terça-feira, 13 de maio de 2014

Minha entrevista para a Revista Fórum (sobre a política das novas gerações)

A OUTRA POLÍTICA QUE EMERGIU DAS RUAS

A outra política que emergiu das ruas

Há quase um ano das jornadas de junho, que reuniu milhares de manifestantes pelo Brasil, o sociólogo Rudá Ricci lança livro sobre o que significou a onda de protestos que o País não via desde o impeachment de Collor
Por Adriana Delorenzo (Fotos: Reprodução/Patrick Arley)
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Rudá Ricci: nas ruas, jovens foram ao encontro da política (Divulgação)
Os protestos de junho de 2013 trouxeram ao Brasil a experiência de manifestações já experimentadas na Primavera Árabe, na Espanha e nos Estados Unidos, com o Occupy Wall Street, entre outras mobilizações organizadas pelas redes sociais. Quem são esses jovens que foram às ruas questionar as instituições atuais e os limites da democracia representativa?
Das ruas nasceu a ideia do livro recém-lançado pelo sociólogo Rudá Ricci, com imagens de Patrick Arley, que busca explicar as manifestações e o seu legado. Nas ruas – a outra política que emergiu em junho de 2013 (Editora Letramento) traz reflexões sobre as novas formas de organização de uma juventude plural quanto às pautas levadas aos protestos.
Leia a seguir a entrevista com o autor, que dá pistas para entender o que mudou.
Fórum – Em seu livro, o senhor fala de uma outra política que emergiu em junho de 2013. Como é essa nova política?
Rudá Ricci – É principalmente a forma e o método, não o conteúdo. As manifestações de junho revelaram essa nova juventude, que surpreendentemente parte da imprensa e dos sociólogos tentou classificar a partir do que aconteceu em São Paulo, que foi absolutamente distinto do que aconteceu nas outras cidades onde ocorreram manifestações em junho. Uma parte identificou como sendo de direita e, na verdade, o que a gente viu foi uma juventude que é expressão do que vários estudos, principalmente da Europa, mas também do Brasil, vêm identificando como geração Y. É uma geração de jovens, entre 20 e 30 anos, que teve um tempo de convívio com a sua família muito pequeno, inclusive em função das exigências do mercado de trabalho. Temos teses defendidas em diversas universidades que vêm revelando que, nos grandes centros urbanos brasileiros, o tempo de convívio familiar de jovens acima de 15 anos que ainda moram com os pais é de uma hora e meia por dia. Isso soma a manhã, quando eles acordam, depois os pais vão trabalhar e os filhos vão para a escola, e depois à noite, quando eles retornam. E a rotina é cada um em seu computador ou vendo televisão. Isso significa que aquele papel das famílias – do século XVII para cá – de socialização primária, de aprendizagem da convivência, valores e assim por diante, está completamente interditado ou comprometido desde os anos 1980, principalmente a partir dos anos 1990.
O que os estudos vêm revelando? Que esses pré-adolescentes, adolescentes e jovens estão aprendendo a linguagem, os valores, a forma de se vestir e de se comportar com tribos urbanas, grupos, comunidades muito fechadas, que se autoprotegem e têm uma fortíssima afinidade pessoal. A marca da relação é a afetividade. Esse tipo de criação, de núcleos de solidariedade comunitárias dos jovens, que alguns chamam de subcultura juvenil, se expressa de maneira totalmente ajustada nas redes sociais.
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A forma como os jovens interpretam o seu envolvimento nas redes sociais é que eles estão fechados em comunidades. É como se eles estivessem no palco e só vissem alguns atores, e não toda a plateia. É uma sensação que também adultos experimentam quando assistem a um filme no cinema; de repente ele entra na tela e esquece que está sentado junto com mais pessoas. É uma transferência, meio fantasiosa, para uma outra realidade. Isso explica porque muitos jovens acordam de manhã e põem no Facebook: ‘Hoje não acordei bem’. Para uma pessoa da minha idade, tenho 51 anos, parece que é uma loucura, que devassa a privacidade, a intimidade. Mas não é exatamente assim que funciona para os jovens. Eles não estão postando para um cara do Japão ver. Eles estão postando para dali a pouco os seus amigos de sua comunidade começarem a vir ao seu encontro. E vão. É muito interessante quando uma pessoa posta alguma coisa desse tipo, em pouquíssimos segundos começam a aparecer 10, 15 amigos, e falam “o que você tem”, “por que você não toma um chá?”.
Fórum – É uma conversa entre a comunidade desse jovem…
Ricci – É a família. O conceito que a gente tinha de família no mundo moderno. Esse conceito de educação das famílias do século XVII para cá se transportou agora para essas comunidades juvenis. E as manifestações de junho expressaram social e publicamente essa soma de inúmeras comunidades. É uma bobagem gente da minha idade, ou nós de esquerda, exigirmos que eles exponham uma pauta fechada, porque a história de vida deles é uma pauta aberta e, mais do que isso, quando eles se encontram em comunidade não é público. Eles se organizam em pequenas comunidades. Às vezes são milhares, mas mesmo assim são pequenas, três mil –  vale lembrar que o pessoal do rolezinho chegou a 60 mil –, mas não é algo tão grandioso como uma ágora pública. Eles vivem as comunidades como uma expressão das intenções pessoais. A individualidade é muito forte para eles. O sentimento, a angústia, a solidão, as músicas, o desejo, a frustração, tudo isso é tema central nas redes sociais. Eles não têm valores muito claros da política. São muito revoltados, têm um ressentimento muito grande em relação ao espaço público. Seria pedir demais que essa juventude, abandonada pelos adultos, tivesse a capacidade de elaborar uma pauta. O que eles tinham eram desejos individuais ou grupais expressos em cartolinas que eles iam preenchendo na hora. Essa é a nova política.
O que a gente tem que entender é que o espaço público para os pré-adolescentes, adolescentes e jovens até 30 anos, hoje, em função de toda essa característica sociológica onde eles estão mergulhados, não é do espaço público. E eles se somam a partir de identidades individuais e grupais. Nesse sentido, junho foi um carnaval político. Como todo carnaval, cada um vestido do seu jeito, indo além do limite, transgredindo, dentro da ordem. Muitos deles tinham expressões, inclusive, de comportamento de roqueiro. As ruas foram uma expressão de afetividade e dessa característica grupal dos jovens.
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Não podemos falar que eles são contra partidos porque eles não se expressam em partidos. Eles não se expressam em associações, em pastorais. Eles são dessa geração abandonada e grupal, tribal. O que estou querendo dizer é que, primeiro, nós não tivemos cuidado e paciência para enxergar o que eles são. A gente quis enquadrá-los e rotulá-los dentro das certezas, inclusive teóricas, que nós construímos na nossa vida adulta.
O segundo ponto é que foi a primeira vez em que pré-adolescentes, adolescentes e jovens experimentaram a ocupação do espaço público nos últimos 12 anos com o advento do Lulismo e a mobilidade social fantástica no Brasil. Nesse sentido, junho foi uma escola de formação política, e nós, adultos, não cumprimos o nosso papel. Nós aplacamos esse pessoal.
Tinha gente fascista, tinha. Mas era a minoria. A direita não existe como expressão política no Brasil. Eles só vivem por golpe.
Essa é a primeira expressão mais importante, expressão da juventude, do afeto, da fragmentação. Da ausência de uma pauta unificada, de uma organização central. É uma somatória de comunidades que se expressam nas redes sociais, mas não só, já se expressavam antes. De jovens que hoje não têm convívio com a sua família. Então a sua família é um grupo.
Fórum – Mas podemos dizer que a pauta do transporte unificou o início das manifestações?
Ricci – Por vários fatores. Em primeiro lugar porque envolve jovens. Era uma pauta específica de jovens, principalmente universitários e secundaristas, que já estavam em luta há pelo menos cinco anos. Que fizeram a “Revolta do Buzu” e “Revolta da Catraca”. Estavam no Sul e no Nordeste. Já estavam nas ruas. A diferença é que houve o estopim por conta da violência. Mas havia um ressentimento que estava latente no Brasil. Isso porque, no mês anterior, em maio, houve o boato do fim do Bolsa Família, que levou 920 mil beneficiários à Caixa Econômica Federal em três dias. Isso já revelava o sentimento da população que tem uma melhor avaliação sobre o Lulismo, que já sentia insegurança em relação à economia. Para algo ser verossímil, um boato, precisa ter um certo pé na realidade. Essa boataria e a reação de quase 1 milhão de beneficiários já revelava que tinha uma percepção popular de que a economia não estava indo bem. Ou seja, aquela euforia de 2010, no último ano de Lula, já tinha se dispersado no ano passado. Tanto que, com as manifestações de junho, o impacto sobre grande parte da população que não estava na rua foi enorme. Ou seja, houve uma comoção nacional. Caíram os índices de popularidade da Dilma e de todos os outros políticos. A interpretação que eu faço é que a gente já tinha, no final de 2012, e em 2013, uma sensação grande no Brasil de que a política não estava mais representada. Junho mostrou que grande parte dos jovens, – que tem uma postura histórica cínica em relação à política, ou seja, “eu só voto porque é obrigatório, porque tudo é um nojo” – na rua, em protesto, estavam indo ao encontro da política. Por isso, a proposta da Dilma do plebiscito era fantástica. Porque o que eles estavam dizendo é o seguinte “vocês são ruins”, “não gosto de vocês”, mas “nós estamos falando com vocês, e a gente quer mudanças”.
O que havia antes era um cinismo fortíssimo no Brasil e isso ficou evidente num livro que saiu no final do ano passado, Vozes do Bolsa Família [de Alessandro Pinzani, Walquiria Domingues Leão Rego/Editora Unesp].Foram cinco anos de entrevistas com as mulheres beneficiárias do programa em vários estados do país. O livro revela exatamente isso que eu estou falando. Ao invés de aparecer um curral eleitoral, o que aparece são mulheres muito pragmáticas, sofridas, que acham que elas têm direito ao Bolsa Família porque os “políticos roubam”. Elas identificam que Lula e o PT fazem parte dessa corja, e elas dizem que se não fossem obrigadas, não votariam. Daí perguntam a elas em quem votaram nas últimas eleições para presidente: para o Lula. “Mas acabaram de falar que todo mundo é igual”, e as mulheres respondem: “ele hoje é igual, mas um dia ele foi pobre como a gente”. Aí tem um traço de identidade. Ou seja, quando eu voto, faço uma comparação, e aí o diferencial é que elas acham que o Lula sente porque sabe o que é pobreza e fome.
Tento traçar uma linha com esses dados que a gente tem hoje de um dos segmentos que não saíram às ruas, de coerência ou de convergência entre essa postura cínica e pragmática de grande parte da população brasileira. Ou seja, já que eu tenho que votar porque tudo é a mesma coisa, voto sem compromisso nenhum naquele que eu acho que pelo menos pode fazer uma coisa por mim. É a postura ativa, não passiva, que foi a dos meninos em junho, essa é a nova política. Além de ela ser muito estranha, com valores totalmente diferentes do mundo moderno do século 20, nós também estamos vendo um jeito de dialogar com a política pela agressão, pelo confronto, que os velhos que comandam a política institucional no Brasil não souberam captar e dialogar. Talvez a única que tenha feito isso foi a Dilma. E mesmo assim alguns parlamentares do PT ficaram desesperados com a proposta dela, porque perderiam poder se tivesse plebiscito. Ficaram contra porque são conservadores e esses jovens são absolutamente progressistas.
As manifestações de junho tinham um ethos de esquerda, não tinha nada de direita, embora tivesse gente de direita. Eles ocuparam o espaço público, confrontaram os valores conservadores, queriam a participação na política, falavam de uma pauta de questões públicas, falavam de política para todos, não eram racistas, a maioria defendia a agenda de ampliação de direitos civis. A pauta do transporte foi estopim nas cidades onde o MPL [Movimento Passe Livre] já estava presente, mas em Belo Horizonte não foi. Em Recife não foi. Em Brasília não foi. Nas cidades do interior não foi. Foi basicamente em São Paulo e no Sul. E daí, como a imprensa paulista é muito forte, ela meio que impôs uma interpretação, que na verdade não fazia parte do resto do país.
Fórum – O livro traz um capítulo sobre Belo Horizonte. Quais foram as principais características dos protestos na capital mineira?
Ricci – Não dava para publicarmos sobre muitas cidades, escolhemos fazer um estudo de caso sobre BH. Os comitês populares da Copa também identificaram Belo Horizonte como a mobilização mais organizada do país. O que BH tinha? Já havia reuniões discutindo as manifestações na Copa num sindicato de esquerda, o Sindrede, que estava cedendo o local para reunir o Comitê de Atingidos pela Copa de BH (Copac). O comitê  organizava todos aqueles que foram impactados negativamente pelas obras de preparação da Copa, inclusive da Copa das Confederações. Eram as prostitutas, que têm como ponto as imediações do Mineirão e também das vias que ligam o centro ao Mineirão; os vendedores barraqueiros. São mais de 150 famílias. Aqueles que foram despejados  de suas moradias no entorno das obras. Esse pessoal do comitê participou, no início de 2013, de um seminário na FAU/USP, coordenado pela Raquel Rolnik, que é a principal intelectual referência de todos os comitês populares da Copa no Brasil inteiro. Eles despertaram, nesse seminário, para a questão dos impactos negativos das obras. Estavam fazendo as reuniões para discutir. Esse pessoal começa a convocar uma série de ações nas ruas, que eles chamam de “copelada”, era para jogar futebol e discutir. Resolveram fazer uma “copelada” maior no primeiro jogo da copa das confederações na Savassi. Quando eles postaram o evento no Facebook já tinha acontecido a manifestação em São Paulo, do dia 13. Quando postaram, levaram um susto, tinha mais de 30 mil pessoas confirmadas. Perceberam que ia ser muito forte. Ali já tinha uma pauta absolutamente fragmentada. O Copac convocou as manifestações contra os gastos da Copa: “Queremos um país padrão Fifa”. Mas tinham as feministas, a população de rua. Ali já se percebia que não tinha essa pauta de São Paulo, do transporte.
Era uma festa, nunca tinha visto isso nem na campanha pelas Diretas. Na Diretas, quem deu o tom foram os partidos de esquerda. Em 1992, no impeachment, eram os jovens com a UNE.  Parece que a cada dez anos, temos essa explosão de um país que é desigual. Essas manifestações têm cada vez menos instituições comandando. Uma era partido, depois os estudantes, daí o Lula ganha e nós temos junho com cultura anarquista e autonomista.

Vemos que essas saídas da esquerda tradicional goraram nos últimos dez anos. A gente tem que ser humilde para saber que existe um outro jovem. Quando a gente era jovem, assustamos o pessoal do partidão. Agora, esses meninos estão assustando a gente, que fundou o PT, a CUT. Em vez de ficar assustados, temos que lembrar do nosso passado e não ir pra cima. Acho que a Marilena Chauí fez um desserviço ao país ao falar que os protestos lembravam a origem do fascismo.
Fórum – E o que podemos esperar das manifestações durante a Copa do Mundo?
Ricci – Não podemos esperar desse tipo de protestos – vale lembrar que tivemos também os rolezinhos, e acho que estamos a um ponto de ter manifestação dos beneficiários do Bolsa Família – que haja mudança institucional, porque os meninos não querem saber do campo institucional. São movimentos provisórios, iguais à Primavera Árabe, ao M-15, na Espanha, ao Occupy, à Revolução das Panelas, na Islândia, e também na Argentina, nas assembleias populares que derrubaram o [Fernando] De La Rua. Em nenhuma dessas grandes manifestações populares de protesto se constituiu um movimento social. Foram só mobilizações e nenhuma mudou, de fato, o campo institucional, pelo contrário. O De La Rua caiu, logo depois vem o Kirchnerismo. Na Islândia, veio a socialdemocracia. E no ano passado voltaram de novo todos os partidos que haviam derrubado com a Revolução das Panelas. Eles não têm a lógica do século 20, não olham para o campo institucional, fazem uma mobilização que é uma expressão emocional.
Vai ter manifestação em junho porque estão se preparando, estão fazendo reuniões periódicas, já fizeram com o MST, MAB, feministas, quilombolas, indígenas. Vai ter e sabem que vai ter violência. Os comitês não são violentos, não têm nada a ver com Black Block, mas perceberam que os governos não chamam para dialogar. Acho que as manifestações vão ser bem menores, porque estamos falando de Copa do Mundo, é o Brasil de chuteira. O impacto vai ser pequeno, porém, se o Brasil for mal na Copa, e a economia continuar andando mal, uma manifestação na rua pode ser um canal da expressão dessa insatisfação. Aí é o imponderável e eu não saberia dizer. Temos um ambiente que pode ser explosivo. Duvido nesse momento, mas se a seleção brasileira for mal, talvez canalize.
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Obra também traz imagens de junho de 2013
Fórum – Outro debate reacendido após junho de 2013 é sobre a lei antiterror. Como o senhor vê essas propostas?
Ricci – Sobre a lei antiterror, estou abismado com a reação do Governo Federal, principalmente do Ministério da Justiça. Se pegarmos a escalada do discurso da reação, depois da proposta da Dilma de diálogo pelo plebiscito, você vai ver que é uma postura fascista contra as manifestações de jovens. O que o governo fez em outubro: chamou uma reunião dos secretários de segurança pública e o ministro da Justiça [José Eduardo Cardozo], que falou em separar o joio do trigo – e aqueles que são violentos seriam presos e criminalizados – , só não explicou como ia fazer isso, já que Black Bloc não é um grupo, é uma tática. Existem vários grupos Black Bloc nas manifestações, não um só.
Depois dessa reunião, temos o Manual da Garantia da Lei e da Ordem. E no final, o manual diz explicitamente que é preciso conter os movimentos sociais no Brasil. Não fala em protesto, fala em movimento social. Temos, com a morte do jornalista no Rio [Santiago Andrade], algo que nunca imaginei que iria ver,  uma liderança sindical do PT, como Paulo Paim, se desesperar e falar que tinha que votar com urgência a lei antiterror. Essa sim é uma postura fascista do Governo Federal. É intolerância, criminalização. Isso é um absurdo no Brasil, e muda totalmente o tom do Lulismo. A questão central é: como a Dilma, que, na época do AI-5, pegou em armas, imagina que os jovens vão reagir, criminalizando todos indistintamente como potenciais terroristas? O que ela poderia ter feito? Chamado publicamente todos os comitês populares da Copa. Essa é a cultura que foi criada originalmente no PT, do diálogo. De tentar criar uma pauta comum. Era essa noção de política pública do PT. É tentar expressar as demandas sociais numa política de Estado. E não uma política ultraconservadora e reacionária, de usar o aparelho de Estado contra o cidadão. Nós já temos leis suficientes para prender quem cometeu um crime.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Carta do I Encontro dos/das Atingidos/as pela Copa


“Que um grito de gol não abafe a nossa história.”
Carta do I Encontro dos/das Atingidos/as –
Quem perde com os Megaeventos e Megaempreendimentos

Reunidos em Belo Horizonte no “I Encontro dos(as) Atingidos(as) – Quem perde com os Megaeventos e Megaempreendimentos”, de 1 a 3 de maio de 2014, constatamos que as violações geradas a partir dos megaprojetos e da saga privatista é comum em todas as cidades-sede da Copa 2014. Afirmamos que a Copa e as Olimpíadas estão a serviço de um modelo de país e de mundo que não atende aos interesses gerais do povo trabalhador e dos setores oprimidos pelo sistema capitalista. A Lei Geral da Copa, INCONSTITUCIONAL e autoritária, escancara que o Estado funciona a serviço das corporações e das empreiteiras. Abaixo expressamos algumas dimensões do sofrimento do nosso povo, potencializados pelos megaeventos como a Copa e as Olimpíadas.
Moradia
A Copa intensificou aumento dos despejos e remoções violentas nas cidades brasileiras. Duzentos e cinquenta mil pessoas com suas famílias estão sendo desestruturadas, levadas para longe de seus lugares de origem, causando impactos na saúde, na educação, no transporte público, além da violência física e psicológica. Tem gente com depressão, se endividando, esperando por soluções que nunca chegam. São vítimas da especulação imobiliária que expulsa os pobres das áreas do seu interesse.
Histórias semelhantes de violências contra populações ocorrem em todo o território brasileiro. Não pedimos essa Copa da Fifa. Mais do que barrar a Copa, queremos barrar os despejos e remoções no Brasil. Nossa luta é antes, durante e depois da Copa, para que nenhuma família brasileira sofra a violência e humilhação de um despejo ou remoção forçada. Decidimos sair deste encontro com uma grande união para barrar os despejos e remoções no Brasil. Sairemos juntos daqui numa articulação permanente, e assim estaremos mais fortes. Por um Brasil sem despejos! Brasil sem remoção! Respeito ao cidadão!
Trabalhadores e trabalhadoras ambulantes, catadores e da construção civil
Defendemos e valorizamos os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras ambulantes vítimas das arbitrariedades da Fifa e do governo, como a imposição da Lei Geral da Copa que proíbe o comércio de produtos nas proximidades dos estádios. Enfrentamos a repressão por parte das prefeituras municipais que estão “higienizando” as cidades licitando para que grandes empresas controlem as ruas. A Lei Geral da Copa estabelece zonas de exclusão de 2 quilômetros no entorno das áreas da Fifa, estádios e áreas oficiais de torcedores com telões, onde apenas os patrocinadores oficiais poderão comercializar. É necessário fortalecer canais de comunicação para denunciar os casos de impedimento de trabalho e violações ao direito dos ambulantes. Também propomos um boicote aos patrocinadores da Copa, em solidariedade aos ambulantes.
Denunciamos também que as prefeituras tem dificultado o trabalho de catadores e catadoras de resíduos sólidos nas cidades-sede da Copa. Na construção civil a velocidade da execução das obras produziu 8 mortes nas arenas da Copa e mais 3 em outros estádios, e uma infinidade de acidentes graves. Exigimos que se intensifique o controle sobre a segurança dos operários nos canteiros de obra e a garantia plena de seus direitos trabalhistas, como o direito à greve.
Comunicação e Cultura
A comunicação é um direito humano, desrespeitado pela mídia hegemônica e pelo Estado. O oligopólio dos meios de comunicação invisibiliza e tenta calar as lutas populares. Os mesmos que detêm o poder político e econômico, utilizam a mídia para fomentar uma sociedade mercantilizada, excludente, cheia de preconceitos e opressões. Reforçando o extermínio da população negra com a criminalização da pobreza e a esteriotipação da mesma. Enquanto as reais consequências da Copa da Fifa no Brasil são ocultadas.
Reivindicamos a democratização dos meios de comunicação, a partir da revisão do marco regulatório da mídia, incluindo uma revisão da atual regulação das rádios comunitárias para que de fato a comunicação seja um direito humano, que vocalize a realidade do povo brasileiro e que seja diversa, popular e emancipadora. Defendemos o respeito aos midiativistas e à imprensa popular e independente.
Mulheres
As violações históricas sofridas pelas mulheres são acirradas com a Copa. Denunciamos o aumento da exploração sexual e do tráfico de mulheres, o acirramento da mercantilização do corpo feminino - exposto como disponível em diversas campanhas publicitárias, como a da Adidas, tornando-as mais vulneráveis a estupros e assédios de diversas ordens. Atingindo majoritariamente à mulher negra, através da precarização do trabalho e estereótipos mantidos pela mídia e todos os aparatos institucionais.
Pessoas em situação de prostituição também são alvo da violência do Estado, que se intensifica no período da Copa do Mundo com a higienização forçada das ruas, principalmente nas cidades-sede. Ademais, as experiências das Copas da África do Sul e da Alemanha demonstram que os megaeventos mercantilizam as vidas e os corpos das mulheres. O Brasil não pode fazer parte da rota! As mulheres trabalhadoras continuam a ser exploradas e mesmo nas falas críticas às péssimas condições de trabalho, as companheiras são invisibilizadas. Continuaremos na luta por melhores serviços públicos e equipamentos urbanos de qualidade – políticas universais de mobilidade, saúde, moradia e educação são pautas feministas e merecem total atenção.
Diversidade Sexual
Pretendemos também estreitar os laços com os movimentos LGBTT, para somar espaços na luta pelo respeito à diversidade sexual antes, durante e depois da Copa.
Desmilitarização
A repressão do Estado às manifestações populares que questionaram a Copa intensificou o caráter de militarização da segurança pública pautada na identificação dos movimentos sociais como “inimigos internos”. Isto contribuiu também para dar mais força ao processo histórico de extermínio da juventude negra e da periferia pela polícia. A juventude deve ser respeitados em seu direito a se manifestar. O Brasil está vivendo uma escalada autoritária, onde governo e Congresso buscam criminalizar movimentos sociais. Devemos promover lutas contra as leis antiterrorista e antimanifestações. Defender a anistia dos processados e uma Campanha Nacional pela desmilitarização da Polícia Militar e desarmamento das Guardas Municipais.
O povo palestino foi atingido diretamente pela Copa do Mundo no Brasil, uma vez que há um fluxo importante de financiamento saídos dos cofres públicos para o complexo industrial-militar israelense, sustentando a política do genocídio e o apartheid contra os palestinos.
Comunidades Tradicionais
Entendemos que as injustiças aplicadas aos povos originários e tradicionais se agravam com os megaeventos. O projeto de desenvolvimento trazido com esses eventos impede a demarcação e titulação de nossas terras. O número de lideranças das comunidades tradicionais que estão sendo exterminadas e a intensificação dos conflitos entre indígenas e ruralistas são exemplos disso. A mesma situação enfrenta os/as pescadores/as de áreas extrativistas de pesca que perdem seus territórios de vida ameaçados pela especulação imobiliárias, hotéis, construção de portos, etc.
Vivemos hoje um contexto urbano, onde as lutas das cidades ganham muito mais pauta, mas entendemos que a mesma força que tira o direito à moradia é a que não deixa demarcar os territórios. Repudiamos a PEC 215/00 e outros mecanismos que visam impedir novas demarcações e titulações e abrem precedente para a revisão dos territórios já legalizados. Para enfrentar esta violência, os povos  se organizam em mobilização nacional como forma de resistência, numa agenda de luta conjunta que culminará no Encontro Nacional Indígena e Quilombola, entre 25 e 29 de maio, em Brasília. Pela soberania dos povos aos territórios!
Megaeventos e a financeirização da Natureza
A Copa de 2014 está sendo apresentada como copa sustentável, gol verde, parques da copa, copa orgânica, carbono zero, enfim, uma maquiagem verde que busca invisibilizar as violações de direitos, colocando a compensação como fato consumado e validando a economia verde e a mercantilização da natureza como mais uma falsa solução. Haja visto a quantidade de árvores que estão cortadas nas cidades da Copa, defendemos a campanha “Quantas copas por uma Copa? Nem mais uma árvore cortada!”
Crianças e adolescentes
Crianças e adolescentes estarão em situação de extrema vulnerabilidade durante a Copa em virtude das férias escolares, associadas à ausência de políticas públicas. Destaca-se a desvirtuação do papel do esporte, que passa por um duplo processo de elitização. Primeiro, como mercadoria pouco acessível, com ingressos e produtos caros. Segundo, como prática restrita a espaços privados e a setores privilegiados da sociedade. Neste contexto, as grandes máfias da exploração e do tráfico de pessoas poderão atuar com muita facilidade. É necessário e urgente criar campanhas de combate à exploração sexual e ao tráfico de pessoas nas escolas da rede pública, rede hoteleira, proximidades dos estádios e nas regiões turísticas. Deve ser incluída a capacitação dos profissionais do turismo e da rede hoteleira, o fortalecimento e ampliação das políticas de promoção dos direitos das mulheres e crianças e adolescentes. Não à redução da idade penal.
Mobilidade Urbana
Diante do cenário de modelo mercadológico de gestão da cidade, é fundamental reconhecer a bandeira da Tarifa Zero e da PEC 90 (transporte como direito social) como passos para se criar condições para efetivação do direito à cidade e da participação popular na gestão das cidades. Combatemos o modelo de mobilidade urbana que privilegia o transporte rodoviário em detrimento do transporte de massa, ciclovias, etc. Combatemos também a privatização das cidades e de seus espações públicos como praças, ruas, etc.
População de Rua
A organização da Copa do Mundo tem uma política social para a população de rua: abandono das políticas integradas, fechamento de equipamentos de assistência social (albergues e abrigos) e o aumento da violência e repressão das forças da segurança pública (Guarda Civil, Polícia Militar, etc.). O intuito é expulsar e coibir a população de rua das regiões centrais das cidades-sede da Copa do Mundo, gerando clima de insegurança e medo do que pode ocorrer antes, durante e depois dos jogos. Pelo fim do recolhimento e internação compulsórios.
Copa das Mobilizações
Diante de todo este cenário de violações e demandas concretas das comunidades e populações atingidas, é necessário fazer desta a Copa das Mobilizações. Não queremos a violência do Estado, mas a garantia e o fortalecimento dos direitos. Estar nas ruas durante a Copa do Mundo é um ato de fortalecimento da democracia e de avanço de um novo modelo de país que avance na participação direta do povo e na construção de políticas públicas efetivas em favor da justiça e igualdade social. Conclamamos a população a fazer desta a Copa das Mobilizações, mostrando ao mundo a força e a alegria do povo brasileiro em luta!
“Copa sem povo! Tô na rua de novo!”
Só a luta transforma!! #copapraquem
ANCOP – Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa

terça-feira, 6 de maio de 2014

Vai ter Copa ou não vai? (artigo para a revista Em Debate, da UFMG)

Vai ter Copa ou não vai?
Rudá Ricci[1]
Há momentos em que aparentemente um país se desencontra. Poucos se entendem e tudo parece estranho. Normalmente, esta sensação ocorre em momentos de mudanças sociais significativas. Aliás, foi num momento desses que foi citada, pela primeira vez, a palavra sociologia, num seminário realizado em Paris, no apartamento de Auguste Comte. O pai da sociologia sugeria a criação de uma nova ciência que pudesse analisar friamente (o autor, na verdade, sugeriu com neutralidade) o que ocorria com a urbanização acelerada e a destruição de instituições tradicionais e mudanças contínuas na paisagem social que, segundo ele, tiveram início com a Revolução Francesa e o advento do que denominou de “filosofia negativista” (de negação do passado).
Exageros teóricos à parte, o Brasil parecia imerso num manto de prosperidade e mesmice até que, durante os preparativos das festas juninas, as ruas rugiram, tal como se projetavam nas janelas das classes mais abastadas das grandes cidades europeias do século XIX. Assim como Comte, Baudelaire, Poe e Engels, estamos nós aqui buscando entender o que faz as ruas serem tomadas por multidões e descobrir onde elas estavam, até então. Começamos a pesquisar e sair com nossas mochilas nas costas, nossos laptops e celulares, entrevistando, fotografando, investigando o novo. Começávamos a formar o quebra-cabeça quando explodem os rolezinhos. E o país mergulha outra vez na montanha russa.
O slogan “Não vai ter Copa” só tem impacto porque é verossímil. E só emerge como ameaça porque o país não é o mesmo de abril de 2013. Porque em maio do ano passado já havia algum sinal de tempestade nos céus do país. Um simples boato sobre o fim do Programa Bolsa Família provocou, em três dias, 920 mil beneficiários a enfrentar filas enormes e sacar o resto de dinheiro que tinham em suas contas. Novamente, a boataria para dar certo tem que ser verossímil. O que nos faz crer que os Comitês Populares da Copa (os doze enfeixados na Articulação Nacional dos Comitês, a ANCOP), que criaram o slogan no final de 2013, estão com ouvidos e olhos atentos. Com efeito, em abril deste ano, o Datafolha verificou que 55% dos brasileiros acreditavam que a Copa da FIFA trará prejuízos ao país. Algo inusitado no país do futebol.
O que teria ocorrido? A explicação está na profunda mobilidade social – num país que tradicionalmente não tem mobilidade entre classes – que acometeu o país nos últimos dez anos.
Muito se alardeou nos últimos anos sobre os 40 milhões de brasileiros que deixaram a margem da sociedade – viviam abaixo da linha da pobreza – para serem incluídos pelo consumo. Não foram incluídos pelos direitos ou pela política, o que geraria um efeito político e social distinto do que efetivamente ocorreu. Motivado pelo discurso otimista de Marcelo Neri, da FGV-RJ, projetou-se um país de classe média. O Brasil estaria vivenciando algo similar ao que teria ocorrido nos EUA na década de 1950. A leitura otimista dava conta da consolidação acelerada de um imenso mercado consumidor interno que sustentaria um círculo virtuoso social e economicamente. 2010 teria sido o ápice desta trajetória. O que não se disse é que vivíamos lastreados nos investimentos chineses. Segundo estudo da China Global Investment Tracker, o Brasil foi o principal beneficiário de investimentos chineses em 2010: US$ 13,7 bilhões, excluindo-se os títulos públicos e investimentos de menos de U$ 100 milhões. Para efeitos comparativos, Nigéria e Argentina receberam em torno de US$ 8 bilhões cada um da China em 2010; e EUA e Canadá, por volta de US$ 6 bilhões cada, de acordo com os números do levantamento. Em 2013, este volume se reduziu a 20%. E, pior, a China decidiu competir com o Brasil na venda de produtos à Argentina, o terceiro maior importador de produtos brasileiros (atrás de China e EUA).
O fato é que a inclusão pelo consumo logo revelaria as várias faces do Brasil.
A primeira, dos próprios beneficiários. A inclusão pelo direito, como a luta social organizada numa estrutura sindical ou num movimento social, fortalece o espírito coletivo e a noção de cidadania ativa. A inclusão pela política, derivada da conquista pelo voto ou pela militância partidária, também fortalece o espírito coletivo e as instituições de representação. Mas a inclusão pelo consumo deriva em dois comportamentos muito distintos. O primeiro, lastreado na noção de prestígio pelos bens adquiridos. Antes das manifestações de junho era senso comum análises de mercado que definiam os novos ícones do prestígio social dos emergentes: smartphones, televisões de tela plana, viagens aéreas, aquisição de casa própria e reformas das cozinhas de seus domicílios. A inclusão pelo consumo aumenta o esforço familiar para não retornar ao estágio anterior e tentar progredir. No máximo, forma-se uma subcultura comunitária que reforça o interesse, mas se distancia da solidariedade da qual se alimenta o direito. Porque o direito é universal, mas o interesse é grupal. O segundo comportamento derivado é a dependência da ação estatal. Porque o Brasil não gerou mudança na qualidade do emprego e, portanto, continua empregando pessoas de baixa qualificação e praticando baixos salários. Para alimentar a euforia consumista, o Estado necessita manter as políticas sociais de promoção social. Ocorre que com a redução dos investimentos externos, em especial, chineses, o governo federal preferiu ampliar a base de beneficiados a criar nova geração de política de transferência de renda ou acompanhar as famílias já inseridas no amplo mercado consumidor.
Os rolezinhos foram, no início deste ano, a maior expressão deste segmento emergente pelo consumo. Formados por pré-adolescentes e adolescentes residentes nas periferias das capitais brasileiras (em especial, do eixo centro-sul), os rolezinhos projetaram a voraz ideologia consumista dos filhos daqueles que, anos atrás, saíram da pobreza absoluta para se sentirem dignos pela compra de produtos top de linha. O ambiente social desse grupo infanto-juvenil é, e sempre foi, o shopping center da periferia onde vivem. A segurança do ambiente lhes proporciona a condição básica para adquirir seus ícones de consumo, se alimentar e se divertir pelos corredores iluminados e cercados por um clima de excitação permanente, onde sempre é dia.
A reação das classes mais abastadas que se acostumaram à ausência de mobilidade social brasileira foi agressiva e imediata. Expuseram a cultura estamental que tolera o diferente desde que permaneça nos seus locais de origem. Os espaços demarcados pela diferença social foram revelados em poucos dias, em que a histeria dos adolescentes era condenada cruelmente pela histeria que tomou conta dos frequentadores dos centros comerciais de alto luxo, distantes dos centros da periferia que sediavam os encontros em massa dos jovens da periferia.
Enfim, o Estado Provedor, tal como se esboçou nos últimos dez anos, criou um país desencontrado, ou melhor, um país que foi obrigado a encarar seu reflexo no espelho. Um Estado que se legitima na medida em que mantém o sentimento de ascensão social, mas que se enreda na crise da economia internacional. Na outra ponta, uma sociedade historicamente engessada socialmente que estranha qualquer mudança social acelerada. Mudanças, afinal, que conspurcam os espaços determinados para o convívio de classes sociais distintas.
A situação parece ainda mais complexa quando se percebe que a rede de entidades de mediação social (ONGs, sindicatos e entidades confessionais) deixou de cumprir seu papel de colher demandas e frustrações difusas na base da sociedade e se caminharam para o envolvimento com arenas e convênios estatais. As ruas ficaram órfãs em meio à agitação social que se espraiou pelo país nos últimos anos.
Os protestos de junho, embora motivados e liderados por outro segmento da juventude brasileira (jovens de 20 a 30 anos, universitários, forjados nas comunidades fechadas das redes sociais), abriram as comportas para os “novos brasileiros” (os brasileiros da inclusão pelo consumo) se expressarem. Algo se quebrou na velha lógica do cinismo político das classes menos favorecidas. Algo os motivou a expressar mais claramente seus medos e ressentimentos e a desconfiar da tutela estatal. Um grito contido que anunciava que talvez fosse possível outra forma de relacionamento com o mundo político. Nada muito desenhado com precisão, mais uma queixa raivosa que uma solução.
Este é o cenário dos protestos que se avizinham. Um Estado acuado em país desencontrado.
O que é certo é que a Copa da FIFA já não será aquela planejada pelas elites desportivas e políticas. A seleção brasileira de futebol não será exatamente o Brasil de chuteiras. Os brasileiros parecem mais desconfiados, mais exigentes. Parecem relacionar os gastos com as obras de preparação do campeonato com o fim do clima de euforia consumista que tomou o Brasil em 2010.
Ocorrerão os jogos do campeonato da FIFA. Mas não será mais a Copa que um dia colocou 90 milhões de brasileiros em ação.



[1] Sociólogo, mestre em ciências políticas e doutor em ciências sociais. Diretor geral do Instituto Cultiva, membro do Fórum Brasil do Orçamento e do Observatório Internacional da Democracia Participativa. Autor, entre outros, de “Lulismo” (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto) e “Nas Ruas” (Letramento), este último dedicado à análise das manifestações de junho de 2013. E-mail: ruda@inet.com.br

domingo, 4 de maio de 2014

Entrevista sobre impacto das possíveis manifestações durante a Copa



Entrevista sobre impacto das manifestações de junho sobre a Copa e eleições (para Melina Christian, do jornalismo da UNI-BH):
1- Você acredita que as manifestações só alcançaram grande escala devido ao uso das redes sociais?
R: Sim, mas não foi o único fator. Houve uma conjunção. As redes sociais foram o veículo de comunicação que tinha mais identidade com a juventude. Por que? Porque estamos lidando com uma juventude (e adolescência) contemporânea que a literatura especializada identifica como a que menos tempo de convivência familiar teve, desde o século XVII, quando as famílias passaram a acolher e educar seus filhos. A formação de valores e até comportamento foram definidos em tribos urbanas ou o que os ingleses denominam de "pares de idade". São comunidades fechadas, de autoproteção. Ora, o modo como a juventude posta nas redes sociais fortalece o contato afetivo, comunitário. Cria-se uma rede de proteção e confiança e é por este motivo que alguém posta tristezas e os tais "self": não para o mundo saber, mas para receber algum comentário de sua "família virtual", sua comunidade fechada. Daí que os protestos de junho terem sido um mosaico, um quebra cabeças de demandas, porque somavam inúmeras demandas individuais, grupais e comunitárias. Mas também é preciso destacar outro fator: o lulismo retirou entidades populares e de apoio (ONGs, sindicatos e pastorais) das ruas (para terceirizar ações e programas estatais ou para participarem de fóruns de elaboração de políticas públicas) que mediavam as demandas difusas espalhadas pelos bairros, locais de trabalho e grotões. Foi se formando um vazio entre as frustrações cotidianas e a ação estatal. Sem este vazio, os protestos de junho não teriam como atingir corações e mentes de gente que não havia saído às ruas.

2- Quais os reflexos das manifestações que já podem ser percebidos em relação à Copa do Mundo?R: Será uma ameaça ou promessa permanente. Dependerá do desempenho da seleção brasileira. Se vencer, os protestos serão localizados, violentos e relativamente pequenos, como ocorreram depois de junho. Se o Brasil perder, em especial, antes da final da Copa, as manifestações que estão programadas poderão servir de canal de expressão da frustração e humilhação. E com uma economia morna como a atual, o cenário estaria montado.

3- Há algum reflexo das manifestações de junho de 2013 nas eleições desse ano? A pesquisa de intenção de voto publicada pelo Estado de Minas no dia 20/04/2014, apontou que votos brancos e nulos totalizam 24% e ainda segundo a matéria, existe uma expectativa de que esse número aumente. Isso poderia ser considerado um reflexo das manifestações?R: O reflexo que me parece mais visível é o aumento de votos brancos, nulos e abstenções (que já atingiram 30% do total, em várias pesquisas recém divulgadas, acima do índice histórico de 20%). O cinismo eleitoral tradicional (eleitor que vota, mas não se compromete, cumprindo uma mera obrigação) parece ter evoluído para um julgamento ou posicionamento mais ácido sobre o sistema partidário e político. Uma espécie de transição de uma postura apática e inercial para algo mais agressivo, não necessariamente ativo, mas muito crítico.

4- De que forma as manifestações abalaram a visão internacional em relação ao Brasil?R: As manifestações são efeito, não causa, para o olhar externo sobre nosso país. Chamaram a atenção da imprensa internacional que não entendia o motivo de protestos num país em franca prosperidade. A partir daí, perceberam que havia algo que se movia por debaixo das mudanças aparentes. Em seguida, vieram os rolezinhos, que confirmaram que a mobilidade social verificada no Brasil nos últimos dez anos gerava novos agrupamentos sociais, novas expressões culturais que se formavam na penumbra. E ainda não tivemos nenhuma ação coletiva dos beneficiários do Bolsa Família, outra lógica social não tradicional que ser formou no último período. Surpreendentemente, imaginava-se que um país desigual poderia sofrer forte ascensão social (pelo consumo) sem nenhuma repercussão no comportamento social e político. Engano que as ruas deixaram claro