domingo, 17 de outubro de 2010
Chico de Oliveira e a mesmice
Uirá Machado entrevistou, pela Folha, Chico de Oliveira. Chico vem alternando suas avaliações ao sabor dos ventos. Analisei este movimento errático em meu livro sobre o lulismo. Uirá é um jornalista sério. Apesar de minhas ressalvas a este vai-e-vem de Chico, reproduzo a entrevista dele, abaixo:
Folha - Qual a sua avaliação sobre o debate eleitoral no primeiro turno?
Francisco de Oliveira - Fora o horror que os tucanos têm pelos pobres, Serra e Dilma não têm posições radicalmente distintas: ambos são desenvolvimentistas, querem a industrialização... O campo de conflito entre eles é realmente pequeno. Mas, por outro lado, isso significa que há problemas cruciais que nenhum dos dois está querendo abordar.
Que tipo de problema?
Não se trata mais de provar que a economia brasileira é viável. Isso já foi superado. O problema principal é a distribuição de renda, para valer, não por meio de paliativos como o Bolsa Família. Isso não foi abordado por nenhum dos dois. A política está no Brasil num lugar onde ela não comove ninguém. Há um consenso muito raso e aparentemente sem discordâncias.
Dá a impressão que tanto faz votar em uma ou no outro...
É verdade. É escolher entre o ruim e o pior.
Qual a sua opinião sobre a movimentação de igrejas pregando um voto anti-Dilma por causa de suas posições sobre o aborto?
É um péssimo sinal, uma regressão. A sociedade brasileira necessita urgentemente de reformas, e a política está indo no sentido oposto, armando um falso consenso. O aborto é uma questão séria de saúde pública. Não adianta recuar para atender evangélicos e setores da Igreja Católica. Isso não salva as mulheres das questões que o aborto coloca.
O que significa a entrada desse tema no debate?
Representa o consenso por baixo devido ao êxito econômico. Essas posições conservadoras ganham força. Há uma tendência a todo mundo ser bonzinho. Nesse contexto, ninguém quer tomar posições consideradas radicais. Com o progresso econômico, há um sentimento de conformismo que se alastra e se sedimenta, as pessoas ficam medrosas, conservadoras. Isso está ocorrendo no Brasil. Gente da classe C e D mostra-se a favor de uma marcha de progresso lenta e contínua. Eles não querem briga, não querem conflito. Por isso o Lula paz e amor deu certo.
Se as pessoas tornam-se conservadoras, o que explica a divisão do Brasil quando considerada a votação de Dilma e Serra nos Estados?
É um racha. Significa que a questão da desigualdade regional ainda é muito marcante. Aliás, essa é outra questão que está fora da discussão. Os dois não querem abordar o tema. O que eles têm a dizer sobre os problemas regionais? O que fazer com as regiões deprimidas? Por baixo disso tudo está a velha história de que São Paulo é uma locomotiva que puxa 25 vagões vazios. Essa tensão existe. Esse desequilíbrio vai criando a sensação de que há um lado pobre e um lado rico. Como se houvesse um voto comprado, de curral eleitoral, e outro consciente. Há de fato uma fratura, e isso ressurge em períodos eleitorais.
Marina aparece como uma terceira força sustentável?
Acho que não. A ascensão dela se dá pela falta de radicalização dos dois principais, e a questão do ambiente é relativamente neutra. Não vejo eco na sociedade, a não ser de forma superficial. Não é um tema que toca nos nervos das pessoas. A onda verde é passageira.
O sr. foi um dos primeiros a romper com o PT, em 2003, e saiu fazendo duras críticas ao presidente. Lula, porém, termina o mandato extremamente popular. Na sua opinião, que lugar o governo Lula vai ocupar na história?
A meu ver, no futuro, a gente lerá assim: Getúlio Vargas é o criador do moderno Estado brasileiro, sob todos os aspectos. Ele arma o Estado de todas as instituições capazes de criar um sistema econômico. E começa um processo de industrialização vigoroso. Lula, é bom que se diga, não é comparável a Getúlio. Juscelino Kubitschek é o que chuta a industrialização para a frente, mas ele não era um estadista no sentido de criar instituições. A ditadura militar é fortemente industrialista, prossegue num caminho já aberto e usa o poder do Estado com uma desfaçatez que ninguém tinha usado. Depois vem um período de forte indefinição e inflação fora de controle. O ciclo neoliberal é Fernando Henrique Cardoso e Lula. Coloco ambos juntos. Só que Lula está levando o Brasil para um capitalismo que não tem volta. Todo mundo acha que ele é estatizante, mas é o contrário.
Como assim?
Lula é mais privatista que FHC. As grandes tendências vão se armando e ele usa o poder do Estado para confirmá-las, não para negá-las. Então, nessa história futura, Lula será o grande confirmador do sistema. Ele não é nada opositor ou estatizante. Isso é uma ilusão de ótica. Ao contrário, ele é privatista numa escala que o Brasil nunca conheceu. Essa onda de fusões, concentrações e aquisições que o BNDES está patrocinando tem claro sentido privatista. Para o país, para a sociedade, para o cidadão, que bem faz que o Brasil tenha a maior empresa de carnes do mundo, por exemplo? Em termos de estratégia de desenvolvimento, divisão de renda e melhoria de bem-estar da população, isso não quer dizer nada.
Em 2004, o sr. atribuiu a Lula a derrota de Marta na prefeitura. Qual sua avaliação de Lula como cabo eleitoral de Dilma?
Ele acaba sendo um elemento negativo, mesmo com sua alta popularidade. O segundo turno foi um aviso. Há uma espécie de cansaço. Essa ostensividade, essa chalaça, isso irrita profundamente a classe média. É a coisa de desmoralizar o adversário, de rebaixar o debate. Lula sempre fez isso.
Como o sr. avalia as afirmações de que o comportamento de Lula ameaça a democracia?
Não vejo como uma ameaça. Mas o Lula tem um componente intrinsecamente autoritário.
Em que sentido?
Ele não ouve ninguém, salvo um círculo muito restrito, e ele tem pouco apreço por instituições. Eu o conheço desde os anos de São Bernardo. Ele tem a tendência, que casa perfeitamente com o estilo de política brasileira, de combinar primeiro num grupo restrito e, depois, fazer a assembleia. Ele sempre agiu assim. Não é pessoal, é da cultura brasileira, ele foi cevado nisso. Mas não que ele queira derrubar a democracia. Isso é da cultura política em que ele foi criado: o sindicalismo, que é um mundo muito autoritário, muito parecido com a cultura política mais ampla. E ele se dá bem, sabe se mover nesse mundo. As instituições de fato não são o barato dele. Mas ele não ameaça a democracia do ponto de vista mais direto nem tem disposição de ser ditador. Acho essas afirmações um exagero, uma maldade, até. Elas têm um conteúdo político muito evidente. Agora, certa ala do PT, com José Dirceu... Esse tem projetos mais autoritários.
E essa ala ganharia mais força num governo Dilma?
Acho que não. Porque Lula vigia ele de muito perto. Lula não gosta dele [José Dirceu]. Tem medo, até, do ponto de vista político. Ele veio de outra extração, a qual Lula detesta. Uma extração propriamente política, de esquerda.
O sr. já disse que Lula havia matado a sociedade civil. O que pode acontecer num governo Dilma e Serra? Haveria diferença?
Os governos tucanos têm horror ao povo. Isso não é força de expressão. É uma questão de classe social. Eles não têm contato com o real cotidiano popular. Eles não andam de ônibus, não têm experiência do cotidiano da cidade. Nem de metrô eles andam, o que é incrível. A cidade é grande, tem violência, a gente sabe. Mas eles não sabem como é o transporte, como são os hospitais, as escolas públicas. Há uma fratura real, eles perderam a experiência do cotidiano real. E isso não entra pelas estatísticas, só pela experiência. Por causa disso, o governo deles é sempre uma coisa muito por cima. Eles são pouco à vontade com o popular. Essa é a diferença marcante em relação a Lula. Sobre Dilma eu não sei. Ela pode também sofrer desse mal.
Mas, do ponto de vista da evolução e da função dos movimentos sociais, qual dos dois é preferível?
Eis uma questão difícil. Os tucanos, com esse horror a pobre, tendem sempre a aumentar essa fratura, essa separação. Os tucanos não têm jeito...
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