Vai ter Copa ou não vai?
Há momentos em que
aparentemente um país se desencontra. Poucos se entendem e tudo parece
estranho. Normalmente, esta sensação ocorre em momentos de mudanças sociais
significativas. Aliás, foi num momento desses que foi citada, pela primeira
vez, a palavra sociologia, num seminário realizado em Paris, no apartamento de
Auguste Comte. O pai da sociologia sugeria a criação de uma nova ciência que
pudesse analisar friamente (o autor, na verdade, sugeriu com neutralidade) o
que ocorria com a urbanização acelerada e a destruição de instituições
tradicionais e mudanças contínuas na paisagem social que, segundo ele, tiveram
início com a Revolução Francesa e o advento do que denominou de “filosofia
negativista” (de negação do passado).
Exageros teóricos à parte,
o Brasil parecia imerso num manto de prosperidade e mesmice até que, durante os
preparativos das festas juninas, as ruas rugiram, tal como se projetavam nas
janelas das classes mais abastadas das grandes cidades europeias do século XIX.
Assim como Comte, Baudelaire, Poe e Engels, estamos nós aqui buscando entender
o que faz as ruas serem tomadas por multidões e descobrir onde elas estavam,
até então. Começamos a pesquisar e sair com nossas mochilas nas costas, nossos
laptops e celulares, entrevistando, fotografando, investigando o novo.
Começávamos a formar o quebra-cabeça quando explodem os rolezinhos. E o país
mergulha outra vez na montanha russa.
O slogan “Não vai ter Copa”
só tem impacto porque é verossímil. E só emerge como ameaça porque o país não é
o mesmo de abril de 2013. Porque em maio do ano passado já havia algum sinal de
tempestade nos céus do país. Um simples boato sobre o fim do Programa Bolsa
Família provocou, em três dias, 920 mil beneficiários a enfrentar filas enormes
e sacar o resto de dinheiro que tinham em suas contas. Novamente, a boataria
para dar certo tem que ser verossímil. O que nos faz crer que os Comitês
Populares da Copa (os doze enfeixados na Articulação Nacional dos Comitês, a
ANCOP), que criaram o slogan no final de 2013, estão com ouvidos e olhos
atentos. Com efeito, em abril deste ano, o Datafolha verificou que 55% dos
brasileiros acreditavam que a Copa da FIFA trará prejuízos ao país. Algo inusitado
no país do futebol.
O que teria ocorrido? A
explicação está na profunda mobilidade social – num país que tradicionalmente
não tem mobilidade entre classes – que acometeu o país nos últimos dez anos.
Muito se alardeou nos
últimos anos sobre os 40 milhões de brasileiros que deixaram a margem da
sociedade – viviam abaixo da linha da pobreza – para serem incluídos pelo
consumo. Não foram incluídos pelos direitos ou pela política, o que geraria um
efeito político e social distinto do que efetivamente ocorreu. Motivado pelo
discurso otimista de Marcelo Neri, da FGV-RJ, projetou-se um país de classe
média. O Brasil estaria vivenciando algo similar ao que teria ocorrido nos EUA
na década de 1950. A leitura otimista dava conta da consolidação acelerada de
um imenso mercado consumidor interno que sustentaria um círculo virtuoso social
e economicamente. 2010 teria sido o ápice desta trajetória. O que não se disse
é que vivíamos lastreados nos investimentos chineses. Segundo estudo da China
Global Investment Tracker, o Brasil foi o principal beneficiário de
investimentos chineses em 2010: US$ 13,7 bilhões, excluindo-se os títulos
públicos e investimentos de menos de U$ 100 milhões. Para efeitos comparativos,
Nigéria e Argentina receberam em torno de US$ 8 bilhões cada um da China em
2010; e EUA e Canadá, por volta de US$ 6 bilhões cada, de acordo com os números
do levantamento. Em 2013, este volume se reduziu a 20%. E, pior, a China
decidiu competir com o Brasil na venda de produtos à Argentina, o terceiro
maior importador de produtos brasileiros (atrás de China e EUA).
O fato é que a inclusão
pelo consumo logo revelaria as várias faces do Brasil.
A primeira, dos próprios
beneficiários. A inclusão pelo direito, como a luta social organizada numa
estrutura sindical ou num movimento social, fortalece o espírito coletivo e a
noção de cidadania ativa. A inclusão pela política, derivada da conquista pelo
voto ou pela militância partidária, também fortalece o espírito coletivo e as
instituições de representação. Mas a inclusão pelo consumo deriva em dois
comportamentos muito distintos. O primeiro, lastreado na noção de prestígio
pelos bens adquiridos. Antes das manifestações de junho era senso comum
análises de mercado que definiam os novos ícones do prestígio social dos
emergentes: smartphones, televisões de tela plana, viagens aéreas, aquisição de
casa própria e reformas das cozinhas de seus domicílios. A inclusão pelo
consumo aumenta o esforço familiar para não retornar ao estágio anterior e
tentar progredir. No máximo, forma-se uma subcultura comunitária que reforça o
interesse, mas se distancia da solidariedade da qual se alimenta o direito.
Porque o direito é universal, mas o interesse é grupal. O segundo comportamento
derivado é a dependência da ação estatal. Porque o Brasil não gerou mudança na
qualidade do emprego e, portanto, continua empregando pessoas de baixa
qualificação e praticando baixos salários. Para alimentar a euforia consumista,
o Estado necessita manter as políticas sociais de promoção social. Ocorre que
com a redução dos investimentos externos, em especial, chineses, o governo
federal preferiu ampliar a base de beneficiados a criar nova geração de
política de transferência de renda ou acompanhar as famílias já inseridas no
amplo mercado consumidor.
Os rolezinhos foram, no
início deste ano, a maior expressão deste segmento emergente pelo consumo. Formados
por pré-adolescentes e adolescentes residentes nas periferias das capitais
brasileiras (em especial, do eixo centro-sul), os rolezinhos projetaram a voraz
ideologia consumista dos filhos daqueles que, anos atrás, saíram da pobreza
absoluta para se sentirem dignos pela compra de produtos top de linha. O
ambiente social desse grupo infanto-juvenil é, e sempre foi, o shopping center
da periferia onde vivem. A segurança do ambiente lhes proporciona a condição
básica para adquirir seus ícones de consumo, se alimentar e se divertir pelos
corredores iluminados e cercados por um clima de excitação permanente, onde
sempre é dia.
A reação das classes mais
abastadas que se acostumaram à ausência de mobilidade social brasileira foi
agressiva e imediata. Expuseram a cultura estamental que tolera o diferente
desde que permaneça nos seus locais de origem. Os espaços demarcados pela
diferença social foram revelados em poucos dias, em que a histeria dos adolescentes
era condenada cruelmente pela histeria que tomou conta dos frequentadores dos
centros comerciais de alto luxo, distantes dos centros da periferia que
sediavam os encontros em massa dos jovens da periferia.
Enfim, o Estado Provedor,
tal como se esboçou nos últimos dez anos, criou um país desencontrado, ou
melhor, um país que foi obrigado a encarar seu reflexo no espelho. Um Estado
que se legitima na medida em que mantém o sentimento de ascensão social, mas
que se enreda na crise da economia internacional. Na outra ponta, uma sociedade
historicamente engessada socialmente que estranha qualquer mudança social
acelerada. Mudanças, afinal, que conspurcam os espaços determinados para o
convívio de classes sociais distintas.
A situação parece ainda
mais complexa quando se percebe que a rede de entidades de mediação social
(ONGs, sindicatos e entidades confessionais) deixou de cumprir seu papel de
colher demandas e frustrações difusas na base da sociedade e se caminharam para
o envolvimento com arenas e convênios estatais. As ruas ficaram órfãs em meio à
agitação social que se espraiou pelo país nos últimos anos.
Os protestos de junho,
embora motivados e liderados por outro segmento da juventude brasileira (jovens
de 20 a 30 anos, universitários, forjados nas comunidades fechadas das redes
sociais), abriram as comportas para os “novos brasileiros” (os brasileiros da
inclusão pelo consumo) se expressarem. Algo se quebrou na velha lógica do
cinismo político das classes menos favorecidas. Algo os motivou a expressar
mais claramente seus medos e ressentimentos e a desconfiar da tutela estatal.
Um grito contido que anunciava que talvez fosse possível outra forma de
relacionamento com o mundo político. Nada muito desenhado com precisão, mais
uma queixa raivosa que uma solução.
Este é o cenário dos
protestos que se avizinham. Um Estado acuado em país desencontrado.
O que é certo é que a Copa
da FIFA já não será aquela planejada pelas elites desportivas e políticas. A
seleção brasileira de futebol não será exatamente o Brasil de chuteiras. Os
brasileiros parecem mais desconfiados, mais exigentes. Parecem relacionar os
gastos com as obras de preparação do campeonato com o fim do clima de euforia
consumista que tomou o Brasil em 2010.
Ocorrerão os jogos do
campeonato da FIFA. Mas não será mais a Copa que um dia colocou 90 milhões de
brasileiros em ação.
[1]
Sociólogo, mestre em ciências políticas e doutor em ciências sociais. Diretor
geral do Instituto Cultiva, membro do Fórum Brasil do Orçamento e do
Observatório Internacional da Democracia Participativa. Autor, entre outros, de
“Lulismo” (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto) e “Nas Ruas” (Letramento),
este último dedicado à análise das manifestações de junho de 2013. E-mail: ruda@inet.com.br .
2 comentários:
Muito bom.
Olá Ruda, blz!?
Só uma errata, o slogan "Não vai ter copa" não foi uma criação do Copac e nem da Ancop. O slogan do Copac-BH é:"A Fifa te fode" e da Ancop "Copa pra quem?"
O grito "não vai ter copa" surgiu nas ruas e em BH temos uma gravação do dia 22 de junho dos jovens gritando sem relação com os comitês, mas gritamos juntos. abç,
Fidélis
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