domingo, 15 de agosto de 2010

A edipiana relação entre Serra e FHC


Quem conhece os bastidores da política paulista sabe da disputa surda entre FHC e Serra (assim com a disputa de morte entre Serra e Alckmin). Mas raramente este tema é tratado pela grande imprensa, embora seja revelador dos descaminhos da política nacional. Até que surge o artigo de Luis Nassif, intitulado "Serra e FHC, uma relação delicada". Vou reproduzir alguns trechos deste artigo, dos mais significativos para se entender o quanto a política é relação subjetiva, afetiva:

(...) Eleito governador, José Serra parecia pronto para a escalada rumo à presidência da República. As eleições presidenciais foram encarniçadas. Sem dispor de cargos executivos, o ex-presidente FHC e senadores como Arhur Virgílio e Tasso Jereissatti, estimulavam o clima de guerra, o único no qual poderiam ganhar espaço junto ao PSDB. O pêndulo do partido se inclinaria inevitavelmente para os governadores. (...) Terminada as eleições, com os ecos das baixarias ainda muito fortes, escrevi um artigo dizendo que tinha chegado a era dos negociadores. Serra tinha formação de centro-esquerda, não tinha acertos de conta com a biografia - como FHC com Lula -, seria o negociador, o governador com capacidade para conduzir uma interlocução de alto nível com o governo federal, enterrando a loucura que havia tomado conta da oposição e da mídia. A partir dali, o país entraria na era do amadurecimento político, com oposição e situação disputando quem faria melhor governo, teria as melhores propostas, sem intenções golpistas, sem dossiês, sem o clima terrível inaugurado pelo pacto espúrio de 2005 com a mídia. No artigo, dizia que a única esperança de Serra se consolidar seria enterrar o fernandismo e inaugurar definitivamente o serrismo. (...) Assim que recebeu o artigo pelo mailing, ele me ligou. Disse que, em geral, concordava com minhas posições, mas não naquela visão de romper com o fernandismo. «Ele é meu amigo, me apoia», me disse. Estranhei a conversa. Não estavam em jogo amizade ou coisas do gênero, mas a afirmação de um novo conjunto de idéias, de uma nova liderança, o que só poderia ser feito se se enterrasse o modelo anterior, desenhado e conduzido por FHC. Como inaugurar uma nova era no PSDB sem consumar o enterro da anterior, que o partido carregava como uma bola de ferro amarrada aos pés? Desligado o telefone, fiquei tentando entender a conversa. Aí caiu a primeira ficha. Lembrei-me de uma cena ocorrida alguns anos antes que se fixara em algum lugar da memória e agora voltava à tona. Foi no período em que ACM saiu atirando para todo lado. (...) Tinha um almoço com Serra no mesmo sábado no qual saíram as entrevistas com ACM. Ele ligou remarcando em lugar mais discreto. Almoçamos no restaurante do Hotel Cá Doro. As entrevistas haviam sido violentas. (...) No almoço, disse claramente a Serra que FHC era muito contemporizador, mas agora não tinha saída: ou destruía ACM ou seria destruído. Serra ouvia e de vez em quando soltava comentários no estilo «faço e aconteço». «É por isso que não me querem na presidência porque sabem que em dois tempos acabo com eles», comentou. Na época tinha credibilidade para esse tipo de bazófia e acreditei piamente que ele acreditava no que dizia. Segunda-feira tinha palestra em Brasília. Por volta do meio dia estava a caminho do aeroporto quando recebi telefonema do Serra. Perguntou se poderia almoçar com ele e FHC no Alvorada. Pedi para o taxista dar meia volta e fui para lá. Durante algum tempo ficamos os três conversando na sala. Ali, pela primeira vez, pude entender melhor a relação entre ambos. (...) Serra, desde que se tornara Ministro de FHC tinha por hábito, nas conversas, de criticar todas suas decisões, dizer-se melhor preparado para a presidência e contar como faria melhor isso ou aquilo. Todos jornalistas sabiam disso e achavam engraçado. Mesmo com muitas conversas em off, minha percepção, até então, era de um FHC frágil, pouco determinado. E era impressão generalizada. (...) Mas o que via na minha frente, ali no Alvorada, era algo que não batia com minha percepção sobre os dois políticos. FHC estava à vontade, falava bastante. Serra estava inibido, sorumbático, monossilábico. (...) Antes de ir para a mesa, Serra virou-se para mim e pediu que repetisse para FHC o que havia lhe dito no almoço de sábado. Repeti, disse que ou FHC destruiria ACM, ou seria destruído por ele. FHC não perdeu a bonomia. Como se tivesse tratando de um problema banal, disse: - O António Carlos está esperneando porque sabe que está perdido. Vai ser cassado por causa do vazamento do painel de votação do Senado. O caso do vazamento ainda não ganhara os jornais. Não piscou, não perdeu a segurança. Era o Príncipe em estado puro, frio, senhor da situação, analista absoluto de todos os desdobramentos da maior crise que enfrentara. Olhei para o Serra, minha esperança de futuro grande estadista do país. E vi apenas um político assustado, inibido pela presença e pela análise de situação de FHC. Fiquei algum tempo sem entender direito. Porque Serra precisou de mim para transmitir um recado que, se ele tivesse o poder de que se jactava, teria sugerido pessoalmente a FHC? Mais que isso: parecia desconhecer a determinação de FHC. Será que aquela inibição que testemunhei no almoço, quase um temor reverencial, era a regra nas suas relações pessoais? (...) No fundo, jamais conseguiu se desvencilhar da influência massacrante de FHC. Não propriamente nas ideias, mas na capacidade de decidir, de se mover no cenário político, na frieza ao tratar com os grandes perigos, na clareza de definir slogans mobilizadores de campanha, da segurança de saber o que queria. E FHC sempre conheceu Serra como a palma da mão. Daí a relutância permanente em abrir espaço para ele - que Serra interpretava como medo da sua competência. Daí as ressalvas permanentes, as dicas que passou no perfil que a revista Piauí traçou sobre Serra. Durante os quatro anos como governador, comeu na mão de FHC. Através dele, montou o pacto com a mídia que lhe permitiu exercitar seu esporte predileto: fuzilar reputações de terceiros, pedir a cabeça de jornalistas, atuando nos bastidores. Foi a FHC que recorreu em pânico, em janeiro, querendo se afastar do cálice da candidatura a presidente, conforme a reconstituição feita pelo Estadão. Em toda sua vida política, afastou-se de FHC apenas nos dos últimos meses, pressionado pelos altíssimos índices de rejeição do seu guru. E aí tornou-se um trem desgovernado, sem maquinista.

Nenhum comentário: