disponibilidade e demanda, o que criou uma situação inusitada e inesperada.
Ao organizar o tempo de duração do curso é importante levar em consideração a necessidade de existir um intervalo relativamente longo entre um e outro encontro, não esgotando o tema em apenas um evento de dois ou mais dias. São dois motivos principais para segmentar a programação. A primeira é cognitiva. Em cursos de curta duração (ou até média duração), o volume de informações é considerável: compreender a dinâmica, o seu lugar no curso, seus colegas de curso, os conceitos, as conclusões, a relação entre sua prática e a auto-avaliação que o processo educativo implica. É fundamental que ocorra um intervalo de alguns dias para que aquele impacto seja refletivo e que, principalmente, seja cotejado pela rotina e desafios cotidianos. Assim, o conhecimento produzido em sala, durante o curso, se mistura com o cotidiano e se reorganiza, possibilitando se transformar em experiência concreta. Esta dinâmica prática-teoria-prática é o que dá consistência e objetividade (ou concretude) a um curso apoiado nos princípios da educação popular.
Um segundo motivo é possibilitar uma prática de estágio. O estágio ou dever de casa é o mesmo processo de relação teoria-prática indicado acima, mas com um elemento a mais: a intencionalidade pedagógica. Todo estágio é programado para forçar uma situação de aprendizagem e uma possibilidade do educando organizar a coleta de informações e situações que se relacionam com os objetivos e temas do curso. Podemos citar um exemplo. Imaginemos que o tema do curso é produção da proposta de orçamento municipal para o ano seguinte. Ao programarmos um estágio na Câmara Municipal e na Secretaria de Planejamento, o cursista-educando terá oportunidade para perceber a dinâmica real da produção do orçamento, que até então apenas discutiu e leu na sala de aula. As disputas, as diferenças entre repartições, os atores principais na elaboração do orçamento aparecerão vivamente. Já disseram que na prática, a teoria é outra. Na volta ao curso, as informações obtidas redefinem as discussões e criam um sentido novo ao processo de aprendizagem.
O tempo do curso organizado implica em pensar os módulos do curso: o encadeamento dos temas. Os módulos, contudo, devem compor e organizar os momentos de leitura, a troca de experiências, a sistematização de conhecimentos, os desafios, os estágios programados ou dever de casa, os trabalhos em grupo. Simplificando, é possível dizer que os módulos (encadeamento dos temas) formam o esqueleto do curso e as dinâmicas constituem o conteúdo, a carne do curso.
Vejamos, a seguir, um exemplo de organização de um curso em módulos:
Direito do Trabalho (inclui segurança do trabalho)
Módulo 1 - Aula 1
Introdução, definição e princípios do Direito do Trabalho.
O princípio de proteção. O princípio da irrenunciabilidade.
O princípio da supremacia da realidade, O princípio da continuidade, Fontes do Direito do Trabalho.
Principais fontes, Constituição Federal, Leis ordinárias, Jurisprudência, convenções e recomendações da OIT, convenções coletivas do Trabalho, acordo coletivo do trabalho, regulamentos de empresa, contrato individual de trabalho, usos e costumes.
Direito Individual e Direito Coletivo do Trabalho
Módulo 1 - Aula 2
Empregado e empregador, abrangência da CLT. Empregado urbano.
Requisitos para caracterização do empregado urbano
O empregador, definição relação de emprego. O estado como empregador, grupo de empresas. Microempresa e Empresa de pequeno porte, identificação profissional, Carteira de trabalho CTPS, portador. Obrigação, emissão, exigência da CTPS, dados, anotações, recusa da anotação da CTPS.
Livro de Registro de empregados.
Os módulos, como se percebe, organizam uma lógica temática e indica os subsídios que serão utilizados como apoio. Obviamente que, durante o curso, o que foi programado pode ser alterado. Mesmo assim, a organização em módulos auxilia a organizar mentalmente uma seqüência de raciocínio e de fontes. É um instrumento do educador e detalha a ementa.
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